sábado, 30 de dezembro de 2023

Sagrada família - Quem ama, - não importa quem, - já está 'abençoado'!

Nada de mais comum e de mais próximo de nós como na Sagrada Família de Nazaré! Só pensar numa noiva ainda solteira que fica grávida e sem a colaboração do noivo para descartar qualquer veleidade de 'perfeição moral'! E, do outro lado, um noivo que, mesmo se sentindo traído, assume como esposa, - mesmo sem casá-la, - a noiva prometida, a mãe de um filho que não era seu! Parece algo inverossímil, mas a história desse amor transbordante vivenciada e testemunhada por Jesus de Nazaré tem raízes não na fidelidade a leis e preceitos morais de seus pais, mas na experiência concreta de ter sido amado por eles desde o seu nascimento. Não importa se não foi um amor 'abençoado' por um rabino, um padre ou um pastor, ou se foi um amor oferecido por um casal de sexo diferente, ou por um do mesmo sexo, ou por um casal de tios, de padrinhos, ou por uma mãe solteira ou por uma avó. A capacidade de oferecer amor incondicional, de proteger, de cuidar, de estar próximo, de conduzir pela mão e de poder sentar no colo de alguém que ama, ainda é a saída para a família planetária. Não será perfeita como alguém chega a idealizar, mas poderá evitar que surjam mais monstros, e que a família pós-moderna não seja mais autodestrutiva...

O nascimento de Jesus é o desafio da vida. Artigo de Massimo Recalcati

O Natal celebra a festa do nascimento de Jesus, do Deus que se faz homem, que mergulha na vida quebrada que é a nossa vida, a vida de todos os seres humanos. A mensagem cristã não é, de fato, o de abandonar esta vida para alcançar outra vida, uma vida que ele nunca conheceria nem nascimento nem morte, uma vida atemporal, perfeitamente realizada, eterna, removida do inferno de este mundo. Pelo contrário, é continuar a nascer nesta vida, nascer de novo, de nunca deixar de nascer. Trata-se de abraçar plenamente o desafio da vida, da sua insegurança, da sua carência, da uma vida espedaçada. Isto é o que Freud não entende quando reduz a vida cristã a uma vida que gostaria de escapar da dureza do mundo, para uma vida que se protege da turbulência da vida graças ao escudo oferecido por Deus, muito pelo contrário: desde o seu nascimento o ser humano encontra a sua vulnerabilidade e sua insuficiência. A vida cristã não é uma vida assegurada, protegida e garantida, mas vida que experimenta o abandono, a perda, a perplexidade.

O homem de fé não é poupado, não é subjugado por um instinto de segurança, não tende a escapar da dureza da vida, mas ele sempre se vê lançado, como Paulo sublinhou vigorosamente, na "estreiteza", na “perseguição”, na “fome”, na “nudez”, no “perigo” (Rm 8, 35). No caso de nascimento de Jesus, o divino se rebaixa e se esvazia de todo poder sobrenatural para se tornar homem. É a humildade do estábulo, da palha, da manjedoura, do hálito dos animais que aquece a criança que veio do céu. É o desenraizamento de uma vida que não tem casa, nem alojamento, nem residência, nem títulos, nem poder. Até parece a divisão que atravessa a criatura humana descrita pela Torá que foi aqui radicalmente assumida.

Sendo imagem e semelhança de Deus, encarnando o esplendor da criação e, ao mesmo tempo, ser pó destinado a voltar ao pó. A vida afirma-se na sua força nua e, ao mesmo tempo, em sua fragilidade igualmente nua. É isso que sempre nos surpreende no espetáculo do nascimento. Acontece com um gatinho, com uma flor ou para uma criança. Luz e poeira parecem comprimidas em um único espasmo. Nascer novamente, continuamos a nascer, não apesar, mas precisamente porque a nossa vida é feita de pó e é destinado a voltar ao pó. No caso do nascimento, a verdade da vida manifesta-se como vontade de viver. Por esta razão, Sartre acreditava, paradoxalmente, que se deve optar por nascer para realmente nascer. Isso significa que o evento de vida que nasce não pode ser cumprido como um simples acontecimento da natureza, mas exige um ato singular de adesão à vida.


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

OMS descreve o hospital Al-Shifa, no norte de Gaza, como um “banho de sangue”

Uma missão conjunta de pessoal da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das Nações Unidas conseguiu aceder ontem, sábado, 16 de dezembro, ao interior do hospital Al-Shifa, no norte de Gaza, para entregar material médico e avaliar a situação no país. Centro. A equipe entregou medicamentos e suprimentos cirúrgicos, equipamentos de cirurgia ortopédica e suprimentos e medicamentos para anestesia ao hospital. A equipe descreveu o departamento de emergência como um “banho de sangue”, com centenas de pacientes feridos lá dentro e novos pacientes chegando a cada minuto. Pacientes com lesões traumáticas estavam sendo suturados no chão e tinham tratamento limitado ou nenhum tratamento para dor no hospital. A equipe da OMS disse que o pronto-socorro está tão cheio que é preciso ter cuidado para não pisar nos pacientes no chão. Pacientes críticos estão sendo transferidos para o Hospital Al-Ahli Arab para serem submetidos a cirurgias.


Segundo a OMS, o Hospital Al-Shifa, que atualmente funciona minimamente, precisa urgentemente de retomar pelo menos as operações básicas para continuar a cuidar de milhares de pessoas que necessitam de cuidados médicos que salvam vidas. Al-Shifa, que já foi o maior e mais importante hospital de referência de Gaza, agora abriga apenas um punhado de médicos e algumas enfermeiras, juntamente com 70 voluntários, trabalhando no que a equipe da OMS descreveu como “circunstâncias incrivelmente difíceis”, “hospital que precisa de reanimação”. As salas de cirurgia e outros serviços importantes permanecem fora de serviço devido à falta de combustível, oxigênio, pessoal médico especializado e suprimentos. O hospital só pode fornecer estabilização básica de traumas, não tem sangue para transfusões e tem poucos funcionários para atender o fluxo constante de pacientes. A diálise é fornecida a aproximadamente 30 pacientes por dia, e as máquinas de diálise funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, utilizando um pequeno gerador.

Dezenas de milhares de pessoas deslocadas estão a usar o edifício do hospital e os seus terrenos como abrigo. Muitos deles pediram à equipa da OMS que contasse ao mundo o que está a acontecer, na esperança de que o seu sofrimento seja em breve aliviado. O Hospital Al-Shifa continua a enfrentar grave escassez de alimentos e água potável para profissionais de saúde, pacientes e pessoas deslocadas. Isto reflecte preocupações sérias e crescentes sobre a fome persistente na Faixa de Gaza e as consequências da subnutrição na saúde das pessoas e na susceptibilidade a doenças infecciosas. “O Hospital Al-Shifa, pedra angular do sistema de saúde de Gaza, deve ser restaurado com urgência para que possa cuidar de um povo sitiado e preso num ciclo de morte, destruição, fome e doença”, resume a organização numa nota de imprensa. (IHU)


Declaração Fiducia supplicans. Francisco abre para a bênção a homoafetivos/as. Artigo de Andrea Grillo

"A Declaração Fiducia supplicans, com um novo 'embora', redimensiona o absolutismo da forma canônica e reabre o espaço para uma Igreja profética também no âmbito matrimonial e sexual. É um começo e uma mudança de paradigma que não deve ser negligenciado", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado por Come se non, 18-12-2023.

Eis o artigo.

460 anos depois, chega de Roma um documento cuja estrutura assenta num “concessivo”, não tão explícito e perturbador como o de 1500, mas igualmente claro. Depois, tratou-se de colocar um controle formal sobre todos os casamentos entre pessoas batizadas, “mesmo que os casamentos clandestinos sempre tenham sido considerados válidos”; hoje trata-se de poder abençoar toda união sexual “mesmo que a doutrina do matrimônio seja reafirmada”. Vejamos melhor como se expressa o texto da Declaração nas primeiras linhas, com seu “porém”: “Esta Declaração mantém-se firme na doutrina tradicional da Igreja em relação ao casamento, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênçãos semelhantes a um rito litúrgico que possa criar confusão. O valor deste documento, porém, é oferecer uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, o que nos permite ampliar e enriquecer a compreensão clássica estritamente ligada a uma perspectiva litúrgica”. Um exame cuidadoso desta passagem nos permite compreender plenamente o seu significado e limites.

a) A “doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento” é reafirmada e ao fazê-lo não permite “qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico, que possa criar confusão”. Isto, parece dizer o texto, está em continuidade com aquela compreensão que o Decreto Tametsi inaugurou, atribuindo ao “rito litúrgico eclesial” o caráter constitutivo da sacramentalidade do matrimônio. Isto, deve-se dizer, em 1563, parecia escandaloso. Na verdade, introduziu uma “nova habilidade”, que de uma só vez superou a longa experiência de liberdade ritual, que marcou a tradição durante quase 1.500 anos de vida.

b) Tametsi (embora) o que acaba de ser afirmado permaneça válido, o texto passa a dar uma "contribuição específica e inovadora": trata-se de uma consideração pastoral e litúrgica da bênção, que abre outra consideração dos fatos existenciais e das tarefas eclesiais.

c) Isto, por sua vez, implica um alargamento e um enriquecimento da experiência da “bênção eclesiástica”, o que constitui uma clara “reviravolta” em relação à decisão tridentina.

Eu gostaria de focar brevemente no significado desta contribuição inovadora. Para compreendê-lo, devemos primeiro observar como o ponto de observação mudou em comparação com a Responsum de apenas 2 anos atrás. Nessa resposta negativa, o cerne do argumento era que a “bênção” de um casal do mesmo sexo não só criaria confusão, mas aplicaria a bênção a uma condição que “não pode ser abençoada”. A Declaração responde ao duplo argumento com um esclarecimento inicial: “a bênção é dita de muitas maneiras”. A perspectiva com que foi definida a resposta para 2021 é demasiado estreita e míope. Poderíamos dizer "mesquinha", citando a expressão de Amoris Laetitia 303.

Daí emerge a nova possibilidade, que surge de um uso da “bênção” que não é interno à lógica formal do sacramento, mas que se move entre o coração e a margem mais externa da vida eclesial. A bênção é a capacidade de “reconhecer o bem que existe” e que deve ser ativada precisamente nas condições em que as margens de reconhecimento social e pessoal são mais precárias. Esta abertura libera energias eclesiais em pelo menos três direções principais:

– restitui à “palavra profética” uma dignidade pastoral, que no contexto matrimonial corre o risco de permanecer esmagada sob o registro régio de validade e legitimidade. A bênção diz ao bem onde ele está, segundo as regras, sem as regras e até apesar das regras;

– permite articular a linguagem da Igreja de forma menos rígida, restabelecendo o equilíbrio entre o registro sacerdotal, o registro régio e o registro profético;

– precisamente o “reconhecimento dos fatos” constitui um alargamento das perspectivas da teologia matrimonial, evitando o curto-circuito entre sacramento e contrato, que muitas vezes obriga os profetas e os sacerdotes a falar e a raciocinar antes de mais nada como burocratas.

O Decreto “Tametsi”, há 460 anos, inaugurou um papel oficial para a Igreja que ao longo dos séculos se tornou ao mesmo tempo demasiado e pouco. A Declaração Fiducia supplicans, com um novo "embora", redimensiona o absolutismo da forma canônica e reabre o espaço para uma Igreja profética também no âmbito matrimonial e sexual. É um começo e uma mudança de paradigma que não deve ser negligenciado.


Marco Temporal. Em nota, CNBB pede que seja assegurada a garantia dos territórios aos povos indígenas

 “A recente decisão do Congresso Nacional, de 14 de dezembro de 2023, que derrubou a maior parte dos vetos presidenciais ao Projeto de Lei (PL) 2903/2023, dentre eles o marco temporal, ameaça a vida e a integridade dos povos indígenas, desestabiliza a relação com os demais poderes da República, cria obstáculos à proteção dos territórios originários e viola o direito às terras que eles tradicionalmente ocupam, prerrogativa já confirmada pelo Supremo Tribunal Federal”. Na nota, os bispos recordam um trecho da exortação Laudato Si’, do Papa Francisco, o qual afirma que os povos indígenas ocupam especial condição na Casa Comum, a criação, “pois, ‘para eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus… Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida'”, (Papa Francisco, LS 146). Na nota, pedem diálogo às instituições no sentido de “unir esforços para evitar que mais sofrimento e morte sejam parte da realidade dos povos indígenas brasileiros”.

Eis a nota.

O cuidado com os povos indígenas é o cuidado com a Casa Comum

“Toda a criação geme conjuntamente e sofre dores de parto até agora” (Rm 8,22).

A recente decisão do Congresso Nacional, de 14 de dezembro de 2023, que derrubou a maior parte dos vetos presidenciais ao Projeto de Lei (PL) 2903/2023, dentre eles o marco temporal, ameaça a vida e a integridade dos povos indígenas, desestabiliza a relação com os demais poderes da República, cria obstáculos à proteção dos territórios originários e viola o direito às terras que eles tradicionalmente ocupam, prerrogativa já confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. O julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365 declarou inconstitucional a tese do marco temporal, vez que não reconhecida pela Constituição Federal. A Casa Comum é toda a Criação. Nela, os povos indígenas ocupam especial condição, pois, “para eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus… Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida” (Papa Francisco, LS 146). Sua Santidade também exorta todos os homens e mulheres de boa vontade a repensar sobre o papel que os povos indígenas podem desempenhar no cuidado da criação de Deus. “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo… Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós” (LS 14). São comunidades que confiam e cuidam da terra há gerações, construindo um conhecimento íntimo dos ciclos naturais das plantas, animais e clima.

É com esse espírito, de diálogo e de confiança, que as instituições, os poderes da República e a sociedade devem unir esforços para evitar que mais sofrimento e morte sejam parte da realidade dos povos indígenas brasileiros. Como nação democrática, precisamos assegurar o mínimo dos direitos aos povos indígenas, sendo o primeiro e primordial, a garantia de seus territórios e do bem-viver, na forma da Constituição. Ao cuidar dos povos indígenas estamos a cuidar da Casa Comum, e ao mesmo tempo, de todos nós – a vida da Criação que pertence somente ao Senhor. Em Guadalupe, no México, Maria se apresentou como uma jovem de traços indígenas. Assim se realizam as palavras do Evangelho com as quais o Senhor Jesus agradece ao Pai por esconder as coisas aos grandes e sábios e as revelar aos pequeninos (cf. Mt 11,25). Que Nossa Senhora de Guadalupe proteja os povos indígenas e a todos nós.


Dom Jaime Spengler -Arcebispo da Arquidiocese de Porto Alegre – RS Presidente da CNBB e demais membros da diretoria


sábado, 16 de dezembro de 2023

III Advento - Emprestar a própria voz a quantos são silenciados pelos senhores da 'palavra revelada' (Jo.1, 6-8;19-20)

Não precisa ser, necessariamente, negro, índio, palestino, prostituta, pobre ou outros para debater e denunciar os inúmeros preconceitos que afetam vastas populações. Não precisamos ser necessariamente ‘luz’ para poder anunciar e testemunhar a LUZ VERDADEIRA e os iluminados que se dispõem a enfrentar e a combater as trevas que nos paralisam! O que não podemos fazer numa hora tão crítica como a atual é calar, e nos refugiar num anonimato cômodo e covarde. João, que não ostentava títulos de profeta, nem de ungido representante do povo, compreendeu que o único instrumento que lhe havia sobrado era a sua própria voz. Não só emprestava a sua voz a quantos haviam sido  silenciados pelos senhores da lei, da tradição e da ‘palavra’ supostamente ‘revelada’, mas a utilizava também para ser eco de esperança e de transformação que estavam sendo trazidas por ‘alguém’ que já estava entre eles. Não, portanto, um fantasmagórico 'messias' vindo de longe, mas um ser sensível e solidário surgido no meio do seu povo! Entretanto, para ser reconhecido e acolhido por todos implicava numa revisão radical de todos os caminhos, as opções, e os comportamentos assumidos até então, e se revestir de coragem para podar a crista de muitos montes que se achavam inalcançáveis! 


domingo, 10 de dezembro de 2023

O Papa Francisco desafiou os teólogos. Mas somos ousados o suficiente para responder? Artigo de Agbonkhianmeghe Emmanuel Orobator

.....Uma característica interessante de uma teologia culturalmente contextualizada é o seu caráter dialógico e relacional em múltiplos níveis. Como e onde fazemos teologia não está desvinculado das comunidades e contextos deste exercício. A nossa escrita, estudos e ensino devem possuir um desejo profundo de trazer alguma coerência ao caos e às crises que prevalecem no nosso mundo hoje, como a migração, a intolerância, a desigualdade, a pobreza, a violência, as guerras e as alterações climáticas. Este não é um ensinamento novo. A metodologia da teologia da libertação é um testemunho vivo da tarefa da teologia como reflexão e práxis que coloca as proposições do Evangelho em diálogo com o presente, envolvendo e criticando culturas, contextos e tradições que não conseguem defender a dignidade das pessoas e promover o seu florescimento como imago Dei. Vista sob esta luz, a teologia não é uma disciplina isolada e egocêntrica. O envolvimento teológico ultrapassa fronteiras disciplinares e desmorona silos para criar uma esfera ilimitada. Neste espaço, a teologia ocupa o seu lugar, não como “rainha das ciências” medieval, mas como parceira numa teia de relações disciplinares, comunidades e redes, animada por um objetivo singular de transformar “as condições em que homens e mulheres vivem diariamente, em diferentes ambientes geográficos, sociais e culturais” (Ad Theologiam Provendam, n. 4). Francisco batiza esta abordagem como “transdisciplinaridade” (n. 5), sugerindo que o empreendimento teológico é semelhante a um desporto de equipe onde as qualidades essenciais de cooperação, colaboração e compromisso são complementadas por disposições sinodais de encontro, escuta, diálogo e discernimento.

.......A meu ver, estas características são definidoras de uma teologia cujo logos não submerge o seu theos, mas extrai sabedoria da intersecção de ambos. Outra forma de colocar a questão é esta: a forma como faço teologia é uma função do meu enraizamento na vida no Espírito, bem como nas culturas, cosmovisões e tradições religiosas das pessoas e comunidades que os meus estudos deveriam servir. Fazer teologia de maneira semelhante exige autenticidade e audácia, criatividade e caridade. Aqui, a carta de Francisco me lembra a constituição apostólica, Veritatis Gaudium (sobre universidades e faculdades eclesiásticas), que descreve a educação teológica como “uma espécie de laboratório cultural providencial” (n. 3). Eu me pergunto: se as escolas e faculdades de teologia se imaginassem como um “laboratório cultural”, como seria o seu corpo docente? Qual seria o perfil de seus alunos? Um laboratório é um espaço de experimentação e inovação. Imagino que o resultado será uma teologia que Francisco acredita tocar “os corações de todos” (Ad Theologiam Provendam, n. 6). Francisco lançou o desafio aos teólogos e às suas instituições para discernirem a validade, a relevância e a utilidade da nossa missão na profunda “mudança de época” que caracteriza os nossos tempos. No mundo atual, rapidamente globalizado e tecnologicamente sofisticado, as questões que temos de enfrentar no nosso discurso teológico não foram suficientemente previstas nem esgotadas por fontes e metodologias familiares, experimentadas e usadas. O desafio de Francisco oferece novas oportunidades para a reimaginação teológica, criatividade e inovação. Quem se atreve a aceitar o desafio? (IHU)

Percentual de pessoas em situação de pobreza no país caiu para 31,6%

 O percentual de pessoas em situação de pobreza caiu de 36,7% em 2021 para 31,6% em 2022, enquanto a proporção de pessoas em extrema pobreza caiu de 9% para 5,9%, neste período. Os dados estão na Síntese de Indicadores Sociais 2023: uma análise das condições de vida da população brasileira, divulgada nesta quarta-feira, 6, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2022, havia 67,8 milhões de pessoas na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza. Frente a 2021, esses contingentes recuaram 10,2 milhões e 6,5 milhões de pessoas, respectivamente.

De 2021 a 2022, a extrema pobreza e a pobreza recuaram em todas as regiões, em especial no Norte (-5,9 ponto percentual e -7,2 ponto percentual, respectivamente) e no Nordeste (-5,8 ponto percentual e -6,2 ponto percentual). Em 2022, entre as pessoas com até 14 anos de idade, 49,1% eram pobres e 10%, extremamente pobres. Na população com 60 anos ou mais, 14,8% eram pobres e 2,3%, extremamente pobres. Entre as pessoas de cor ou raça preta ou parda, 40% eram pobres em 2022, um patamar duas vezes superior à taxa da população branca (21%). O arranjo domiciliar formado por mulheres pretas ou pardas, sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos concentrou a maior incidência de pobreza: 72,2% dos moradores desses arranjos eram pobres e 22,6% eram extremamente pobres. A participação dos programas sociais no rendimento domiciliar das pessoas em situação de extrema pobreza chegou a 67% em 2022. Já a renda do trabalho foi responsável por apenas 27,4% do rendimento deste grupo.

“Quando a análise considera a renda dos domicílios com os menores rendimentos, o peso dos benefícios de programas sociais se torna mais relevante, além de apresentar maior oscilação em anos recentes. Para aqueles domicílios com o rendimento domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo, a participação dos benefícios de programas sociais chegou a 44,3% do rendimento total em 2022, o que representou crescimento em relação a 2021, quando o peso desses benefícios foi 34,5%, mas manteve-se abaixo do verificado para 2020 (46,7%)”, informa o IBGE. Entre os domicílios considerados pobres, os benefícios de programas sociais representavam 20,5% dos rendimentos e a renda do trabalho, 63,1%.

Caso não existissem programas sociais, o índice de Gini que mede a desigualdade na distribuição de renda, teria sido 5,5% maior, passando dos atuais 0,518 para 0,548. O Índice de Gini é um instrumento para medir o grau de concentração de renda, apontando a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. O índice varia de zero a um, sendo que zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. Já o um significa o extremo da desigualdade, ou seja, uma só pessoa detém toda a riqueza. (IHU)

Quais caminhos João preparou para Jesus?

João Batista na tradição litúrgica do advento parece adquirir uma importância incomum. A sua pregação bastante antagônica à de Jesus parece se sobrepor à mensagem e ao testemunho do próprio Jesus. O que chamou a atenção dos organizadores da caminhada litúrgica para dar centralidade a esse profeta do Antigo Testamento? Em que sentido João teria sido o ‘precursor’, aquele que prepara o caminho a Jesus? Afinal, que caminhos são esses? 

Não há dúvida de que João se move dentro da ‘velha teologia’ judaica segundo a qual a vinda do messias seria próxima e devastadora. João, que supomos ser filho de Zacarias, sacerdote, foi educado a incorporar uma concepção bastante rígida de ‘Deus’. Um Deus ameaçador, intransigente e intolerante. A sua pregação não prevê ‘salvação’ sequer para os que ‘produzem frutos’. Parece ter plena certeza de que a sua geração, a nação Israel, está num nível de degradação social e religioso tal que é incapaz de reagir diante da iminente ‘vinda justiceira’ de Deus. Ele prega a conversão comportamental, a assunção de gestos e escolhas que apontam para uma certa justiça social, mas não deixa claro que as pessoas ao fazerem isso teriam chance de salvação. Pelas informações embora suspeitas dos evangelistas podemos supor que houve uma certa convivência inicial entre Jesus e João e, posteriormente, entre os dois grupos de discípulos dos dois profetas. Há suficientes indícios de rivalidades e disputas entre eles ao longo das narrativas evangélicas. Bastante complexo definir quem influenciou quem, qual o peso de um e de outro, quais discípulos de um que se transferiram para o grupo do outro...Vamos, contudo, adotar a informação segundo a qual a pregação de João despertou o interesse de Jesus e, de certo modo, o colocou em crise. Não há como negar de que há um Jesus antes da experiência do Jordão, - portanto, na sua breve e densa experiência com João e o seu grupo, - e o Jesus após isso. Voltemos, agora, à pergunta inicial: quais caminhos João teria preparado? Afinal, mal se conheciam, e João não era um adivinho para saber que Jesus era ou teria se tornado o ‘messias’. Afinal, João sempre duvidou da identidade messiânica de Jesus. Só lembrar os ‘emissários’ que João enviava a Jesus perguntando se ‘era ele mesmo o enviado ou deviam esperar outro’. Sem falar no fato que o próprio Jesus nunca se assumiu como o Messias, embora na sua resposta indireta a João listasse as típicas atitudes do ‘enviado’ que consistiam em abrir a vista aos cegos, curar leproso, etc. e, de forma inédita, ‘aos pobres é anunciada a boa nova’. Essa dúvida de João misturada com confusão teológica advém do fato de que Jesus tinha um comportamento que era frontalmente oposto às suas expectativas messiânicas. 

João  pregava a DES-GRAÇA que, afinal, já estava presente de forma óbvia no cotidiano das pessoas e Jesus pregava a GRAÇA, a nova e enésima chance de redenção que Deus oferecia generosamente às pessoas. O Deus justiceiro, impaciente, vingativo e raivoso de João não encontra correspondência na pregação e nas atitudes de Jesus que apresentava um Deus compassivo, paciente, generoso, misericordioso. Acreditamos que, paradoxalmente, é nisso que se dá a ‘preparação dos caminhos’ de João para entender e acolher a ‘novidade’ trazida por Jesus. É como se João dissesse aos seus ouvintes e discípulos que o seu ‘deus’ caducou, que a sua visão arcaica e distorcida de Deus venceu o prazo, pois pouco construiu e serviu. Havia chegado a hora de compreender Deus de uma forma nova. Um Deus que prática sim um amor exigente, mas que jamais castiga, ameaça ou chantageia seus filhos. Sem a ‘pregação demodée’ de João não conseguiríamos compreender o alcance e a originalidade da pregação e do testemunho de Jesus. Por isso que o próprio Jesus se de um lado reconhece a grandeza de João em despertar consciência, em alertar sobre uma responsabilidade pessoal e coletiva quanto aos destinos da nação, do outro lado reconhece que diante do ‘novo momento/Kairós/ Boa nova’ o ‘menor’ nessa nova conjuntura real de Deus ‘é maior que João Batista’. É maior porque justamente os pequenos invisíveis compreenderam o que João não conseguiu compreender: o Deus da compaixão e da misericórdia, enfim, começou a olhar, perdoar e a proteger os pequenos, os pecadores tão detestados e condenados pelo ‘deus’ de João! 


sábado, 9 de dezembro de 2023

II Advento - Precisamos de profetas da GRAÇA!

Profetas da desgraça têm existido aos montes. Fazem sucesso porque alarmismo é com eles mesmos! Profetas que anunciam a graça e que tentam construí-la conosco, são raros. Quase sempre são ignorados. Nos desertos sociais e humanos planetários várias posturas proféticas duelam e se defrontam. Há críticos azedos de tudo o que existe, há comerciantes de ilusões e manipuladores inescrupulosos de consciências ingênuas. Eles chovem no molhado! Pouco acrescentam. Hoje nós precisamos de profetas que tentam reproduzir o testemunho de Jesus, e não o de João Batista. Não é mais suficiente pregar a desgraça que já é obvia, mas é preciso anunciar e construir a graça que ainda não conseguimos visualizar. Não é mais suficiente fugir do cotidiano desafiador e se refugiar em seus próprios áridos desertos. É urgente transformar os desertos humanos em férteis jardins revestidos de humanidade, de paz e de compaixão. Passou o tempo de ‘batizar’ a humanidade seguindo ritos engessados e tradições petrificadas. É preciso batizar no ESPÍRITO que recria, transforma, liberta, motiva e subverte tudo e todos! O inédito de Deus começou. É agora!

sábado, 2 de dezembro de 2023

Primeiro domingo de Advento - VIGIAI!

Vigiai, porque o Kairós, o momento oportuno, a chance irrepetível, pode ser agora. Vigiai, porque se a nossa mente estiver ofuscada pelas nossas ambições mesquinhas, e o coração entranhado de rancor, ódio, arrogância dificilmente iremos identificar o ‘momento de Deus’ que liberta e que nos lança para a grande missão da vida.

 Vigiai, mas não porque devemos viver no pânico de sermos pegos no flagrante, mas porque ao não dar conta do poder e das responsabilidades que ' o senhor’ nos deu poderemos prejudicar e fazer sofrer muitas pessoas. 

Vigiai, porque já basta muita gente vivendo alienada, despreocupada e desconectada com as esperanças e os desesperos da humanidade. 

Vigiai, porque cabe a nós, e não a um potencial messias, a missão de apontar e colher o Kairós da mudança radical, da esperança realizada, do EVENTO que já começou.

 Quem sabe que chegou o momento não espera que ele aconteça! Ele faz ACONTECER! 

sábado, 25 de novembro de 2023

Solenidade de Jesus-pobre Rei do universo

Que rei é esse que dá em herança o seu reino a famintos, doentes, detentos e maltrapilhos? Mais que isso: um reino que foi preparado desde o começo dos tempos pelo Pai a ser entregue aos pobres. Ou esse rei quer o fim de todo poder monárquico-autoritário, ou ele está apontando para a verdadeira essência da vida e de toda e qualquer forma de governo humano. Nessa parábola paradigmática Jesus deixa claro que desde já somos avaliados sobre a nossa prática da caridade e da compaixão para com os invisíveis dos reinos desse mundo. O cuidado, a assistência e a proteção aos ‘miseráveis’ de hoje, - massa sobrante e descartável pelos reizinhos fantoches desse mundo – devem ser para os seguidores de Jesus a sua única e real prioridade. Paradoxalmente, para Jesus, são esses ‘pobretões’ desprezados e sem poder que já sentaram no trono do Pai que vêm fazendo a devida seleção: ou com eles ou com seus algozes. Não será reivindicando uma suposta pertença a uma igreja ou uma solene declaração de fé numa doutrina que fará a diferença. A nós a escolha!

sábado, 18 de novembro de 2023

Violência no campo e Estado. Artigo de Flávio Lazzarin e Cláudio Bombieri

De 27 de outubro até 10 de novembro, houve um aumento estatisticamente significativo da violência no campo, com vários assassinatos ocorridos em áreas de conflitos fundiários nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba. Escandalosamente significativo o que aconteceu, no dia 10 de novembro, no Maranhão, quando um grupo de dez pistoleiros a mando de um fazendeiro invadiu o povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda, resultando na morte de um deles. Outros dois integrantes da quadrilha foram baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e presos em flagrante.Noticia-se imediatamente que dos dez bandidos nove são policiais militares e um penal. A dimensão, a simultaneidade e a configuração destes fatos provocam reações e debates, que vão além da pontual e preciosa nota da CPT do dia 12.

Eis algumas perguntas e reflexões que circulam nestes dias.

Seria uma mera trágica coincidência a confluência desses atos violentos no arco de cerca quinze dias em diferentes regiões do Brasil? Ou são violências programadas e coordenadas?Esta última não é uma hipótese aceitável, mas é bom sublinhar que existem articulações parlamentares e políticas, que poderiam repetir as estratégias da antiga UDR: a Frente parlamentar "Invasão zero" (200 parlamentares), criada logo após CPI do MST e, na Bahia, em paralelo, o Movimento "Invasão zero" (10mil proprietários em 200 municípios). Descartada, evidentemente, a hipótese de uma coordenação destas violências, poderíamos pô-las no âmbito da polarização entre bolsonarismo e lulismo?


Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe, uma concentração de assassinatos e atentados contra quilombola, camponeses e indígena tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, a reação de retaliação do latifúndio justamente diante de uma nova e aguerrida postura do atual governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial leitura da política fundiária levada adiante pelo MDA e o INCRA do atual governo não nos parece entrever ações políticas que tenham criado algum tipo de impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do latifúndio. Muito pelo contrário...


Haveria uma outra hipótese a ser considerada: estariam as populações do campo se sentindo fortalecidas e/ou, supostamente, protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal, uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses movimentos? Não nos parece, também nesse caso, vislumbrar ações de mobilização, de ocupação fundiária e de retomada de territórios originários e tradicionais de tal envergadura que venham a justificar uma renovada metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto político.

Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões pressionam, por exemplo, um grupo de policiais para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’ com a finalidade de limpar de forma clandestina uma determinada área. Seria o movente pecuniário a única razão? O que move um grupo consistente de PMs da mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’?

Insiste-se por parte de muitos sobre o papel do Estado nestes conflitos territoriais e repetimos as figuras da ‘omissão’, com anexa impunidade, e da ‘cumplicidade’. Essas leituras são suficientes para entender a responsabilidade do estado nestas agressões? Achamos que estas perguntas e reflexões, aparentemente oportunas e necessárias, nos deixam, porém, na escuridão e, sobretudo, não abrem portas e caminhos para uma praxe política coerente de enfrentamento da violência.

Talvez, possamos encontrar alguma luz retomando a análise do protagonismo político das elites rentistas e empresariais do Brasil. Somos assim obrigados a repetir a única descrição ao nosso ver incontestável do Estado brasileiro: desde a sua origem, se caracteriza como estamento oligárquico-patrimonialista; desde sempre o Estado é o próprio ‘Crime Organizado’.

Podem aparecer ao longo da nossa história, além das ditaduras e dos golpismos, sempre por interferência militar, maquiagens republicanas, democráticas e hipócritas afirmações sobre a vigência do ‘Estado de Direito”, mas também em Estados, como o Rio Grande do Sul, em que parecia vingar uma tradição liberal autêntica, nas últimas décadas vingou a versão do Estado oligárquico-patrimonialista, o Estado como ‘Crime Organizado’. E seria míope continuar pensando que essas características do Estado brasileiro estariam presentes somente no Rio de Janeiro. Resumindo: o Estado não é cumplice da violência nem é meramente omisso diante dela, porque ele é incontestavelmente o quartel-general desta guerra contra os pobres e os pequenos.

O Brasil nos proporciona uma versão tropical do Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira está no fato que ela se alimenta de forma absolutamente independente da legalidade constituída. As nossas elites sempre conviveram, sem problema éticos e políticos, com a convicção profunda, atávica e fortemente enraizada da primazia da autolegitimação sobre a legalidade. Todo o aparato jurídico – código civil e código penal – está submetido ao privilégio incontestável das elites, que decidem, independendo das leis, o que é legítimo, necessário e conveniente para a manutenção do poder. E as leis são normalmente usadas como arma política contra os inimigos e adversários, enquanto familiares, amigos e aliados são dispensados de obedece-las e absolvidos de antemão, também em casos de crimes hediondos.

Evidentemente, as leis cumprem também a função de disfarce da primazia da autolegitimação, encenando a ficção do ‘Estado de direito’. Ficção que consegue ocultar o papel indispensável que o Poder Judiciário ocupa no pacto oligárquico: respeitar caninamente, com rara exceções, a solidariedade de classe, a cumplicidade entre brancos ricos, cultos, proprietários e profissionais liberais. Saber disto deveria minar o eventual entusiasmo dos defensores dos direitos humanos, porque no confronto jurídico com o Poder Judiciário saem quase sempre derrotados o com vitórias mutiladas por negociações injustas e parciais.

No embate processual com o Estado, as comunidades camponesas saem sempre derrotadas. A impunidade, totalmente garantida aos assassinos, mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes últimos quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A impunidade não é consequência do descaso dos inquéritos policiais e da morosidade do Judiciário, mas o resultado, deliberadamente construído, de um Estado, que é o próprio Crime Organizado. E, então, no âmbito da autolegitimação oligárquica, não há como estabelecer uma diferença entre Polícia e Milícia, come se somente ocasionalmente a elite precisasse dos serviços da jagunçada e pistolagem.


Milícia e pistoleiros são elementos constitutivos, orgânicos, do Estado brasileiro. E esta configuração não é característica das oligarquia do passado: no Maranhão funcionava com Vitorino Freire e José Sarney e na Bahia com Antônio Carlos Magalhães, mas continua funcionando com os governos sucessivos, com a única variável do acompanhamento de uma narrativa progressista. Assim a violência no campo permanece com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Roussef, Lula e, obviamente, continuou com Bolsonaro.

Os populistas de extrema direita aceitam e incentivam a violência para defender os valores tradicionais e, para eles, inegociáveis - Deus-Pátria-Família - ameaçados pelos ‘comunistas’. Repetem a encenação antissistémica nazista e fascista para, de fato, hoje como ontem, terminar radicalizando a violência do sistema capitalista. A esquerda ainda acha que ainda pode se declarar aliada dos pequeninhos, mas hoje é incapaz de reconhecer a distância que o progressismo da classe média construiu entre si e as massas famintas e desempregadas.

Uma esquerda que está equivocada quando se pensa como a herdeira do legado dos trabalhadores que, porém, há muito tempo, não se reconhecem mais como classe. Uma esquerda que, quando está no governo, não tem antídotos contra a violência do capitalismo e é obrigada a obedecer à lógica do mercado e às reivindicações das elites amplamente representadas pelo Centrão que manda na Câmara, no Senado e no País. Uma esquerda derrotada e sem futuro, acometida pelo cansaço ideológico, pela repetitividade eleitoreira, pela incapacidade de entender que a sociedade mudou, pela falta de discernimento que bloqueia qualquer projeto alternativo para o Brasil, em tempos de fome, de desemprego, de violência contra indígenas e camponeses, tempos de novas subjetividades e de dramáticas conjunturas climáticas e bélicas, que marcam tragicamente a atualidade. Uma esquerda, que, mais tarde o mais cedo, será varrida do panorama político internacional, pela onda demencial e trágica do populismo de extrema direita.

O que fazer diante de tantos escombros?

Alguns dias atrás, Marcello Tarí nos deu uma dica preciosa: uma profecia bela e intensa de Emmanuel Mounier, que pode ser um presente para aqueles que ainda queiram lutar. “O perigo, a preocupação são o nosso destino. Nada nos deixa prever que esta luta possa terminar numa fração de tempo calculável, nada nos incentiva a supor que a luta seja constitutiva da nossa condição. Com efeito a perfeição do universo pessoal encarnado não se identifica com a perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os políticos), que pensam que um dia o ser humano possa totalizar o mundo. A nossa é uma perfeição de uma liberdade que luta e luta incansavelmente. E que continua firme até depois da derrota. Entre o otimismo intolerante da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do ser humano é este otimismo trágico, em que ele pode encontrar a sua justa medida num ambiente de grandeza e de luta”. (Mounier Emmanuel, Il personalismo, Ave ed. 2004, pag. 56)

A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra. E é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz. Palavra que decide desestabilizar o status quo: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10,34-36).

Não é Palavra que simplesmente aceita a inevitabilidade do conflito. É a própria Palavra que o instaura e o preserva com radicalidade.


33º domingo - Não tenha medo de errar: multiplique e partilhe o que Deus lhe deu! (Mt. 25, 14-30)

Deus parece confiar mais em nós do que nós confiarmos em nós mesmos. A ideia equivocada de um Deus rígido, que fiscaliza e que cobra nos leva a manter uma relação de submissão e medo. E o medo paralisa e ofusca a alma, de forma tal que permanecemos inermes perante a realidade dominados pela ideia de sermos julgados. A parábola de hoje nos mostra um 'senhor' que antes de viajar doa muitos bens aos seus servos, de acordo com as potencialidades de cada um. Quando ele volta confere com seus servos o uso dos bens que lhes havia doado antes de partir. Os primeiros dois servos haviam tomado consciência que na 'ausência do senhor' cabia a eles se mexer e tomar a iniciativa para produzir e multiplicar novos bens. Já o último preferiu 'conservar' os bens sem se arriscar. Afinal, temia ser repreendido se tivesse tomado qualquer iniciativa com aquele bem que lhe havia sido ofertado. Adotou a postura de um conservador acomodado e de baixa estima em si próprio. Chegou a hora de assumirmos sem medo de errar e de sermos julgados o modo de gerir do 'senhor' multiplicando paz, fraternidade, partilha, generosidade. Se Ele não acreditasse em nós jamais ele deixaria seus bens conosco! Façamos por merecer! 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Reflexões desordenadas sobre violência no campo de ontem, hoje e sempre

 Refletindo sumariamente sobre os últimos acontecimentos da segunda semana de novembro envolvendo os trágicos assassinatos e atentados contra quilombolas, indígenas e Sem Terra cabe se perguntar:

1. Seria essa confluência de intensos atos violentos tendo como vítimas membros de populações camponesas em diferentes regiões do Brasil uma mera trágica coincidência? Se de um lado fica bastante problemático ver nisso uma vasta articulação em que, de forma simultânea, várias pessoas envolvidas em conflitos agrários são agredidas e assassinadas, do outro lado nos deixa bastante atônitos esse ‘renascido’ recrudescimento da violência exercida por milicianos e pistoleiros de aluguel.....

2. Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões estariam a pressionar, por exemplo, um grupo de policiais-milicianos para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’ com a finalidade de ‘limpar’ de forma clandestina uma determinada área. Seria o movente pecuniário a sua única razão? O que moveria um grupo consistente de PMs da mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’? E, o que dizer no caso específico do assassinato do casal do MST da Paraíba em que os dois pistoleiros, em pleno dia, diante de várias testemunhas acabam com a vida de dois notórios assentados? Seria, por acaso, a ‘clássica certeza de impunidade’ que os empurra a serem sempre mais ousados em suas façanhas homicidas, ou haveria algo mais? 

3. Seria possível avançar algumas hipóteses explicativas que, embora não possuam a pretensão de exaurir a complexidade de uma violência, venham a jogar uma luz diferente? Em suma, torna-se urgente se perguntar: se de um lado continua de forma exacerbada a sistêmica e seletiva violência contra a população do campo, não existiriam, do outro lado, - a partir dos acontecimentos desses dias, - novos elementos explicativos capazes de dar um sentido ao todo? 


4. Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe, uma concentração de homicídios e atentados contra quilombola, camponeses e indígena tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, esse recrudescimento da violência no campo a reação de retaliação do latifúndio diante de uma nova e aguerrida postura do atual governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial leitura da política fundiária levada adiante pelo Ministério da Agricultura (Incra) do atual governo não nos parece entrever ações políticas que tenha criado algum tipo de impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do latifúndio. Muito pelo contrário...


5. Haveria uma outra hipótese a ser considerada: estariam, por acaso, as populações do campo se sentindo mais fortalecidas e/ou, supostamente, mais protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal, uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses movimentos? Parece-nos, também nesse caso, não existirem elementos comprobatórios, haja visto que não têm havido mobilizações e ocupações fundiárias de tal envergadura que venham a justificar uma renovada metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto social! 

6. Dito isso, não há como negar que existe um conjunto de razões para tentar compreender esse novo ‘surto violento’, mas destacaríamos dois elementos centrais explicativos: a. A permanência e/ou consolidação da utilização da violência e da agressão como um elemento residual, inercial daquela violência institucional/doutrinária que se tem fortalecido sobremaneira ao longo do governo anterior e que encontra agora, num governo supostamente garantista e democrático, a sua ‘atroz e insana legitimidade’. Isto não significa que essas ações estariam tentando desestabilizar o atual governo, mas, talvez, enviando um recado segundo o qual ‘aquela violência’ não vai parar com a mudança de governo. b. O segundo elemento de caráter macro sistêmico nos leva a acreditar que o próprio ‘estado’ é na sua essência uma macro instituição de cunho oligárquico, elitista, pseudo-legalista, protetor da concentração de terras e de riquezas, e que incorpora a ‘violência legítima’ ou não contra ‘pessoas e direitos formais’ como meio para se perpetuar com essa configuração de forma legítima. Dito de outra forma, polícia formal e polícia informal (milicianos), por exemplo, seriam constitutivas e funcionais ao próprio estado. Difícil, por exemplo, não reconhecer que o judiciário na sua estrutura essencial estaria agindo de forma política pró-estado, deixando de lado os princípios da impessoalidade e da imparcialidade e da reta hermenêutica do corpo legal. Com isso não se quer negar a atuação de ‘bons juízes e promotores’ e até de defensores sociais de direitos, mas a sua atuação é anulada quase sempre pelo ‘núcleo duro’ da macroestrutura legal que é tutelada e monitorada pelo próprio estado. Há ainda saídas possíveis e realistas diante de uma compacta camisa-de-força sistêmica e estruturante que tem o próprio estado como responsável? 


sábado, 11 de novembro de 2023

32º domingo - Teimar em esperançar, apesar dos atrasos do 'noivo da paz e da vida nova'! (Mt.25, 1-13)

Vítimas, como somos, da cultura da ‘aceleração vertiginosa’ tendemos a cuidar somente do ‘aqui e agora’. Eventuais atrasos, esperas, desencontros nos deixam desnorteados e sem iniciativa. Na parábola de hoje fala-se do ‘atraso do noivo’, daquele deveria vir para realizar uma nova aliança. E escancarar as portas para novos tempos de paz e de vida em abundância. O que fazer diante dessa demora? Como reagir? É o dilema não só de um grupo de seguidores de Jesus à espera de uma sua volta, mas também daquela parte de humanidade que ainda acredita que algo surpreendente pode acontecer, em que pese o imediato tenebroso em que está mergulhada. Mateus nos diz que podemos até ficar adormecidos e anestesiados por algum tempo, mas jamais podemos ficar sem o ‘óleo nas nossas lâmpadas’. Sem o combustível da ousadia, da coragem, da fé radical não conseguiremos reconhecer o momento oportuno de agir junto ao noivo. Não podemos temer os atrasos nas mudanças históricas, porque o óleo que possuímos não nos permite desistir. É preciso teimar em vigiar e ‘esperançar’, custe o que custar!


domingo, 5 de novembro de 2023

Ainda sobre santidade....evangélica!

No livro do Gênesis se narra que Caim após ter matado o seu irmão Abel fugiu e se escondeu. Deus, contudo, corre atrás dele e lhe pergunta: ‘Onde está o seu irmão Abel’? Caim retruca: ‘ Não sei; sou, por acaso, guardião de meu irmão’? (Gn.4,9) Aqui parecem residir as raízes ‘antropológicas’, ou melhor dito, ‘ideológicas, da ‘falta de cuidado’ de um irmão para com outro. A resposta de Caim assume características de trágico e injustificável cinismo principalmente se se considera que ele acabava de cometer o insano e horrível gesto de eliminar fisicamente o seu próprio irmão. 

Não há como negar que existe, hoje, uma difusa tendência nas relações interpessoais de cultivar sua própria autossuficiência com características de exacerbado individualismo que impede uma razoável abertura e sintonia para com os outros ‘semelhantes’. Expressões populares já consolidadas como ‘e eu com isso’? Ou, ‘fica na tua, não te mete’ ou, ‘fica quieto no teu canto, ninguém te chamou’ parecem revelar que o ‘ideal’ a ser praticado, segundo uma determinada cultura relacional contemporânea, é a assunção da 'falta de cuidado' com o outro. Diga-se, de passagem, que isto nada tem a ver com a atitude respeitosa e louvável de não interferência no universo do ‘outro’ sem ser chamado em causa por ele. É, afinal, a recusa a se deixar envolver e afetar pelos problemas dos outros, suas dores e angústias, suas alegrias e esperanças. Com efeito, quando a nossa sensibilidade e consciência são arranhadas pelos dramas alheios sentimo-nos, em geral, incomodados e, geralmente, instigados em ‘fazer algo’ pelo outro. É, sem dúvida, um embate interior entre o desejo de ignorar o sofrimento do outro para evitar sermos incomodados e envolvidos por ele, e os recônditos apelos de uma consciência ética bastante anestesiada que, bem ou mal, não deixa de interpelar. Acreditamos que, hoje, dia de 'todos os santos', o apelo urgente a ser lançado e promovido nas igrejas e na humanidade é ‘Eu me importo com você!

A liturgia católica, de forma sábia, escolheu como trecho evangélico na solenidade de todos os santos as ‘bem-aventuranças’. Não é para menos! Santo-bem-aventurado para Jesus é aquela pessoa que se educa e se torna visceralmente solidária com aqueles que choram, com os construtores e artífices de paz, com os ‘desterrados e expropriados’ de terra e de esperança, com todos os famintos de pão e de justiça, com todos aqueles que detestam e não cultivam duplicidade e hipocrisia. Esse itinerário de aproximação e de fusão com o universo do outro que sofre, mas que constrói soluções para pôr fim à dor e às angústias próprias e alheias requer conversão radical, superação definitiva do ‘senso comum’, ou seja, de não se importar com os outros. Poderíamos dizer que é um processo educativo sistemático a se importar pelo outro que vive ao nosso lado ou que entra a fazer parte, progressivamente, das nossas atenções e cuidados. Jesus não pede para os seus discípulos, - pois é a eles que se dirige, prioritariamente, - de, simplesmente, se ‘interessar’ pelos outros, mas de se ‘importar’ com as diferentes categorias de sofredores. O interesse, a princípio, manifesta uma genérica curiosidade pessoal com relação a algo ou alguém, eticamente inócuo e que não exige comprometimento; já ‘importar-se’ com alguém reflete a existência de prioridades, de hierarquia de valores e revela desejo de simbiose com alguém. 

Santos, hoje, não são os canonizados milagreiros vivos ou mortos, nem tampouco os que são contemplados nos calendários católicos ou venerados em santuários em redomas douradas cercadas por velas e ofertas votivas, mas são todos aqueles humanos, batizados ou não, que se importam com seus semelhantes, com suas condições de vida, suas dores e alegrias, seus sonhos e esperanças, e com eles fazem comunhão. Que não fogem e nem se escondem e, ao ser interpelados por Deus não temem em responder que' 'Abel está aqui, comigo, sob os meus cuidados e eu....sob os dele'! 


sábado, 4 de novembro de 2023

Aquecimento global: 50% de chance de atingir 1,5°C antes de 2030

Um novo estudo, publicado na Nature Climate Change, estima que o mundo tem 50% de chance de atingir 1,5°C de aquecimento global antes de 2030, a menos que as emissões de dióxido de carbono sejam reduzidas rapidamente. O estudo, liderado por pesquisadores do Imperial College London, é a análise mais atualizada e abrangente do orçamento global de carbono. O orçamento de carbono é uma estimativa da quantidade de emissões de dióxido de carbono que podem ser emitidas, mantendo o aquecimento global abaixo de certos limites de temperatura.

O Acordo de Paris visa limitar o aumento da temperatura global a bem abaixo de 2°C acima dos níveis pré-industriais e buscar esforços para limitá-lo a 1,5°C. O orçamento de carbono restante é comumente usado para avaliar o progresso global em relação a essas metas. O novo estudo estima que, para uma chance de 50% de limitar o aquecimento a 1,5°C, há menos de 250 gigatoneladas métricas de dióxido de carbono no orçamento global de carbono. Os pesquisadores alertam que, se as emissões de dióxido de carbono permanecerem nos níveis atuais de cerca de 40 gigatoneladas métricas por ano, o orçamento de carbono será esgotado por volta de 2029, comprometendo o mundo a um aquecimento de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. 

A descoberta significa que o orçamento é menos do que calculado anteriormente e caiu aproximadamente pela metade desde 2020 devido ao aumento contínuo das emissões globais de gases de efeito estufa, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, bem como uma estimativa melhorada do efeito de resfriamento dos aerossóis, que estão diminuindo globalmente devido a medidas para melhorar a qualidade do ar e reduzir as emissões. O estudo também descobriu que o orçamento de carbono para uma chance de 50% de limitar o aquecimento a 2ºC é de aproximadamente 1.200 gigatoneladas métricas, o que significa que, se as emissões de dióxido de carbono continuarem nos níveis atuais, o orçamento central de 2 °C será esgotado até 2046.

O estudo foi recebido com preocupação por especialistas em mudança climática, porque mostra que estamos muito mais próximos de ultrapassar o limite de 1,5°C do que pensávamos.


Unicef: “Gaza se tornou um cemitério de crianças”

Nesta semana, o porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), James Elder, alertou que a Faixa de Gaza “se tornou um cemitério de crianças”, quase um mês após o início da guerra com Israel. Segundo informou, os números de meninos e meninas de Gaza afetados pelo conflito continuam crescendo. Além disso, lembrou que se chegou a mais de 3.450 mortos nos bombardeios, milhares de desaparecidos ou em cativeiro e mais de um milhão que permanecem sem água, alimentos e produtos básicos. “É assombroso que este número aumente significativamente a cada dia. Gaza se tornou um cemitério de crianças. É um inferno para todos os outros”, declarou Elder.

Para o Unicef, as mortes infantis por desidratação são “uma ameaça crescente” no território, uma vez que a produção de água de Gaza está em 5% do volume necessário, pois as centrais de dessalinização não funcionam, estão danificadas ou com falta de combustível. E, olhando para o futuro, acrescentou que quando os combates finalmente pararem, os custos para as crianças “serão sentidos por décadas” por causa dos terríveis traumas enfrentados pelos sobreviventes. Elder citou o exemplo da filha de quatro anos de um funcionário do Unicef, em Gaza, que começou a praticar a autolesão devido ao estresse e o medo diários, enquanto sua mãe disse a seus colegas que “não é possível se dar ao luxo de pensar na saúde mental de seus filhos”, pois “primeiro é necessário mantê-los com vida”. Por sua vez, o responsável em coordenar a ajuda humanitária da ONU, Martin Griffiths, disse que o que estão suportando, desde o início das represálias de Israel aos ataques mortais do Hamas, em 7 de outubro, é “mais do que devastador”. (IHU)

Solenidade dos eternos bem-aventurados! (Mt. 5,1-12a)

Santos são os pobres cujo único patrimônio é o seu espírito livre para amar. Que não se apegam aos falsos tesouros que dominam o coração. Desde já possuem o Reino da Libertação. Santos são os que não se envergonham de derramar as lágrimas de sua tristeza e aflição e anseiam por colo e consolação. Eles serão acalmados, e pela suave mão do próprio Deus ternamente acariciados. Santos são os que adotam o diálogo e a persuasão para vencer a truculência dos que vivem na opulência. Eles ocuparão a ‘terra prometida’ que dos intolerantes será tirada. Possuirão definitivamente ‘a terra sem males’. Santos são os que não se sentem saciados enquanto houver um faminto padecendo fome de  justiça e de pão. O seu esforço não será em vão: vida plena acumularão. Santos são os que possuem um coração desimpedido  para perdoar. Que abominam a vingança e a retaliação. Mágoa e rancor não contaminam sua alma. Santos são os que educam o seu coração à transparência e à honestidade e detestam toda duplicidade. Santos são os que garantem a paz fazendo guerra às indústrias de armas e de destruição, e não temem combater os fantasmas da dominação. A alegria e a felicidade são a sua recompensa. Aqui a traça não corrói, e nem o ladrão destrói! 



quinta-feira, 2 de novembro de 2023

A psicopatia de Israel. Artigo de Franco Bifo Berardi*

O documentário Born in Gaza de Hernán Zin pode ser encontrado na Netflix e na Filmin. Se me permitem, recomendo a todos que assistam: conta a história de dez crianças entre seis e quatorze anos, durante a guerra de 2014, uma das muitas guerras que Israel desencadeou contra os palestinos e os palestinos desencadearam contra Israel. Estas crianças falam dos bombardeios, das feridas que receberam, do terror que experimentam todos os dias, da fome que sofrem; dizem que a vida que vivem não é vida, que morrer seria melhor. É provável que estas pessoas, que eram crianças em 2014, sejam agora militantes do Hamas e tenham participado na orgia de terror de 7 de outubro.

Se eu estivesse no seu lugar em vez de ser eu, um velho intelectual que vive confortavelmente na sua casa numa cidade italiana onde neste momento não há bombardeios, se eu fosse um daqueles que foram crianças sob as bombas de 2014, hoje eu seria um terrorista que só quer matar um israelense. Eu ficaria horrorizado? É claro que ficaria horrorizado, mas o meu pacifismo silencioso é simplesmente um privilégio de que desfruto porque não passei a minha infância em Gaza, ou em lugares como Gaza. Portanto, acredito que Israel só tem uma forma de erradicar o Hamas: matar todos os palestinos que vivem em Gaza, nos territórios ocupados e também em outros lugares: todos, todos, todos, especialmente as crianças. Afinal, é isso que eles estão fazendo, certo? Chama-se genocídio, mas é completamente racional. Os governos europeus, muito racionais, apoiam o genocídio; Macron disse que gostaria de participar no genocídio com uma coligação. Scholz disse que desde que a Alemanha cometeu genocídio no passado, agora tem o dever de apoiar aqueles que cometem genocídio hoje.

Será esta a única forma de erradicar o terrorismo?

Talvez houvesse outra forma de erradicá-lo: paz incondicional, renúncia à vitória, amizade, deserção, aliança entre as vítimas: as vítimas de Hitler e as vítimas de Herodes-Netanyahu. Mas as vítimas, ao que parece, apenas aspiram a tornar-se algozes, e muitas vezes conseguem. Portanto, a espiral não irá parar e não sabemos qual vórtice ela pretende alimentar. Há algo de monstruoso nas mentes dos palestinos que viveram em terror. E há algo igualmente monstruoso nas mentes dos israelitas. Mas como julgar o comportamento dos povos, como julgar as explosões de violência que se multiplicam na vida coletiva? Podemos julgar o comportamento dos militantes do Hamas ou dos israelenses em termos éticos ou políticos? A razão ética está fora do jogo, porque a ética está totalmente apagada do panorama coletivo do nosso tempo. A ética é a valorização da ação do ponto de vista do bem do outro como continuação de si mesmo. Mas nas condições de guerra generalizada em que se move a sociedade contemporânea, o outro é apenas o inimigo: este é o efeito da infecção liberal-competitiva e da infecção nacionalista: a defesa do território físico e imaginário significa guerra. A ética está morta, assim como a piedade está morta. Não pode haver ética no comportamento dos jovens que cresceram na prisão de Gaza, porque as suas mentes não podem considerar o outro (o soldado israelense que espera por você com uma arma em punho em cada encruzilhada), exceto como um carcereiro, um torturador, um inimigo, mortal. Cada fragmento (pessoas, grupo étnico, máfia, organização, partido, família, indivíduo) luta desesperadamente pela sua própria sobrevivência, como lobos lutando contra lobos. Tal como a razão ética, a razão política deixa de ser relevante numa situação em que a decisão estratégica é substituída por microdecisões de sobrevivência imediata. Israel reage à violência brutal do Hamas de uma forma que pode ou não ser militarmente eficaz. Mas certamente não é politicamente eficaz. 

Crise psicótica nos governantes israelenses!

O grupo governante de Israel é um grupo de mafiosos corruptos que há anos dão espetáculo com o seu cinismo e oportunismo. Agora encontram-se perante uma situação que nem sequer imaginavam e que ultrapassa os seus poderes de compreensão política. Israel perdeu a cabeça. Tudo no comportamento dos israelenses mostra que está ocorrendo uma crise psicótica, que irá prejudicar gravemente os palestinos, mas também irá prejudicar gravemente os israelitas. Do ponto de vista ético, Israel há muito se esqueceu, desde o início da sua existência, que o outro tem a mesma humanidade que você, tem a mesma sensibilidade que você e, naturalmente, tem os mesmos direitos que você. Mas também do ponto de vista político, os israelenses estão tomando medidas que se revelarão terrivelmente contraproducentes para eles. Li as declarações dos políticos e soldados que governam Israel: falam de animais humanos que devem ser exterminados, falam do corte de eletricidade, combustível, comida e água aos habitantes de Gaza (dois milhões e meio). Eles não apenas falam sobre isso, mas fazem. Como eles podem? Não há explicação ética ou política. A única explicação para seu comportamento é a psicopatia, o sofrimento psíquico, o desejo de sangue, o horror, a morte. Portanto, é necessário explicar esta guerra em termos de psicopatogênese, como efeito da incapacidade das vítimas de curar a sua dor. Há já algum tempo que estou convencido de que o único método cognitivo capaz de compreender a cadeia de violência que se desenvolve no Oriente Médio, e em grande parte do mundo, é o da psicanálise, o da psicopatogenealogia. Acredito que Israel não irá se recuperar desta terrível experiência: o povo de Israel já estava irreparavelmente dividido, Netanyahu será responsabilizado pela divisão causada e pela falta de preparação que se seguiu. Mas não será suficiente, porque a direita abertamente racista de Israel está destinada a tornar-se mais forte neste tsunami de ódio.

  Acredito que Israel está caminhando para a desintegração. Quantos israelenses quererão ficar naquele deserto, depois do que está acontecendo e do que irá acontecer? Acredito que só permanecerá quem tem armas, só quem sabe matar e quer matar. Foi agora desencadeado um vórtice de ódio contra o Hamas, amanhã surgirá um sentimento de culpa por terem se tornado autores de um genocídio certificado. A política não será capaz de governar ou compreender este vórtice. Só a visão clínica pode entender, mas não acredito que possa curar. Estamos diante de uma psicose massiva com um poder de contágio muito elevado. A primeira coisa que devemos fazer é evitar o contágio, evitar acabar como os políticos israelenses que gritam frases de bêbados para acalmar a ansiedade. Mas também precisamos de produzir uma vacina cultural e psíquica contra o contágio, e esta tarefa que a psicanálise não conseguiu realizar no século passado é a tarefa que temos diante de nós, se não for tarde demais. (IHU)

 *Franco "Bifo" Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano

Incra finalizou a inclusão de todas as Terras Indígenas (TIs) no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR).

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) finalizou a inclusão de todas as Terras Indígenas (TIs) no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR). Segundo o instituto, a medida abrange 446 áreas que representam mais de 100 milhões de hectares, além de outras 11 TIs homologadas em processo final de regularização. Os decretos de homologação foram assinados em abril pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O cadastro começou em junho. Entre as TIs cadastradas estão as de Arara do Rio Amônia, no Acre, Avá-Canoeiro, em Goiás, Kariri-Xocó, em Alagoas, Rio dos Índios, no Rio Grande do Sul, Tremembé da Barra do Mundaú, no Ceará, e Uneiuxi, no Amazonas. “É a primeira vez na história do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que esse trabalho é realizado”, informou, em nota, o Incra. Com a conclusão do cadastramento, o Estado terá acesso a “dados qualificados indispensáveis à formulação das políticas públicas voltadas à questão agrária”, acrescentou.

Bases fundiárias - A Funai explicou que essa iniciativa tem, como objetivo, a inserção das TIs “em uma das mais importantes bases fundiárias, que compreende o cadastro de todos os imóveis rurais do país e seus detentores, sejam proprietários, arrendatários, parceiros, meeiros e outros; das glebas públicas, reservas ambientais e terras indígenas”. Tendo como gestores o Incra e a Receita Federal, o Sistema Nacional de Cadastro Rural é a base constituinte do Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR). Há nele dados de imóveis rurais, bem como de proprietários e detentores, arrendatários e parceiros rurais, de terras e florestas públicas. “São mais de sete milhões de imóveis privados e públicos constantes, superando 738 milhões de hectares”, finalizou o Incra.


sábado, 28 de outubro de 2023

30º domingo comum - O Deus que não vemos só pode ser amado no irmão próximo, invisibilizado, que ignoramos! (Mt.22, 34-40)

Parece-nos incompreensível  amar alguém que não vemos e de quem pouco ou nada sabemos como é o caso de... Deus! Diferente é quando acreditamos firmemente que o Deus que 'ninguém viu' - como nos lembra João, - se torna presente e visível nas suas criaturas. Deus pode ser amado só mediante o amor àqueles que vivem a nós 'próximos', bem à nossa frente! Quem afirma que é suficiente amar só Deus sem se preocupar em amar também as suas criaturas denota um grave desvio mental. É o absurdo de tantos devotos metidos a pastores e evangelizadores que, em nome de Deus, incentivam a exclusão, a manipulação e até o massacre daqueles que não creem em Deus e que, portanto, não poderiam e nem saberiam amá-Lo! Eles esquecem que os massacrados, os famintos, os doentes que vivem ao nosso lado, e os esquecidos da sociedade e das igrejas são, de fato, o verdadeiro templo-sacrário da presença visível e amorosa de Deus! Ao negligenciar e atentar contra a integridade física e moral desses 'nossos próximos', esses profanadores manifestam que, simplesmente, odeiam o Deus em que dizem acreditar! E, tampouco, a obediência escrupulosa às leizinhas e preceitos religiosos, que eles mesmos criam, seria garantia de piedade e amor a um Deus que quer 'misericórdia e compaixão e não sacrifício!' 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Quando o 'NÃO DITO' da imprensa contribui para naturalizar as arbitrariedades e a 'negação da verdade'!


Muitos setores da mídia tupiniquim local não deixam de surpreender a cada dia. Na cobertura de fatos e acontecimentos, além de uma seleção prévia para decidir qual deles merece ser publicado, parece existir uma abordagem padronizada que reflete parcialidade, ideologização e preguiça investigativa. Alguns casos recentes ocorridos no Maranhão dão provas do escasso profissionalismo. Uma rápida análise de algumas versões veiculadas sobre dois acontecimentos, em particular, tendo como foco a morte de um indígena e uma operação policial numa aldeia, fazem emergir alguns elementos comuns do ‘modus operandi’ de alguns setores da imprensa local que nos preocupam. Vejamos.

1. Os veiculadores de notícias, em geral, afirmam que ‘possuem suas próprias fontes’ como se isso fosse suficiente e já bastasse para garantir a sua absoluta e inabalável veridicidade. Outra fonte informativa não inscrita em suas ‘listas fechadas’ parece suscitar, de imediato, desconfiança e, em muitos casos, a depender dos interesses em jogo, é sumariamente descartada sem a devida investigação. Acredito que o ofício de transmissor de informações, que queira ser razoavelmente imparcial e rigoroso, a respeito de um determinado acontecimento impõe a escuta e a apuração dos diferentes atores que entram em jogo, algo que exige paciência, habilidade e profissionalismo. E, na situação real em que isso se torna inviável, por uma serie de motivos, caberia uma breve nota ou janela, à margem, dando voz ao ‘outro lado’, se assim ele o desejar, algo que, infelizmente, é sistematicamente ignorado em inúmeros casos. Já houve casos, por exemplo, em que uma fonte externa ao veiculador de notícias ao chamar a sua atenção para corrigir ‘quantidades e tamanhos’ errados veiculados, portanto, dados oficiais, ouviu respostas irônicas e deselegantes porque a ‘sua fonte confiável’ não poderia, jamais, repassar dados...errados!

2. Um segundo elemento que se destaca na cobertura jornalística parece ser a de uma permanente e velada ‘solidariedade político-moral’ com um dos atores de um determinado acontecimento, em geral, corporações e/ou instituições, em detrimento de ‘pessoas físicas’ a não ser que estas representem algum tipo de ‘bandeira’ com que a imprensa se identifica. Concretamente, ao dar cobertura a uma operação policial, por exemplo, em geral a corporação policial é apresentada quase sempre como ‘a mocinha’ a ser sistematicamente defendida e justificada, em que pesem eventuais abusos e arbitrariedades cometidas por ela. Para satisfazer a fome popular de ‘notícias policiais’, os delegados de polícia, em geral, são, sistematicamente, procurados pela imprensa, e acabam se constituindo como ‘fornecedores confiáveis’ de informações de primeira mão e/ou exclusivas. A ‘suposta vítima’ que, contudo, sofreu agressão, violência, ou foi negligenciada por parte da corporação policial para poder merecer a devida atenção por parte desses setores da mídia, em geral, deve ser ‘totalmente íntegra’, caso contrário é ignorada ou, pior, apresentada como a ‘vilã’, em que pesem os abusos sofridos. Se um jovem indígena, por exemplo, ao conduzir uma moto é vítima de descaso e negligência alheia que chegam a causar a sua morte, quando a imprensa descobre que, porventura o indígena é de menor a ‘notícia da morte’ produzida por atos de irresponsabilidade externa, parece perder força impactante. O interesse em divulgar a notícia diminui ou até desaparece, e a atenção do veiculador da informação parece ser desviada pelo elemento da ‘situação ilegal’ da vitima que não ‘deveria’ estar dirigindo a moto por ser de menor. Evidente que ao afirmar isso não se quer ‘justificar a ilegalidade formal’, mas mostrar como a tragédia da morte de um jovem causada por um fazendeiro irresponsável passa em segundo plano e parece perder força denunciante e impactante. Ou, num caso mais recente, (veja postagem anterior) setores da imprensa se omitem em relatar que a Polícia Civil para prender um cidadão acabou criando pânico, terror e arbitrariedades de todo tipo numa pequena aldeia do Maranhão. O foco era, para eles, a detenção de um cidadão supostamente envolvido num assassinato, e não o 'modus operandi' da polícia foi abertamente ilegal e arbitrário! Dessa forma a 'imprensa' naturaliza o arbítrio e o 'estado de exceção' em pleno 2023!

Evidentemente, o que se coloca não são dados científicos ou frutos de análises muito elaboradas. São meras impressões, mas que não deixam de ter suas raízes em muitas observações sólidas. Acredito que não se trata de exigir imparcialidade e objetividade absolutas no exercício desta profissão tão complexa em que, muitas vezes, o próprio profissional é ‘censurado ou podado’ pelo responsável da edição final, mas de garantir a veiculação das diferentes versões, reações, posições dos principais atores que estão envolvidos num determinado acontecimento. Constata-se, com efeito, que a omissão de certos detalhes e dados, ou seja, o ‘não dito’ ou ‘o dito’ de forma unilateral, contribuem, frequentemente, a potencializar opiniões distorcidas e ‘modus pensandi’ muito mais perigosos do que as fake! 


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Fogo continua queimando a Terra Indígena Alto Turiaçu

 Indígenas e brigadistas estão tentando controlar um incêndio florestal que já dura um mês no Maranhão. Uma cortina de fumaça encobre a floresta nativa. As chamas se alastram no meio da mata causando a morte de muitos animais. A Terra Indígena Alto Turiaçú abrange uma área de 531 mil hectares no oeste do estado, onde vivem mais de 4 mil indígenas das etnias Kayapó, Tembé e Awá-Guajá. São três focos de incêndio que começaram em áreas degradas pelo desmatamento. "Segundo os indígenas, veio de fora, esses focos, por queima de pastagens e aí se alastrou para dentro do território que até agora está queimando. Os indígenas estão muito preocupado de ver suas caças ali morrendo, sendo queimada pelo fogo", diz Rosilene Guajajara, secretária-adjunta dos Povos Indígenas/MA.

O fogo avança sobre a floresta que guarda a maior biodiversidade do bioma amazônico em terras maranhenses. Dezessete indígenas do grupo Guardiões da Floresta tentavam, sozinhos, combater o incêndio. Eles abriram caminhos no meio da mata para facilitar o acesso, mas falta equipamentos suficientes para o trabalho. Por causa do calor e da fumaça, alguns indígenas adoeceram. "Está sendo muito complicado, muito perigoso. Os guardiões adoeceram de gripe, diarreia”, conta um indígena.

Na sexta-feira (13), os guardiões fizeram vídeos pedindo apoio ao governo do Maranhão para salvar a floresta. Depois do apelo, 31 agentes do Corpo de Bombeiros, do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade foram encaminhados para a Terra Indígena Alto Turiaçú. Povos de outros territórios indígenas também se juntaram aos guardiões para combater o incêndio. Segundo os indígenas, o fogo já consumiu cerca de 20 km de florestas – que, até então, era uma das mais preservadas no estado. (Imirante)

Operação policial invade aldeia na T.I. Canabrava, arromba casa e prende cidadão sem mandado judicial



Parecia uma operação de guerra!’ Assim os indígenas da Aldeia Canafístula se expressaram ao descrever a operação policial desencadeada quinta-feira passada, 19, às 06:00 h. da manhã e surpreendendo os ainda sonolentos moradores. Enquanto o ruído de um helicóptero do GTA (Grupo Tático Aéreo) se aproximava e sobrevoava as poucas casas da aldeia do povo Guajajara na terra Indígena Canabrava, às margens da BR 226, no município de Jenipapo dos Vieira, entre Barra do Corda e Grajaú, Maranhão, várias viaturas da Polícia Federal, Polícia Civil e da Polícia Rodoviária Federal vindas de São Luís tomavam de conta da entrada e da saída da aldeia. Mais de 10 policiais de forma sincrônica e fortemente armados arrombaram, primeiramente, uma casa ocupada, naquele momento, por duas crianças indígenas ainda sonolentas.  A criança de 10 anos tomada pelo pânico, ao ver os policiais invadindo a sua casa chorava copiosamente e dizia que nada tinha feito e que não queria ser presa. Os policiais reviraram tudo e nada encontraram na casa, mas fizeram questão de levar para a delegacia também a criança, provavelmente achando que estava sendo abandonada, ou no intuito de verificar quem fossem, posteriormente, seus pais. Em seguida, invadiram outra casa, a do senhor Francisco Alves Lima, 60 anos, que estava tomando café e se preparava para ir à roça. Os policiais entrando na cozinha pela porta dos fundos sem apresentar qualquer tipo de mandado judicial, ou ordem de prisão, detiveram-no diante da esposa e dos dois filhos. Os moradores visivelmente chocados com a macabra exibição policial observavam de longe a movimentação, com surpresa e espanto. O cunhado do Sr. Francisco Alves Lima, um indígena Guajajara, irmão da esposa que, muito preocupado, acompanhava mais de perto a ação policial, também foi detido e levado com o cunhado para a Delegacia de Barra do Corda por ter insistido em acompanhar de perto a ação. Além dos dois homens, a polícia levou dois carros, uma moto e uma espingarda por fora que pertenciam ao Sr. Francisco. Posteriormente, os veículos foram devolvidos, inclusive a moto, mas não os relativos documentos. Também o cunhado do Sr. Francisco foi posto em liberdade, no mesmo dia, pagando, inexplicavelmente, uma fiança de R$ 1.750,00. Os indígenas observaram que durante a operação um carro preto com vidros fumês acompanhava tudo de longe e sendo escoltado por um policial armado que impedia qualquer tipo de aproximação. 

Mal-entendido? 

Somente ao chegar à Delegacia de Barra do Corda, o delegado da Polícia Federal que conduziu o Sr. Francisco deu-lhe ordem de prisão. O motivo seria porque ele teria dado proteção, durante alguns dias, a um cidadão de nome Manoel Bruno Macedo Lima Diogo acusado de estar envolvido no assassinato de um advogado de Grajaú, o Dr. Ricardo da Luz, ocorrido em dezembro de 2022 em Itaipava de Grajaú. Ocorre que esse cidadão vinha pedindo trabalho braçal em várias aldeias e encontrou no Sr. Francisco uma pessoa disposta a lhe oferecer algumas diárias. Pelo que se sabe, o Sr. Manoel tem várias passagens pela polícia e, segundo informações dos indígenas da aldeia ele comparecia mensalmente no Fórum para assinar um termo de comparecimento exigido pela Justiça local. Os indígenas negam veementemente que o Sr. Francisco conhecia o Sr. Manoel e sua situação perante a justiça, de forma que não poderia ser acusado de cumplicidade ou de oferecer guarida a um foragido. No presente momento o Sr. Francisco Lima se encontra preso na delegacia de Barra do Corda com problemas de pressão alta e sem ter condições de arcar com os gastos da sua defesa. Os indígenas da Aldeia Canafístula continuam vivendo sobressaltados, pois correm boatos que outras pessoas da aldeia serão ouvidas, e também porque eles vêm notando que há um carro vermelho que frequentemente monitora a aldeia, indo e vindo, e parando várias vezes na entrada da aldeia, no claro intuito de intimidar os moradores. O cacique da aldeia, Rogério Guajajara, tio da esposa do Sr. Francisco, lamenta que a FUNAI nada sabia da operação policial que ocorreu em ‘Terra Federal’ e nada vem fazendo para esclarecer o caso, mas, principalmente, para condenar os abusos e as arbitrariedades policiais cometidas na sua aldeia. Apelam desesperadamente, para que a Secretaria Estadual dos Direitos Humanos compareça na área e, principalmente, na Delegacia de Barra do Corda e identifique os policiais responsáveis que vêm causando terror e medo na pacata aldeia Canafístula. 




Operação policial com casa arrombada e invadida na aldeia Canafístula
 

domingo, 22 de outubro de 2023

29º domingo comum - Devolvam aos Césares a mesquinha moeda de sua 'falsa riqueza' (Mt 22,15-21)

Nunca como hoje é imperativo deixar claro ‘o que é de Cesar e o que é de Deus’! Aos Césares que se arvoram em senhores absolutos da humanidade é preciso lhes devolver a moeda que produz empobrecimento e miséria planetária: o seu sistema econômico e monetário, a necropolítica de corrupção e de dominação, de violência e de terrorismo institucionalizados. A eles devemos devolver a moeda da responsabilidade penal por ter tornado inviável a vida de milhões de seres vivos nesse planeta. E por tentar privatizar e se apropriar de bens que eles nunca produziram! A Deus e a seus pobres a quem pertence o ‘Reino’ devemos reconhecer o que é, efetivamente, Dele: o ar e o sopro da vida, os mares, as lagoas, as nascentes e os rios de água cristalina para todos; as terras férteis e os desertos, as colinas e as montanhas, as matas e o sertão, o ouro, a prata e todo minério. Algo que jamais pode ser mercantilizado e trocado. A Deus pertencem a dignidade e a vida de todo homem e toda mulher, de qualquer tipo de ‘raça, cultura, religião e opção sexual’. Seres amados que jamais podem ser escravizados, violados, oprimidos e mortos por qualquer ‘César’ desse universo! A Deus pertencem, enfim, os próprios Césares, pequenas moedas humanas que se acham deuses!


domingo, 15 de outubro de 2023

28º Domingo comum - Sem medo de comer no mesmo prato 'vestindo a camisa da compaixão'! (Mt.22, 1-14)

Na tradição bíblica participar de um banquete não era uma mera oportunidade para matar a barriga da fome, mas para estreitar laços de comunhão e de fraternidade. Desde o início da sua missão o próprio Jesus foi acusado de ser um ‘comilão e beberrão, amigo de publicanos e prostitutas’. Aceitar o convite para um banquete significava comunhão íntima e ausência de qualquer tipo de inimizade entre os convidados. Dessa forma entendemos porque Jesus na parábola hodierna acusa a elite do templo de ter sempre recusado o convite do Pai em sentar à mesma mesa. Afinal, os arrogantes e intolerantes do templo ao acolherem o convite deveriam, necessariamente, se confrontar com aqueles pecadores e impuros que condenavam, e tendo que fazer comunhão com eles. Daí, a recusa. Jesus deixa claro que quem não está disposto a sentar à mesma mesa e comer o mesmo pão com todas as pessoas, perde a sua vaga. Deixa de ser um escolhido/eleito! A chance será oferecida a ‘bons e maus’, venham de onde vierem que aderirem ao convite. Uma condição, contudo, é pedida a todos: que TODOS vistam a camisa da tolerância e da compaixão do ‘dono da festa’! Tristemente, ainda hoje, os descendentes das prepotentes elites de Israel continuam a boicotar o convite para o BANQUETE DA PAZ e vestindo roupas cheias de sangue!


sábado, 7 de outubro de 2023

27 domingo comum - Cansou de amar, já era! (Mt.21,33-43)

 Amor intenso e permanente unidirecional não retribuído pode morrer por inanição. Amar incansavelmente sem receber nenhum sinal em troca desmotiva e cansa. Ou existe um mínimo de reciprocidade que o alimenta ou ele pode ser direcionado a outros. A força e o desejo de amar não desaparece, simplesmente é direcionado lá onde há pessoas que o valorizam. E não por isso quem amou passa a odiar quem não soube se alimentar daquele amor. Jesus nesta parábola resgata a sua relação de amor e de dedicação para com o seu próprio povo. Atitudes de compaixão e ternura que não foram valorizadas, ao contrário, foram distorcidas e rejeitadas. Não sobrou outra saída para o Mestre se não a de dirigir a sua capacidade de amar aos descartados e marginalizados de dentro e de fora de Israel. Os supostos eleitos por Deus deixam o lugar aos excluídos e pagãos. Os frequentadores e igrejeiros são suplantados por aqueles que nunca pisaram num templo. São estes que ao se sentirem pela primeira vez amados e não julgados iniciam a reproduzir novas relações de acolhida e comunhão. E não se cansam de amar quem os ama!

sábado, 30 de setembro de 2023

26 domingo - Misericórdia e compaixão, e não sacrifício e louvor! Mt. 21,28-32

Ainda hoje para muitos cristãos a frequência ao templo e a prática sacramental são critérios únicos e irrenunciáveis de adesão à Boa Nova de Jesus de Nazaré. O compromisso em fazer surgir uma nova humanidade, uma inédita convivência e um novo jeito de administrá-la seria medido pelo grau de participação a liturgias, celebrações e ritos. Não é o que nos diz Jesus no trecho evangélico de hoje! Nessa elucidativa parábola autoexplicativa da sua missão, Jesus deixa claro que discípulo de verdade é o que adere à sua proposta e ao programa de 'governança de Deus', independentemente de ser 'frequentador' do templo e/ou obediente aos seus preceitos litúrgicos. Dito de outra forma: a pessoa que nunca pisa na igreja, mas vive no cotidiano a solidariedade, a compaixão e a acolhida aos necessitados já entrou, paradoxalmente, na lógica da 'realeza de Deus'. Os pecadores clássicos segundo os 'bem intencionados praticantes' como as prostitutas e os ladrões públicos ao acolherem o convite de mudança de Jesus estarão ocupando, definitivamente, o lugar que os presunçosos devotos achavam pertencer a eles! Misericórdia e justiça valem mais do que mil sacrifícios e louvores!

Na contramão da decisão histórica do STF senado brasileiro aprova Marco Temporal. Vergonhoso!

O Senado aprovou, nesta quarta-feira (27), o projeto de lei que estabelece que os povos indígenas só têm direito às terras que ocupavam ou reivindicavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal, tese conhecida como marco temporal. O projeto segue agora para a sanção presidencial. A matéria já tinha sido aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

A proposta autoriza a exploração econômica das terras indígenas, inclusive com a contratação de não indígenas, desde que aprovada pela comunidade e com a garantia de promover benefícios à população local. Para o relator, senador Marcos Rogério (PL-RO), o projeto traz segurança jurídica ao campo. Segundo ele, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de invalidar a tese do marco temporal não impede a decisão do Legislativo. “Esta é uma decisão política. Hoje, estamos reafirmando o papel desta Casa. Com esse projeto, o Parlamento tem a oportunidade de dar uma resposta para esses milhões de brasileiros que estão no campo trabalhando e produzindo”, disse.

Na última quinta-feira (21), a Suprema Corte decidiu, por 9 votos a 2, que é inconstitucional limitar o direito de comunidades indígenas ao usufruto exclusivo das terras ocupadas por seus povos em função da data em que a Constituição Federal passou a vigorar. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), negou que a aprovação do projeto seja para afrontar o STF. “Não há sentimento revanchista com a Suprema Corte. Sempre defendi a autonomia do Judiciário e o valor do STF. Mas não podemos nos omitir do nosso dever: legislar”, disse.  Os senadores contrários à tese do marco temporal criticaram a legalidade da proposta aprovada. “Ele fere frontalmente os povos indígenas do Brasil, sobretudo aqueles que estão em situação de isolamento, ao permitir o acesso [a comunidades indígenas isoladas] sem critério de saúde pública, sem respeitar aquilo que está estabelecido hoje. Este projeto também premia a ocupação irregular [dos territórios tradicionais reivindicados por povos indígenas], estabelecendo uma garantia de permanência para quem está em situação irregular”, afirmou a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), durante a votação na CCJ. 


* Com informações da Agência Senado


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

STF cobra do governo relatório sobre medidas de proteção ao Povo Yanomami

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal apresente um relatório detalhado sobre o andamento das medidas para garantir proteção ao Povo Yanomami. A decisão se deu após a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) apontar que órgãos federais estão descumprindo determinações da Corte e que há um aumento de 4% no garimpo na Terra Yanomami entre janeiro e junho. Em 2021, Barroso, que vai assumir a presidência do STF na próxima 5ª feira (28/9), determinou que o governo federal tomasse imediatamente “todas as medidas necessárias” para proteger a vida, a saúde e a segurança de populações indígenas das TIs Yanomami e Munduruku. Pela decisão, o governo deveria “destacar todo o efetivo necessário a tal fim e permanecer no local enquanto presente tal risco”, lembra o g1.

A APIB disse que há resistência das Forças Armadas em auxiliar órgãos do governo no cumprimento das medidas de proteção. Isso tem dificultado o combate à mineração ilegal e a entrega de cestas alimentares destinadas à ajuda humanitária. Outro ponto é que o espaço aéreo na região ficou fechado por apenas seis dias. A entidade também disse que houve o agravamento da crise sanitária em algumas comunidades, com aumento de incidência de malária em até 11 vezes em alguns locais, se comparado com o mesmo período do ano anterior.

Metrópoles, Poder 360, Correio Braziliense, Carta Capital e Jornal GGN também noticiaram a decisão do STF em relação aos Yanomami.


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Jovem Guajajara morre e outros dois sofrem ferimentos em acidente de moto provocado pela negligência de um fazendeiro no interior de Grajaú

O jovem indígena Eurico Filho Guajajara da aldeia Coquinho II perdeu a vida, ontem, dia 24 de setembro, ao se chocar numa montanha de barro duro colocado na estrada de acesso às aldeias, entre 18:30 e 19:00, na altura do povoado Alto do Coco, município de Grajaú. A estrada que é frequentada quase que exclusivamente pelos indígenas foi entupida de barro pelo proprietário João Filho conhecido como Paizim que vinha fazendo trabalhos com uma máquina carregadeira em sua propriedade mas deixando entulhos na estrada. Ironia do destino quis que, justamente o pai da vítima, Eurico, poucos dias antes, fosse alertar o não indígena a retirar aquele entulho, justificando que, pela posição em que se encontrava, poderia provocar um sério acidente. O responsável pelo acidente respondeu ao pai que iria retirar imediatamente, algo que, lastimavelmente, não fez. No domingo de ontem, já de noite, Eurico Filho passava com a sua moto, mas não conseguiu avistar em tempo o obstáculo inesperado, perdendo o controle da sua moto e capotando de mau jeito. Não deu outra: a moto caiu em cima do Eurico que, na queda ruinosa, quebrou o pescoço. Poucos instantes mais tarde vinham se aproximando do local outros dois indígenas que, também, perderam o controle ao esbarrar no barro duro e alto que ainda continuava no meio da estrada. Também eles caíram reportando várias feridas, mas não de forma grave. 

No momento da edição dessa postagem está ocorrendo o velório de Eurico filho na aldeia Coquinho II, num clima de comoção e de revolta. Um cacique da terra Canabrava informou que o proprietário e autor do acidente ofereceu até um boi para o pai da vítima não abrir inquérito e se livrar de eventuais responsabilidades penais. Não há dúvida que houve homicídio culposo, ou seja, quando a pessoa não tem a intenção de matar, mas mesmo assim acaba provocando a morte de alguém pela sua própria irresponsabilidade, negligência, descuido ou imperícia. A Força Nacional que desde o mês passado se encontra na Terra Indígena Canabrava, solicitada a intervir, deixou claro que não é de sua competência intervir no trágico episódio, e não interveio. Algumas lideranças indígenas estão a solicitar a Polícia Federal e a Polícia Civil para que se investigue a morte de Eurico Filho e o ferimento de outros dois indígenas Guajajara, de forma que atos negligentes como esse não venham a se repetir. A Coordenação da FUNAI de Imperatriz também foi informada do ocorrido, mas até o presente momento não deu nenhum tipo de resposta.