sábado, 30 de abril de 2011

Tomé: sentir sem necessariamente ver! (Jo.20, 19-31)



Vivemos numa sociedade em que o ver, o constatar, o tocar continuam tendo uma importância ilimitada. O predomínio da razão absoluta parece ter esgotado a sua missão. Está dando sinais de enfraquecimento. A assim chamada ‘explicação científica’ parece não compreender e não consegue destrinchar a complexidade da realidade humana. Talvez nem o suficiente para termos algumas garantias de que o que ‘vemos’ é ‘real’! Parece haver um retorno sempre mais intenso ao ‘sentir’, ao ‘experimentar com os sentidos’. Uma espécie de retorno às emoções, aos grandes sentimentos, às experiências místicas arrebatadoras. Emoções, sentimentos que ‘nos fazem sentir bem’! Não importa a sua duração. Nem tampouco o objeto que possa ter desencadeado ‘esse sentir’. Um prevalecer do sentir sobre o ver, o tocar. A emoção intensa parece ter sentido por si mesma. E que se repita mais vezes!


Certamente a experiência pascal dos discípulos e discípulas de Jesus envolve emoção, experiência arrebatadora. Uma experiência em que o ‘ver’ é suplantado pelo ‘sentir’. Mas, diferentemente do que parece ocorrer na atual sociedade pós-moderna, o ‘sentir’ dos seguidores de Jesus está alicerçado na memória e na reprodução de gestos, ações, escolhas de vida reais e históricas de Jesus. Não um conjunto de emoções repentinas, desencadeadas por alguma ‘visão’ extraordinária, mas uma tomada de consciência inédita que envolve razão e emoção. A consciência/descoberta progressiva e coletiva de que Jesus de Nazaré continuava a perdoar como quando estava ‘vivo’ no meio dos seus. Mais: perdoava-os plenamente a eles mesmos, e não tanto ‘os pecadores’, genericamente. Os mesmos que o haviam abandonado e que se haviam dispersado agora ‘sentem’ que Jesus está no meio deles. Oferecendo paz. Oferecendo um novo início. Um processo lento, carregado de dúvidas e inseguranças. Mas é na experiência da dúvida e do tateamento contínuo do que significa fazer reviver Jesus e a sua prática que começam a sentir uma grande paz interior. A paz de quem se sente novamente perdoado e não julgado. De quem se sente chamado a ‘perdoar/pacificar’ homens e mulheres que haviam feito a experiência da traição e infidelidade. Não uma emoção repentina e volátil. Não um desejo morboso de ver, tocar, provar, mas um sentir consciente e duradouro de que eles e elas, - mesmo sem provas palpáveis – podem oferecer a mesma paz que o Mestre oferecia.


O Tomé que estava em cada discípulo e discípula e está em cada um de nós, longe de ser uma ameaça ao encontro real com Jesus ressuscitado, é a condição sem a qual dificilmente chegamos a sentir a paz plena. Sem necessariamente....vê-la!

sábado, 23 de abril de 2011

PÁSCOA - AINDA VIVO....NELES E NELAS!

Quando morre uma pessoa querida que amamos e estimamos profundamente experimentamos dentro de nós fortes emoções. Dor, choro inconsolável, sensação de abandono, angústia, depressão. É uma reação normal do nosso organismo na sua dimensão psicofísica. A visita ao lugar onde a pessoa amada está enterrada é quase diária. Parece ser uma extrema tentativa de chamá-la de volta para vida. Ou de dar continuidade ao afeto que sentíamos por ela antes do distanciamento definitivo. Num segundo momento, com o passar do tempo, a dor e a tristeza interior se amenizam um pouco. Emerge uma sutil e suave nostalgia da pessoa querida. Recuperamos fotos, lembramos acontecimentos, fazemos memória das suas palavras e dos seus gestos. Devagar, entra uma certa conformação com a sua ausência física. Recuperamos uma certa serenidade. Às vezes, podemos até nos sentir culpados por não sentirmos a mesma dor intensa que experimentávamos após a sua morte. Temos a impressão de sermos injustos com o falecido por não chorarmos como antigamente o seu afastamento de nós. Entretanto, a ligação com ele continua forte, mas mais serena. Uma mistura de saudade e paz contida.



Esta é, em geral, a reação, e a relação mais comum que as pessoas mantêm com as pessoas queridas que nos abandonaram fisicamente. Há, porém, uma terceira fase, pouco comum, mas infinitamente mais criativa e produtiva. É quando os que ficaram começam a perceber que podem manter viva a pessoa amada mediante uma relação totalmente inédita. Quando reproduzem com fidelidade e criatividade os valores, as opções de vida, os compromissos éticos da pessoa amada. Nesses casos, acontece ressurreição! Para os dois sujeitos da relação. Para quem se foi e para quem ficou. A morte, de fato, carrega consigo o corpo da pessoa amada. Transforma-o num cadáver. Entretanto, a morte não seqüestra o patrimônio humano, espiritual e moral de quem se foi. Desde que os que ficam se sintam herdeiros ativos da riqueza humana que a pessoa amada deixou.



Esta foi a experiência de Jesus. Ou melhor, dos seus discípulos e discípulas. Após um primeiro momento de decepção e desespero, os seguidores de Jesus se dispersaram. Regressaram aos seus lugares originários. A ilusão da Realeza de Deus e da libertação de Israel havia se desmanchado. O sonho de uma nova realidade para os pobres havia fragorosamente ruído. Num segundo momento, um grupo de mulheres inconformadas teima em visitar insistentemente o sepulcro de Jesus. Imaginam que podem mantê-Lo ainda próximo de si. Esperam o inesperado. As visitas se tornam sempre mais freqüentes, mas continuam fazendo a experiência da ausência e do vazio interior. Jesus parece ter sumido definitivamente. Não há o que esperar. Mas no lugar dos mortos eis uma revelação! Uma intuição. Lá só havia o cadáver de Jesus. O mestre, compassivo e misericordioso, amigo dos pecadores e dos pobres, não podia estar aí, no lugar dos mortos, dos cadáveres. Ele só podia estar num outro lugar. Não um lugar físico, geográfico, mas um lugar acessível somente àqueles/as que nunca deixam de amar a pessoa amada. Mesmo após a sua morte biológica. Ele poderia ser ‘resgatado’ e continuar vivo no meio deles/as se alguém tivesse a coragem e a ousadia de retomar e se re-apropriar do patrimônio humano e espiritual que Jesus lhes havia deixado. Ainda havia tempo para resgatá-Lo de uma segunda morte: a do esquecimento e do abandono. ‘As mulheres de Jesus’ abandonam definitivamente o cemitério, o lugar dos mortos.



Começam a procurá-Lo na ‘Galiléia das nações’. A Galiléia dos impuros, dos esquecidos, dos desesperançados. A Galiléia onde eles/as haviam conhecido e convivido com o pregador misericordioso. Conseguem convencer Pedro e os demais discípulos/as que Jesus poderia ‘ser visto e sentido’ como o vivente pelas pessoas se todos eles/as reproduzissem os seus mesmos gestos. Se eles/as voltassem a curar os leprosos, levantar os coxos, abrir a vista aos cegos, e anunciar a boa nova aos pobres. Inicia assim um movimento irrefreável que amplia e reproduz as opções e as convicções que eram de Jesus. Com a sua morte os seguidores de Jesus se reencontram consigo mesmos e com um ‘novo Jesus’. Uma experiência de fé luminosa. Jesus não é mais um mestre a ser chorado ou lembrado mediante algumas lembranças carregadas de saudade. É o ‘ressuscitado’ porque devolveu esperança e vida a discípulos/as decepcionados e desanimados. Jesus é o ‘ressuscitado’ porque ‘os seus’ seguidores, afinal, nunca o haviam deixado morrer!



Feliz vida nova!

terça-feira, 19 de abril de 2011

DIA DOS POVOS INDÍGENAS - Acabemos com o 'dia do índio'!




Mais um ‘dia do índio’! Mais uma vez mantém-se a mesma e imprópria linguagem. Jornais de São Luis, - poucos pela verdade a lembrar esse dia, – continuam falando em ‘tribos’, ‘sociedades’, e falando generalidades. Isto não seria tão grave se colocassem de forma responsável como vivem, de fato, hoje, os povos indígenas no Maranhão e no Brasil. Sobre os descalabros estaduais e federais, - sem falar dos preconceitos difusos, racistas e intolerantes das ‘massas’, – nem uma palavra sequer. No solo da 7ª potência econômica do planeta continua-se a cultivar a cultura do ‘índio exótico’, do folclore indígena requentado, e das intolerâncias reprimidas para com esses históricos ‘estorvos’ ao crescimento, e à plena emancipação do pujante Brasil. Numa repetição oficial que beira a macaquice, presidentes, governadores, ministros, militares e ministros do STF – continuam a advogar direta ou indiretamente a plena integração dos povos indígenas à nação – Brasil. Ou seja, ao seu crescimento econômico.


Em outras palavras, ‘esses poucos índios’, segundo eles, acabariam interferindo negativamente nos planos de expansão e de desenvolvimento que a nação está levando adiante de forma espetacular. Qual espaço caberá e quanta voz será concedida a esses povos na arena nacional nos próximos anos? Haverá capacidade cidadã e sabedoria política para conjugar direitos constitucionais e desejos irrefreáveis de investimentos a todo custo interferindo em territórios e culturas indígenas? Essas e outras interrogações deverão ser respondidas não somente pela nova presidenta, mas por toda a sociedade brasileira. Em geral, quando uma nação se considera a ‘bola da vez’ em termos de oportunidades e chances para enriquecer, sacrificam-se direitos, espaços sagrados, ambiente, relações humanas.


Que os povos indígenas do Brasil e do Maranhão nos ajudem a não ‘perder a cabeça’ e a compreender que a vida não é feita só de crescimento, investimento, desenvolvimento.....!

sábado, 16 de abril de 2011

Semana Santa: Deus 'existe-está' nos crucificados/as!



Os índios Ka’apor, que acompanho desde há muitos anos em suas vicissitudes, quando me visitaram no longínquo 1984, em Santa Luzia do Paruá, chegaram durante uma celebração eucarística. Eu os flagrei atentos e atônitos, do lado de fora da igreja. Encostados nas janelas observavam tudo. Após a missa, me perguntaram quem era ‘aquele homem esticado num pau, e com pregos nas mãos e nos pés’, pendurado na parede principal do templo. Disse-lhes que era Jesus crucificado! Retrucaram logo, sem esperar que acrescentasse algo mais: ’Que mau gosto que vocês cristãos têm. Um morto não deveria ser exibido daquele jeito!’ Fiquei sem palavras, mas ensaiei dizer algo. Disse-lhes que Jesus, como Ma’ira, - o herói cultural deles, e dos Tupi em geral, - após a morte, voltara a viver. Imediatamente, um deles me fixou com intensidade, e disse: ‘Por que então vocês não tiram os pregos dele e o mostram com os olhos abertos, como um que vive?’ Emudeci. Não insisti. A conversa teológica havia terminado.


Jesus crucificado: escândalo para gregos, judeus, romanos e.... para os índios Ka’apor! Com efeito, é um escândalo expor o corpo de um derrotado, de um fracassado. É um escândalo para os pós-modernos, cristãos ou não. Estes parecem educados a ‘vencerem sempre, e a qualquer preço’. Saborear a amargura da derrota, da falência, da fragilidade é por em xeque o objetivo dos seus modelos culturais. Mais escandaloso, contudo, é expor publicamente o símbolo da derrota e do fracasso humano. E se identificar com ele. Reconhecer, enfim, que a morte, a humilhação, a condenação injusta, a brutalidade humana, a maldade fazem parte da vida cotidiana dos humanos. Daqueles que não são e não podem ser ‘super-homens’. Mais sedutor, e mais alienante, seria apresentar e cultuar um ‘todo-poderoso’ invencível que, embora temporariamente dominado, ressurge permanentemente com poder e glória. Talvez até para eliminar os seus algozes. Escândalo dos escândalos, contudo, é afirmar que ‘naqueles crucificados’ Deus também é crucificado! È como dizer a alguém que procura Deus com insistência que Ele está lá onde há alguém sendo crucificado, torturado, eliminado. Espantosamente, a presença de Deus se manifesta quando aqueles que Ele chamou à vida são injusta e barbaramente eliminados. Deus não estaria sendo indiferente ou ausente diante de tal trágico destino. Ao contrário, Ele mesmo, estaria sendo humilhado e morto nos crucificados/as da história.


Isto, porém, não passaria de heresia, ou quem sabe até de idílio bíblico-teológico se não houver um esclarecimento essencial. Deus não está presente no crucificado porque aprova tal prática. Menos ainda porque esta seria uma espécie de expiação necessária para merecer o Seu perdão, ou para ganhar uma hipotética salvação. Ou, pior, porque Deus, afinal é, por sua natureza, um ser sedento de sangue e de sacrifícios, e se identifica mais com a morte do que com a vida plena das suas criaturas! Deus morre ‘nos’ crucificados/as como sinal radical e profético da Sua absoluta não conformação com a violência, a injustiça, a tortura e a eliminação dos seus filhos e filhas nascidas para viver a vida em plenitude. Ao morrer com eles, Deus se revela. Torna-se uma presença que contesta e protesta contra toda morte violenta, planejada, anunciada, insinuada, doce ou atroz. Uma presença que aponta para a sua radical e necessária superação. Para um compromisso intransigente em favor da defesa da vida, do direito, da integridade física e moral dos ameaçados da sociedade planetária. Ao final, convenhamos: escândalo mesmo é expor um crucifixo num prédio público, talvez num tribunal de justiça, ou numa igreja, ou no próprio peito, e utilizá-lo para camuflar a própria falta de compaixão, a sua indiferença ou até a sua cumplicidade com um número sempre maior de Pilatos, Herodes, Césares, Sumos Sacerdotes e massas populares manipuláveis que condenam e conduzem todo dia ao Calvário da exclusão, do racismo, da fome, da arrogância e da hipocrisia institucionalizada um número sem fim de homens e mulheres que haviam sido chamados para a vida!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Quaresma V - Vida nova para muitos Lázaros ambulantes! (Jo. 11,1-43)


Convenhamos: é bastante inverossímil que uma pessoa após 4 dias de se encontrar biologicamente morta volte a viver. Que consiga reativar a circulação sanguínea do seu organismo e de todos os seus órgãos vitais parados há vários dias. Haverá quem diga que para Deus tudo é possível. Que isto ocorreu somente com Jesus, pois era o filho de Deus onipotente. Ou que, afinal, está escrito lá no evangelho, e isto não pode ser interpretado de forma diferente. A morte, porém, nos evangelhos, nem sempre é entendida como morte biológica! Como ‘chorar’, na bíblia, nem sempre significa ‘verter lágrimas’, e sim, experimentar uma situação de desespero. E assim por diante. Além do mais, se o objetivo de João, no caso do evangelho de hoje, era somente o de exaltar o ‘poder onipotente de Deus em Jesus’, não precisava recorrer a um acontecimento tão espetacular como uma ressurreição ‘biológica’, a de Lázaro. Talvez obtivesse o resultado contrário. De fato, quem de nós iria se ‘reconhecer’ em tal acontecimento? Muitos de nós, com razão, diriam que isto aconteceu milagrosamente com Lázaro, mas não conosco. Nem tampouco com milhões e milhões de Lázaros que apodrecem em frias ‘covas’, ou em sepulcros aconchegantes. Nem seria a experiência de milhões de Martas e Marias que vivenciam todo dia a ‘perda’ de ‘irmãos e irmãs’.

João, porém, quer nos dizer que aquela experiência de ‘vida reconquistada’, mediante a fé em Jesus, pode e deve ser uma experiência ao alcance de muitos. Pensemos, por um instante, na experiência de numerosas pessoas que respiram, correm, lutam, mas que perderam a fé na vida. A fé em si mesmas. Que não têm dentro delas motivações que dêem sentido ao seu viver. Um viver que só traz sofrimento e....morte.
São vidas roubadas. Sistematicamente negadas. Desesperançadas. Vidas interrompidas por traumas, medos, violências de todo tipo, e falta de perspectivas. Verdadeiros Lázaros ambulantes! Biologicamente vivos, mas mortos por dentro. Lázaros que não contam, muitas vezes, com o afeto e a proximidade de ‘Martas e Marias’. Que não contam com a comoção, a preocupação fraternal, e o amor de um amigo, como o de Jesus para com Lázaro.

João apresenta Jesus como uma verdadeira ‘ressurreição itinerante’ para muitas pessoas que faziam a experiência da morte em sentido lato. Que viviam nos frios sepulcros do desespero, da marginalização social e religiosa, e da escuridão da vida. Considerados já ‘podres’ e acabados por todo o mundo. Aparentemente abandonados até por Deus que parecia ausente ou indiferente ao seu sofrimento. Que parece chegar atrasado justamente nos momentos cruciais de uma vida ameaçada. No evangelho hodierno Jesus representa, ele mesmo, a vontade de todas aquelas pessoas que, hoje, movidas pela compaixão tiram dos sepulcros da ‘não vida’ quantos foram nele enterrados. Que arrancam as ‘faixas’ do medo, e da escravidão da morte todos aqueles que já haviam desistido de lutar e acreditar na vida. E, por ‘crerem’ que a vida/esperança é mais forte do que a morte, permitem que muitos Lázaros ressuscitem, voltem a caminhar, a levantar a cabeça. A ousar sonhar. A voltar a viver em plenitude.

Ressurreições acontecem!

sábado, 2 de abril de 2011

Quersma IV - libertar da cegueira da manipulação e do sentimento de culpa. (Jo. 9, 1-34)



Estão ainda fortemente enraizados em nós cristãos, principalmente, numerosos sentimentos de culpa. Sentimo-nos culpados quando não cumprimos com determinados preceitos que nos foram inoculados como sendo vontade divina. As nossas pequenas ou grandes traições se tornam, assim, traições ao próprio Deus. Traições também ao nosso ser mais profundo que é posse de Deus. Sentimo-nos sujos, inúteis, merecedores de um ‘justo castigo’. Afinal, é assim que funciona a lógica social, a lógica humana. Não passa pela nossa cabeça que Deus pense e aja de forma diferente. Que os sentimentos de culpa que experimentamos ao violar uma ‘lei divina’, - mas que é, afinal, uma lei ‘humana’, - é uma atural reação psicológica. A reação de alguém que foi culturalmente educado, ou manipulado, a se relacionar de forma inadequada com as ‘normas’ estabelecidas por um grupo ou uma instituição social ou religiosa. Chegamos frequentemente ao absurdo de ver pessoas que ao se sentir culpadas esperam e desejam a punição como forma de se libertarem dos fortes sentimentos de culpa que vivenciam. Se esta punição não chega, - porque a sua desobediência à norma/preceito não foi escancarada abertamente, - a própria pessoa começa a alimentar formas de autopunição.



Nada mais lógico, portanto, os discípulos perguntarem a Jesus se o cego era tal como resultado de uma ‘merecedora punição’ pelas suas próprias desobediências ou pelas dos seus pais. A resposta de Jesus é surpreendente. Jesus declara que a deficiência visual daquela pessoa que lhe foi apresentada não era o resultado de nenhum tipo de castigo divino. Ao contrário, ‘ele é assim para que nele, (no cego)’, Deus manifeste o seu poder’! (v.3) Ou seja, Deus não pune e não castiga! Não faz parte da lógica de Deus agir assim. Mais que isso: Deus se revela aos seus filhos e filhas justamente quando eles fazem a experiência da ‘ausência de luz’, do incompleto. Entendamo-nos: Deus se revela nisso não para nos conformar nas nossas trevas, mas para nos abrir ‘os olhos’ sobre inúmeras manipulações e formas de dependência que nos mantêm sob o domínio das trevas, da não luz. Estas são o resultado da ação articulada de muitos ‘guias cegos’ que ‘por afirmarem que enxergam continuam cegos’ e fazem com que outros permaneçam tais.

Jesus, no seu gesto de fazer barro mediante a sua saliva, molhando a terra e colocando-a nos olhos do cego, quer reproduzir simbolicamente o gesto inicial de Deus: criar e plasmar um novo Adão, uma nova humanidade. Um novo ser/humanidade não mais vítima e escravo das trevas das manipulações, dos sentimentos de culpa, do medo, mas esperançoso e aberto para o futuro a ser permanentemente transformado e re-criado. A luz que se experimenta após uma vida de escuridão é infinitamente mais luminosa e iluminadora que a luz da cotidianidade mesquinha de quem se acha ‘vidente’! Muitos irão desconfiar dessa nova criatura liberta e libertadora, como ocorreu com o cego. Irão resistir para não ter que admitir que a sua própria cegueira foi causadora de outras cegueiras. Não haverá, porém, que possa deter a nova coragem, a nova fé, irresistível e arrebatadora, daquele que sabe o que significou passar uma vida sem ’enxergar’!