sábado, 16 de março de 2024

Tragédia Yanomami. “Sobrevivemos, gritamos, mas as crianças não resistiram”. Entrevista com Junior Hekurari, liderança Yanomami

 Qual a situação do território Yanomami nesse momento?

O governo Bolsonaro, o próprio ex-presidente, incentivou muito o ódio contra a população indígena. Ele próprio falava que não ia demarcar nenhum centímetro das terras indígenas. Ele incentivou invadir as terras que já estavam demarcadas, por isso nós estamos até agora sofrendo, estamos pagando esse incentivo que o próprio presidente fez com as pessoas que tem mais poder econômico para invadir as terras indígenas. Então esse resultado está chegando, principalmente nas comunidades. É um sofrimento muito grande, mas resistimos, lutamos e não desistimos. O governo Bolsonaro barbarizou, cortou as instituições que protegiam os povos indígenas, ‘lavou as mãos’, principalmente a Funai, direitos humanos e outras instituições que eram importantes para defender os direitos fundamentais. Então ele infelizmente trancou essas portas para não enxergar esse problema que a gente estava enfrentando nas terras indígenas.

Em 2019, sofremos invasão. Entraram mais de 25 mil garimpeiros que envenenaram até nascentes dos rios. Hoje estamos sem água potável. A natureza trazia água potável, porque nós dependemos da floresta e a floresta foi destruída. O povo Yanomami morreu de contaminação por mercúrio, pela contaminação da água. Quanto tu toma água contaminada é questão de horas para morrer, porque a diarreia para desidratar é questão de horas.

Quem mais sofreu com a invasão do território?

Quem sofreu mais são as pessoas mais vulneráveis, como crianças e idosos. Somos muito fortes, o Yanomami foi preparado para enfrentar os problemas de natureza. Sobrevivemos, gritamos, mas as crianças não resistiram, os idosos, mulheres não resistiram. Perdemos muitas vidas, choramos por elas. A gente está lutando para não acontecer mais.

Qual o resultado das ações do governo federal até agora?

O governo atual está trabalhando muito, mas está longe de resolver porque a situação que o Bolsonaro deixou na terra Yanomami, para consertar, está longe. Apesar da vontade política do atual governo de resolver o problema, o que é preciso fazer para que os Yanomamis tenham uma solução definitiva pra essa tragédia?

Hoje é o Ibama que atua mais, através do comando da ministra Marina Silva, é o Ibama que expulsou muitos garimpeiros, enfrentou garimpeiros armados atirando contra o pessoal do Ibama. Mas mesmo assim eles não desistiram, lutaram e expulsaram muitos garimpeiros. Só que a invasão é muito ampla, a Terra Indígena Yanomami é muito grande, de difícil acesso. São dois rios principais onde o Ibama fez a instalação de corrente, mas mesmo assim os garimpeiros atacaram a base do Ibama e cortaram todas as correntes.

Eles têm um armamento muito forte, então quem pode enfrentar esses homens armados que estão destruindo a Terra Indígena Yanomami são as forças do Exército. Eles têm mais tecnologia, mais armamentos e mais homens preparados para enfrentar aquelas pessoas. É isso que pedimos. Assim que expulsar os garimpeiros, a gente quer reestruturar o atendimento e instalar bases de proteção estratégicas nas comunidades. Nosso desejo, nosso sonho, é proteger e retomar a Terra Indígena Yanomami.

"A gente tem certeza absoluta que o governo anterior escondeu muito as informações (...). Acreditamos que morreram mais de 1200 crianças por ano"– Junior Hekurari


5º domingo de quaresma - Seguir-servir Jesus na doação radical para ser grão de trigo com grande poder germinativo!

Ver alguém, para a linguagem bíblica, é sempre um conhecer alguém. Conhecer é sempre um mergulhar no mundo do outro. É um conviver intimamente com ele. No entanto, ao nos aproximar de alguém sempre carregamos uma mistura de expectativas e de preconceitos. Hoje a nossa aproximação ao outro está profundamente viciada, contaminada. O outro é visto, muitas vezes, como um potencial inimigo e rival. Outras vezes é por nós, ingenuamente, idealizado e idolatrado. Diante do desejo de alguns discípulos de cultura grega de conhecer Jesus, o Mestre não tem medo de se expor e de se revelar por aquilo que é. Jesus não se apresenta como um dos muitos heróis imortais da deslumbrante cultura grega, mas como um 'filho do homem' frágil, quase impotente, 'demasiadamente humano'. Um Jesus consciente de que o 'esplendor e a glória,' de verdade, passam pelo serviço anônimo, solitário, e pela doação radical de si próprio. O discípulo que quer servir-seguir Jesus mediante o sucesso, a fama, o reconhecimento público perde a chance de viver em plenitude, e de dar sentido à sua existência. Chegou a hora e é agora em que todo servidor-seguidor de Jesus o poderá conhecer de verdade ao se colocar, concretamente, a serviço da vida plena de milhões de irmãos e irmãs que continuam sendo vítimas dos potentes gloriosos e dos infames famosos desse mundo! Quem não compreende isso continuará sendo um grão de trigo sem poder germinativo!

terça-feira, 12 de março de 2024

Carta de repúdio: Justiça que nega direito de sepultamento a cacique Kamakã é a mesma que deixa Vale impune

As organizações, redes, pastorais e comissões abaixo subscritas vêm, através desta carta, manifestar sua profunda indignação com a decisão da Justiça Federal da 6ª Região, de Belo Horizonte, em favor da empresa Vale S/A, que proíbe a Retomada Kamakã Mongoió em Brumadinho (Córrego Areias), de semear o corpo do cacique Merong Kamakã Mongoió no território sagrado da comunidade.

A Justiça Federal alega que não foi formulado um pedido para que o sepultamento fosse realizado no território, sendo que este consta como objeto de reintegração de posse. A Justiça Federal autoriza ainda o auxílio de forças da Polícia Federal e Polícia Militar para impedir que seja realizado o sepultamento. No entanto, é preciso lembrar que o processo de retomada da comunidade Kamakã Mongoió acontece há cerca de três anos, resistindo contra as violentas investidas da outra parte do processo, a mineradora Vale S/A. Por isso, essa decisão viola o direito dos povos indígenas, assegurado na Constituição Federal, de sepultar seus membros no próprio território, conforme seus usos, costumes e tradições. Previsto para acontecer de maneira respeitosa e pacífica, o ritual indígena foi realizado restritamente entre a comunidade na madrugada desta quarta-feira, 6 de março, uma vez que a intimação que proibia o sepultamento só foi entregue por volta de 9h da manhã. No momento da entrega, lideranças indígenas, parlamentares e representantes de movimentos sociais prestavam apoio à Retomada Kamakã Mongoió. Enquanto a Vale tenta fugir de sua responsabilização pelo crime que atingiu a Bacia do Rio Paraopeba, soterrou vidas e causou danos ambientais irreversíveis, a Justiça permite que outras violações de direitos aconteçam

Não por acaso, tramita a partir de hoje também na Justiça Federal da 6ª Região de Belo Horizonte, o reinício do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente da Vale S/A, Fábio Schvartsman, denunciado por homicídio doloso duplamente qualificado no processo que julga a responsabilidade pelas 272 mortes causadas pelo rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, ocorrido no ano de 2019 em Brumadinho. Enquanto a Vale tenta fugir de sua responsabilização pelo crime que atingiu a Bacia do Rio Paraopeba, soterrou vidas e causou danos ambientais irreversíveis, a Justiça permite que outras violações de direitos aconteçam. Na manhã do dia 6 de março, após a intensa mobilização em homenagem ao cacique e depois do oficial de justiça já ter intimado a comunidade indígena, a Vale reconheceu ao Judiciário que a decisão já tinha perdido seu objeto, embora não tenha justificado até então os motivos pelos quais quis impedir o plantio da liderança em seu território. O homicídio do cacique Merong Kamakã Mongoió segue em investigação. Ao receber as homenagens e ser semeado em seu território, Merong torna-se sinal de resistência e apelo à justiça.

6 de março de 2024

Rede Igrejas e Mineração de Minas Gerais

Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

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Roraima está pegando fogo: drama para milhares de indígenas do Estado

 Roraima, o Estado mais ao norte do Brasil, bateu recorde histórico de focos de calor em fevereiro, com 2057 registros. No mesmo mês, o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,15m. Enquanto os não indígenas seguem a rotina na capital Boa Vista - coberta por fumaça desde meados de fevereiro - os Yanomami, Macuxi, Wapichana e povos de outras etnias vêem suas casas e roças serem destruídas por incêndios e, em quatro municípios, comunidades indígenas têm à disposição para beber água que mais parece lama. Para a Defesa Civil, a situação deve se estender por cerca de mais 60 dias, quando há a previsão do inverno começar no estado. Durante os próximos dois meses, a densidade de fumaça deve aumentar, assim como a quantidade de focos de calor e incêndios, que na avaliação do Corpo de Bombeiros são causados em 100% dos casos pela ação humana. “A certeza que temos é que Roraima está queimando, Roraima está pegando fogo”, diz Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, sobre a situação do Estado que enfrenta uma severa estiagem intensificada pelo fenômeno El Niño, conforme relatório da Defesa Civil. “Sabemos que 90% da população depende da água do Rio Branco e sabemos que essas pessoas precisam olhar para isso como uma consequência dos impactos da soja, do garimpo e grandes empreendimentos. Quando Edinho foi entrevistado, em 27 de fevereiro, relatou que cerca de 50 mil indígenas que vivem em comunidades estavam sem água potável porque 50 poços artesianos já haviam secado. No entanto, ele deixou o alerta de que até, a publicação desta reportagem, o número aumentaria. Para estas pessoas terem acesso a água é preciso caminhar 5km e até escolas indígenas ficaram desabastecidas. “Não queremos revoltar as pessoas, mas sensibilizar sobre qualidade de vida que não se dá só no mundo material, mas também no espiritual. É preciso entender que a água, as plantas, os animais e as pessoas são importantes e a vida não pode ser colocada abaixo do mercado. O capitalismo influencia as pessoas a se contentarem com que recebem e não com o que têm e ficará para o futuro”, refletiu o coordenador do CIR. Em quatro municípios, há comunidades indígenas bebendo água sem tratamento que pode ser comparada à lama, conforme o Diretor Executivo de Proteção e Defesa Civil, Coronel Cleudiomar Ferreira. Ele afirma que existe um esforço das prefeituras na distribuição de água, mas que não há garantia de que haja tratamento adequado, apenas que é menos prejudicial que a água suja de pequenos riachos.

Todos os 51 bairros da capital de Roraima estão tomados por fumaça, fuligem e cheiro de queimado há mais de uma semana. Boa Vista também é o 9º município com mais focos de calor em todo o Brasil neste ano. Outras oito cidades do estado integram o top 10, conforme o monitoramento do Programa Queimadas do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). (ISA)

sábado, 9 de março de 2024

4º Domingo de Quaresma - Lutar até à morte....para que todos tenham vida plena!

Um famoso filósofo  existencialista francês dizia que 'amar alguém é dizer a ele:você nunca morrerá'! E nós poderíamos acrescentar: 'e para que você não morra eu estou disposto a morrer por ti'! Expressão máxima de amor é não permitir que a pessoa amada seja morta, mesmo que isto custe a nossa própria vida. É o que Jesus de Nazaré fez. Ele foi ao encontro da sua morte não porque Deus queria o seu sacrifício, mas porque a sua incansável dedicação aos esmagados pela doença, pela lei e pela truculência o levou até às últimas consequências. Jesus havia entendido que se Deus Pai que é 'amor sem fim' estivesse em seu lugar teria feito o mesmo. Jesus não tinha dúvida que em Deus não cabe castigo, vingança e condenação, mas só vida em plenitude (eterna). Contudo, é preciso crer nisso, ou seja, amar e proteger o não amado e o desprotegido, lutar para lhe garantir vida plena, saber morrer por ele. Isso torna a vida do discípulo uma luz continua que desmascara os produtores de trevas, os alimentadores do ódio e do desprezo aos pequenos. Estes já têm o que merecem: se autoexcluem por si só!

sexta-feira, 8 de março de 2024

Breve análise de conjuntura da atual política indigenista e papel da igreja missionária

Fazer uma análise de conjuntura, mesmo que superficialmente, exige sempre não somente um volume de informações de qualidade, confiáveis, uma discreta cautela, mas também a clara identificação do ponto de vista a partir do qual se quer analisar. Ou seja, o seu lugar social escolhido para olhar-analisar o todo. O nosso ponto de vista tenta incorporar anseios e aspirações de diferentes etnias que manifestam e alimentam expectativas e mudanças radicais em suas diferentes realidades. Será, portanto, um ponto de vista parcial, delimitado, mas não por isso menos legítimo de quem reside em Brasília, por exemplo, e ocupa um cargo numa repartição pública responsável por políticas indigenistas...Dito isso, gostaria de salientar algumas sombras que pairam sobre o novo governo Lula ou 'omissões simbólicas' que vêm deixando bastante amargo em boca para quem almejava algo mais alvissareiro...

Talvez um dos pontos negativos do atual governo com relação à política indigenista tenha sido o de não ter sinalizado desde o início, de forma enfática, embora simbólica, para que veio. É bem verdade que herdou um fardo carregado de atraso, de omissão, de falta de orçamento, de descaso generalizado, de militarização da FUNAI e de desmantelamento de infraestruturas, mas poderia ter aproveitado, por exemplo, da crise humanitária na Terra Yanomami, em Roraima, - revelada bem no início de janeiro de 2023 - para deixar claro quais ações norteadoras o novo governo iria seguir. Infelizmente, limitou-se a uma intervenção militar pontual (exército e Polícia Federal) contra garimpeiros e outros invasores que, embora explorada pela mídia, não se tem se transformado numa renovada política de proteção e de assistência sanitária permanente, pelo menos para aquele povo indígena já duramente provado e agredido. Basta dizer que no primeiro ano do governo Lula foram verificadas 363 mortes de Yanomami. O número representa um aumento de 20 óbitos em relação a 2022, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No governo anterior os dados eram descaradamente  subnotificados.

Outra sinalização de enorme poder simbólico que o novo governo poderia ter lançado foi a que diz respeito às demarcações de terras indígenas. Ou seja, deveria ter deixado claro como, posteriormente, tentou fazer mediante a recente mensagem que o governo enviou em fevereiro passado ao congresso, que iria sim, retomar de forma decidida, firme e consistente o que a Constituição determina: a legalização definitiva de todas as terras indígenas que deveriam ter sido demarcadas no prazo de 5 (cinco) a partir da promulgação da Constituição de 1988. Infelizmente, ao longo de todo o ano de 2023 limitou-se a homologar (reconhecimento final formal) somente 08 (Oito) Terras Indígenas, e a identificar 03 (três). Assim, o Brasil sai de um jejum de cinco anos sem demarcações, - incluindo parcialmente o governo Temer, - chegando ao total de 511 Terras Indígenas com processos de demarcação finalizados. Contudo, ainda faltam 255 Terras Indígenas com seu processo de demarcação já iniciado e ainda não finalizado. A retomada da política indigenista oficial e dos processos de demarcação no governo Lula se dá, tragicamente, numa conjuntura desfavorável para os povos indígenas já que as ofensivas aos direitos indígenas se fortaleceram no Legislativo e no Judiciário, onde se multiplicam propostas legislativas anti-indígenas e teses jurídicas como a do "Marco Temporal". Esta última tese rejeitada pelo STF foi proposta e aprovada no Senado, criando insegurança jurídica e um engodo de não fácil solução. 

Uma série de pressões do Congresso sobre o Executivo  vêm impactando esse cenário, a começar pela pasta que ficaria responsável pela declaração das Terras Indígenas. Abrigada inicialmente no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) - cuja ministra é uma indígena Guajajara do nosso Estado, Sônia Guajajara, - essa atribuição voltou ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJ), sob a responsabilidade do então ministro Flávio Dino. O senador Dino, que assumiu em fevereiro de 2024 uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF), atravessou seu mandato como ministro sem reconhecer a posse permanente indígena de  nenhuma Terra Indígena e deixou para Ricardo Lewandowski, seu sucessor, ao menos 23 portarias prontas para assinatura. 

Um último ponto que vale a pena ser frisado é de que, se de um lado é extremamente positivo o fato de o governo Lula ter criado um ministério específico para os povos indígenas (MPI) e ter colocados indígenas em cargos estratégicos (FUNAI- Fundação Nacional dos Povos Indígenas, SESAI – Secretaria Especial Saúde Indígena, etc.), do outro lado, ao não garantir um orçamento adequado e ao não outorgar plena autonomia de ação, cria as condições reais de ‘jogar aos leões’ lideranças indígenas de renome e ‘queimar’ a experiência pioneira iniciada. Nesse sentido, muitas lideranças indígenas que tentaram dar um 'desconto' nesse primeiro ano de governo e tiveram a paciência histórica de garantir confiança esperam que, a  partir desse ano de 2024 o governo Lula seja mais proativo e ousado. Que se concentre, essencialmente, na defesa permanente dos territórios já demarcados evitando todo tipo de invasão e esbulho; que tome iniciativas claras para que se reconheçam formalmente os territórios indígenas ainda não identificados; e, enfim, que se planejem ações bem estruturadas para despejar e expulsar quantos os têm ocupado ilegalmente ao longo desse anos. Simultaneamente, espera-se que se invista sempre mais, e de forma mais consistente e qualificada no atendimento à saúde indígena, prevenindo e combatendo doenças e encarando a luta contra a desnutrição com ações globais, estruturantes e permanentes. 

Não podemos, enfim, deixar de ignorar que ao lado de uma ‘política indigenista’ há, também, e sempre, uma ‘política indígena’ – aquela que é realizada pelos próprios povos indígenas, - que não é badalada pela mídia, mas que assume sempre mais proporções significativas. Através de inúmeras iniciativas de fiscalização territorial (ex. os guardiões da floresta tão presentes e incisivos no Maranhão) e múltiplas medidas político-pedagógicas os próprios povos indígenas, seja em nível regional que nacional, se articulam e intervêm, autônoma e internamente, para proteger, denunciar, pressionar e expulsar aqueles  invasores (garimpeiros, fazendeiros, sojicultores) que se apossaram de enormes fatias de terras indígenas, inclusive graças a determinadas portarias assinadas no governo anterior que lhes dá esse poder!  

No que se refere ao papel da igreja missionária na atual conjuntura é importante frisar os seguintes pontos: 

a. A igreja deveria reconhecer, de fato, a plena autonomia e maturidade dos povos indígenas sem querer ser sua ‘porta-voz’, sem ‘falar por eles’ ou sem ‘se substituir a eles’. É preciso, isso sim, fazer com que os povos aos quais a igreja é chamada a servir sintam que ela é uma aliada fiel, parceira, ‘amiga’ de todas as horas, mas que, afinal, devem ser eles mesmos os protagonistas na condução das políticas públicas com foco na sua realidade específica. Cabe à igreja o papel de fazer ecoar com seriedade, profissionalismo, coragem e sem mitificações as opiniões, as posturas, as reivindicações, e as denúncias que os próprios povos indígenas encaminham. 

b. Como igreja missionária, diante das múltiplas contradições, - inclusive no seio do próprios povos indígenas, - polarismos sociais e culturais, e outras formas de agressão, deveria assumir sempre mais o papel de humilde mediadora, servidora dedicada de suas aspirações e necessidades, auscultadora paciente de seus sonhos e dramas, e defensora intransigente dos direitos indígenas,  independentemente de quem esteja governando. 


segunda-feira, 4 de março de 2024

O sacerdócio não é a solução. Artigo de Luigino Bruni

 As mulheres ainda não encontraram o seu devido lugar na Igreja, ainda não conseguimos reconhecê-las na sua plena vocação e dignidade. Há dois mil anos esperam para serem vistas como Jesus as via, que foi revolucionário em muitas coisas e entre estas pelo papel que as mulheres tinham na sua primeira comunidade. Mas embora algumas das suas revoluções se tenham tornado cultura e instituições da Igreja, a sua visão da mulher e das mulheres ainda está presa no grande livro dos “não ainda” que não se tornam “já”.

Se olharmos com atenção, todos vemos que a Igreja não existiria sem a presença das mulheres, porque elas são uma grande parte da alma e da carne do que resta hoje do Cristianismo e, antes ainda, da fé cristã - estou ficando cada vez mais convencido de que se quando Jesus voltar à terra e ainda encontrar a fé, esta será a fé de uma mulher. Mas todos sabemos e todos vemos que a governança eclesial, em particular aquela da Igreja Católica, ainda não foi capaz de tornar concreta e operacional a igualdade e a verdadeira reciprocidade entre homens e mulheres. E assim a Igreja Católica continua sendo um dos lugares do mundo onde o acesso a algumas funções e tarefas ainda está ligado ao gênero sexual, onde nascer mulher já orienta desde o berço o percurso de vida daquela futura cristã nas instituições, na liturgia, nos sacramentos e na pastoral das comunidades católicas. Embora conhecendo e reconhecendo muitas das razões daqueles que lutam por isso, nunca pensei que a solução fosse estender o sacerdócio às mulheres, porque enquanto o sacerdócio ministerial for compreendido e vivido dentro de uma cultura clerical, ampliar a ordem sagrada para as mulheres significaria, de fato, clericalizar também as mulheres e, portanto, clericalizar ainda mais toda a Igreja.

 O grande desafio da Igreja hoje não é clericalizar as mulheres, mas desclericalizar os homens e, assim, a Igreja. Seria necessário, portanto, compreender onde estão os locais das boas batalhas e concentrar-se neles, mulheres e homens juntos - um erro comum é pensar que a questão feminina é um assunto apenas das mulheres. É, portanto, necessário trabalhar, homem e mulher, na teologia e na práxis do sacerdócio católico que ainda está demasiado ligado à época da Contrarreforma, porque uma vez reconduzido o sacerdócio ao da Igreja primitiva, tornar-se-á natural imaginá-lo como um serviço de homens e mulheres. Se, ao contrário, empregarmos agora as nossas energias para introduzir algumas mulheres no clube sagrado dos eleitos, apenas aumentaremos o número da elite sem obter bons resultados nem para todas as mulheres nem para a Igreja. O atual Sínodo, com o seu novo método, pode ser um bom começo também nesse processo necessário.

Mas também há uma boa notícia. Enquanto se espera por esse trabalho urgente, a Igreja Católica já está mudando muito rapidamente em algumas dimensões importantes. Na Igreja com o Papa Francisco, as mulheres estão muito mais presentes nas instituições do Vaticano, nas dioceses e nas comunidades eclesiais, em funções cada vez mais importantes, e agora muitas são leigas e/ou casadas. As teólogas e as biblistas também estão crescendo em quantidade, qualidade, estima e impacto. São fenômenos menos chamativos que os debates sobre o sacerdócio feminino, mas estão criando as condições para que um dia finalmente “a realidade seja superior à ideia” (Evangelii gaudium), e num amanhecer particularmente luminoso a Igreja acordará finalmente também mulher, sem se dar conta e sem fazer muito barulho, como as coisas realmente importantes da vida.