sexta-feira, 18 de abril de 2008

Territórios indígenas e mudanças sócio-ambientais. Algumas reflexões.

Não há como falar em territórios indígenas ou em mudanças ambientais e desenvolvimento entre as sociedades indígenas no MA sem procurar entender as mudanças sócio-econômicas que se deram nesses últimos 20 dentro delas. Mudanças produzidas de fora para dentro. Programadas não pelas sociedades indígenas, mas por forças externas a elas. As sociedades indígenas que foram obrigados a viverem quase sempre acuados o tempo todo tiveram que reagir, se defender, resistir, e tentar revidar para não sucumbir Quase nunca tiveram a tranqüilidade, as condições, as oportunidades de pensar num projeto de vida próprio, autônomo, afirmativo, seja lá o que for: projeto de educação, de saúde, de fortalecimento da identidade, de sustentação.... Sempre foram obrigados a responder, a contra-atacar diante de ataques, pressões, ameaças, negligências oficiais...

O marco, o divisor de águas dessas mudanças, aqui no Maranhão, encontra sua origem na implementação do Projeto Grande Carajás no início dos anos 80. Não significou simplesmente uma ferrovia se adentrando em alguns territórios indígenas, ou beirando outros. A Ferrovia Carajás, desde então, vem significando para as sociedades indígenas no Maranhão essencialmente 2 coisas: - inclusive para as que não estavam diretamente atingidas (os Krikati, porém, tinham a Eletronorte...) -
1. Os territórios indígenas começam a ficar ao alcance físico-geográfico de qualquer grupo social e não somente das sociedades indígenas. De madeireiros a fazendeiro, de lavrador a criador de gado, de garimpeiro a usineiros todos começam a ter acesso ao patrimônio indígena sem encontrar maiores resistências. As terras indígenas deixam de ser territórios indígenas exclusivos e espaços de reprodução biológica e cultural para se tornarem quase um patrimônio público a ser repartido e usufruído. A terra-mãe (alguém fala ainda em terra-mãe?) outrora respeitada e adorada, com seus lugares sagrados alimentadores de mitos e histórias, aquela terra-mãe fonte de identidade renovada começa se tornar objeto de cobiça, de troca, de ganância, fonte de lucro para uns e para outros. O estado que vinha facilitando a implementação da Ferrovia e de tudo o que ela significava conhecia de antemão suas conseqüências e vislumbrou nisso a melhor oportunidade para tentar desmantelar ou bagunçar significativamente não somente a própria concepção indígena de terra-mãe, mas a própria estrutura social e política das sociedades indígenas. Implodiu, concretamente, a idéia e a prática de liderança indígena: muitos chefes e poucos líderes, muitos caciques e poucos índios para segui-los. O mesmo processo produziu o surgimento de elites indígenas abastadas, ricas, poderosas, em detrimento da grande maioria esquecida, faminta e desassistida. Decretou-se o fim de inúmeros “tabus” sexuais e alimentares, o desaparecimento quase completo da pajelança indígena....

2. A Ferrovia Carajás, vista aqui não somente como mero projeto econômico autoritário, mas também na sua dimensão simbólica, vem significando, desde a sua implantação, para várias sociedades indígenas a monetarização das relações sociais, ou seja, tudo devia ser calculado em dinheiro, em moeda viva. Tudo, até o imaterial, tem valor econômico, pode ser vendido ou comprado. Os 13 milhões de dólares que na época a Vale reservou, supostamente para criar infra-estruturas nas aldeias e demarcar áreas indígenas, na realidade, foram utilizados para seduzir e corromper funcionários e lideranças indígenas e minar, principalmente, o sistema indígena que estava baseado ainda na troca, na reciprocidade, na distribuição equânime. Os projetos agrícolas eram produzidos ignorando a lógica indígena e impostos ás comunidades indígenas serviram somente para mostrar à sociedade não indígena que os índios não sabem produzir de forma moderna e inoculando no imaginário indígena a idéia de que só com dinheiro na mão é possível fazer tudo. Os fracassos dos projetos agrícolas não serviram para repensar e criar novos modelos de produção indígena diferenciados, adequados ás suas aspirações e possibilidades. Ainda hoje a Vale, sem algum critério, repassa meio milhão de Reais por ano à FUNAI do MA para esses tipos de projetos. Cito aqui a Ferrovia como meio e como símbolo disso, mas é claro que o próprio Estado com a introdução de benefícios e aposentadorias expressos somente “em dinheiro” (quando se podia criar outras formas de benefícios!), de empregos remunerados, de bolsas disso e daquilo, dos projetos associativos, contribuiu para reforçar a prática monetarista das relações sociais e culturais. Aqui não trata de esconder o dinheiro aos índios ou privá-los de direitos. Trata-se de ter introduzido o “papel-moeda e o cartão magnético” nas relações sociais indígenas de forma abrupta, indiscriminada, sem critérios, de forma atordoante e, principalmente, sem ter concedido um tempo hábil para os índios re-significar “aquele papel” com o qual podem comprar TUDO o que quiserem.

Todas essas mudanças repercutem no modo de conceber o território indígena e no modo de administrá-lo. Fica claro que o Estado-Ibama da forma como está estruturado é incapaz, e sempre o será, de garantir a integridade dos territórios indígena até porque o próprio estado tem o rosto dos agressores e invasores desses territórios. As operações especiais oficiais, de caráter tópico, têm valor instantâneo, mas não surtem efeito a médio prazo. A economia dos povoados próximos dos territórios indígenas se sustenta ainda nas atividades ilegais de extração de madeira das terras indígenas... Fechar as serrarias de uma cidade como Buriticupu, por exemplo, significa parar e engessar a economia local. Nesse sentido, temos que repensar o modelo de desenvolvimento diferenciado e multiforme não somente para as sociedades indígenas, mas também para os não indígenas para que deixem de pressionar permanentemente os territórios indígenas. Ao mesmo tempo, proponho que a grana que é investida (desperdiçada!) nas mobilizações da Polícia Federal, Funai, Ibama, com fretes de carros e diárias polpudas que não surtem efeitos práticos, seja investida nas melhorias de caminhos-estradas internos aos territórios para permitir o deslocamento rápido e permanente de grupos de defesa e fiscalização indígena de caráter coletivo. Enquanto as sociedades indígenas não perceberem que elas e somente elas podem salvaguardar o que é delas (se ainda o consideram tal!) nada irá impedir que a sangria ambiental continue nos antigos sacrários indígenas no Maranhão. Um capítulo a parte mereceriam os "novos territórios urbanos indígenas" que estão nascendo nas cidades de Barra do Corda, Grajaú, Arame....

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Semana dos povos indígenas no Brasil: entre preconceitos e racismos

Aparentava quarenta anos, mais ou menos. Um porte que chamava a atenção. Com passos ritmados e gestos polidos se aproxima ao balcão da loja de Artesanato Indígena, no centro histórico de São Luis, Maranhão. Era uma professora de história do Rio de Janeiro, a passeio. Com voz calma e suave pergunta: “Há muitos índios aqui no Maranhão?” “Há sim, - responde a moça da loja - são oito etnias e mais de 22.000 indígenas!” Retrucou a professora: ”Você acha que haveria possibilidade de visitar algumas aldeias ou há perigo de ser atacada por eles?” A funcionária, visivelmente surpresa por tal pergunta, responde que não, que eles são de paz. Parece uma história absurda, mas não é. Na era da comunicação, da informação rápida, imparcial e total, e da educação escolar formal, permanecem inalteradas muitas das visões e idéias coletivas que herdamos de um passado não tão remoto. A palavra “índio” continua despertando no imaginário e no comportamento social “nacional” emoções, atitudes e fantasias contraditórias. De um passado “sem história e irreal” continua-se a reproduzir não somente as imagens estereotipadas e horripilantes de “seres primitivos” violentos, traiçoeiros, guerreiros, atrasados e preguiçosos, mas preconceitos sociais e culturais inaceitáveis. As visões distorcidas da realidade indígena no País aceitas sem postura crítica continuam produzindo o veneno da intolerância e do racismo. De igual maneira, porém, a partir de um passado idealizado, romântico e igualmente irreal segundo o qual os indígenas seriam “seres altivos, livres, bons selvagens, inocentes e puros, perfeitamente sintonizados com o seu habitat” continua-se a alimentar relações de dominação, subserviência e paternalismo. Segundo essa postura, ainda muito difundida na nossa sociedade, os indígenas precisariam de proteção e tutela especial, pois eles seriam incapazes de decidirem e agirem de forma autônoma. Seja uma que outra visão denota a nossa ignorância e, principalmente, a nossa má fé.
Hoje em dia, não podemos negar que possuímos informações, dados, oportunidades para nos aproximar dessas sociedades/povos culturalmente diferentes com atitudes novas. Sem idealizar, nem demonizar. Encarar o seu jeito de ser como algo que faz parte da pluralidade das expressões da própria existência humana. Algo positivo e enriquecedor. A persistência de inúmeras formas de intolerância social manifesta a nossa falta de vontade de construir, produzir e transformar com os outros. Os “outros” continuam sendo os nossos inimigos, rivais, concorrentes, os que podem derrubar projetos e interesses pessoais ou de grupo. As numerosas expressões anti-indígenas ainda muito arraigadas no nosso cotidiano manifestam um projeto humano incompleto. Somos sistematicamente flagrados na nossa pobreza e carência de sentimentos, emoções, de humanidade. Somos ainda muitos resistentes a lançar pontes para nos aproximar dos outros com respeito e admiração. O medo de sermos absorvidos e sugados pelos outros, o medo de ter que renunciar a algum privilégio para ver o outro crescer nos paralisa. Que a semana dos “povos indígenas no Brasil” nos ajude a sermos humanos com os HUMANOS!

terça-feira, 8 de abril de 2008

Emaús: peregrinos para enfrentar a noite que está a chegar

Os dois discípulos de Emaús refletem a nossa realidade existencial. Pessoas que fazem a experiência de acariciar sonhos e projetos de vida, comunhão e admiração profunda para com uma pessoa e, de repente, tudo desmorona. Os sonhos se dissolvem, os projetos de vida desabam, a pessoa amada e admirada morre ou se afasta. Sentimentos de dor, de decepção, de amargura, de falência humana tomam de conta. A cena evangélica, a metáfora pedagógica nos ajuda a entender como dar a volta por cima a tudo isso....passo a passo.
1. Os dois discípulos saem de Jerusalém e se afastam do grupo de Jesus que insiste em permanecer trancafiado em sua casa, vítima do medo e imobilizado pelo trauma da morte do mestre.
2. Iniciam uma caminhada, à procura, buscando, tentando saídas e ensaiando soluções. Sabem que não é se isolando numa casa que vão poder dar a volta por cima. Procuram luzes e apoios.
3. Ao longo do caminho encontram outros "peregrinos" que sabem compreender e ouvir suas angústias e decepções. Oferecem conforto e luzes para compreender os acontecimentos que marcaram sua vida e produziram tamanha decepção.
4. São peregrinos "humanos" que se inserem em nossas vidas sem ostentar grandes gestos, sinais, milagres. Nem parecem manifestações do "divino" entre nós. Nós aguardamos os grandes sinais e Deus nos propõe "a força da cotidianidade", do comum, do singelo...Somos incapazes de "reconhecê-lo" nesses gestos humanos.
5. O encontro "nos caminhos da vida" com pessoas solidárias, entretanto, começa a produzir um calor novo no coração, uma força redentora, uma esperança quase desaparecida e que se renova. Volta a motivação interior e o desejo profundo de retornar "a viver".
6. No caminho comum criam-se laços de afeto e amizade/solidariedade entre os "peregrinos" e "o peregrino" em que toda tentativa de afastamento uns dos outros é barrada por ambos. "Fica conosco, pois a noite da vida está a chegar e precisamos enfrentá-la juntos!"
7. Na noite da vida, na intimidade familiar, ao redor de uma mesa/banquete, na fraternidade já intuída e antecipada durante o caminho, o pão é partido e distribuído. Não o pão em si, mas o gesto de parti-lo para ser distribuído "abre" definitivamente os olhos de quem vivia na decepção e na morte interior, de quem não vislumbrava saídas.
8. O divino é compreendido no que há de mais profundamente humano: partilhar a vida, os afetos, a amizade, a doação, a gratuidade, a vontade comum de superar tudo o que representa morte. É comunhão e proximidade com os outros. Nisso compreendemos que "Deus" nunca se havia afastado de nós quando pensávamos que estávamos sós na vida.
9. Uma vez intuído e compreendido isso o "peregrino Jesus, Antônio, Maria, Mário...." desaparece. Não precisamos mais vê-lo ou tocá-lo. Ele já faz parte da nossa vida. Já sabemos que está entre nós. A "memória" da sua presença amiga nos mantém vivos e animados. Podemos caminhar "sozinhos"...Podemos enfrentar sozinhos outras decepções e desafios. Ao mesmo tempo, porém, temos a obrigação moral de nos tornar peregrinos de outros que caminham na vida à procura de esperança, de saídas, de felicidade.
10. É a Jerusalém que os dois devem voltar. É lá que encontram os grupo de Jesus ainda trancafiado em casa. É lá que as portas devem ser escancaradas e a nova esperança deve ser testemunhada. "Ao longo do caminho, ao partir o pão nós o vimos e reconhecemos"! Não há como ficar mais fechados e trancafiados. O mundo está precisando de peregrinos que sabem caminhar juntos, e juntos enfrentar "A NOITE QUE ESTÁ PARA CHEGAR"!

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Voltando de Balsas e Grajaú

Estive em Balsas. Participei da consagração episcopal do novo bispo da cidade-diocese, Dom Enemésio. A solenidade foi bem preparada, a acolhida e a hospedagem reservadas aos visitantes foram um verdadeiro primor de eficiência e fraternidade. O medo de todos os presentes era a ameaça da chuva que não se fez de rogada e justamente meia hora antes da celebração caiu copiosamente do céu quase que a "ungir" o novo servo-pastor. Chuva sempre é bênção. Deixa de sê-lo quando se torna enchente e calamidade! A participação maciça das comunidades locais e do interior fez com que a ampla catedral ficasse pequena. Também muitos padres e bispos do Maranhão marcaram presença. À parte alguns normais deslizes a celebração foi chamativa e significativa. Há, contudo, nessas solenidades algo que não me convence. Em determinados momentos aflorava em mim uma estranha sensação de passado, de reminiscências de um antigo e atual triunfalismo eclesiástico, embora contido. Perguntava-me se Jesus teria aceitado vestir aqueles suntuosos paramentos sagrados episcopais...Davam a impressão que se estava assistindo mais a uma investidura de um príncipe do que à disponibilidade pública de "servir" e ser "o último de todos". A igreja católica ainda mantém um ranço principesco e ostentoso, o que é pouco evangélico!
De Balsas fui a Grajaú. Visitei algumas aldeias dos Guajajara. Controlei os trabalhos de ampliação de uma escola que a minha Associação Carlo Ubbiali está promovendo na aldeia Ipu. Faz parte de um acordo-compromisso entre nós e a comunidade indígena local: crair um espaço físico adequado para que a educação escolar indígena seja fonte de renovada identidade, de criatividade, de re-motivação diante dos inúmeros desafios presentes na aldeia-cidade-sociedade. À construção física, embora parcial, se quer ladear a construção intelectual-cultural-humana: projetar o fim da dependência de modelos sócio-culturais alicerçados na ganância, na competição-rivalidade, na esperteza, na falta de ética, visando construir-implementar um projeto político pedagógico específico alicerçado nos valores que moldaram e deram consistência e vida à estrutura social e simbólica dos grupos étnicos-sociais da região: a solidariedade, a comunhão com o todo, a reciprocidade. Um desafio maior do que os seus próprios autores, mas possível de ser SONHADO!