sábado, 30 de agosto de 2008

O servidor sofredor:uma identidade na contra-mão da história (Mt.16,21-27)

“Meu corpo estigmatizado pela dor, pelo cansaço e a saúde fragilizada. Mas, a boca conseguia balbuciar, mesmo assim, como um clamor, frases bíblicas que mais se assemelhavam minha realidade no momento: “Javé ouve minha prece, dá ouvidos às minhas súplicas!”. “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. A cruz pesa!“.”Jesus cai por terra! O Cirineu o ajuda”. “O samaritano recolhe o caído à beira da estrada”. “Vinde a mim todos que estão cansados e oprimidos que vos aliviarei”.

Esse é o trecho de uma carta-desabafo que recebi de uma amiga ao relatar a sua experiência de abandono, de exílio existencial e solidão durante as vicissitudes da vida pelas quais passou e que escolhi como abertura na reflexão sobre o evangelho hodierno. A minha amiga, como Jesus, não havia escolhido e nem desejado “fazer a experiência” da cruz e do abandono como formas de purificação ou de aproximação ao divino. Ela, como Jesus, havia escolhido de enfrentar a vida e seus desafios com coerência e fidelidade a um projeto que era maior que ela. Com certeza, havia intuído que ao tentar se manter fiel a valores e pessoas haveria de pagar pessoalmente com choro, perseguição, ameaças, abandono e, talvez, até com a própria vida.

O fato de “saber medir” as conseqüências de uma determinada escolha não significa “saber lidar ou eliminar”, automaticamente, as conseqüências ameaçadoras que advêm dela. O fato de “saber mergulhar” conscientemente nas conseqüências dolorosas de uma decisão/escolha de vida, sem recuar, sem se apavorar, sem se desesperar, não é enfrentamento fatalista, nem uma espécie de autoafirmação heróica do “super-homem” de Nietzsche que não foge perante o sofrimento, nem um “imperativo categórico” Kantiano, e sim, mera procura de honestidade consigo mesmo. Esta produz felicidade e paz interior. Vida readquirida e reconquistada. Algo que nenhum capital poderá comprar.
Jesus acabava de ser reconhecido por Pedro como “o messias”. O messias no imaginário judeu era o libertador glorioso, o vitorioso, o super-homem. Esta era a identidade que era atribuída àquele que era apontado como messias-ungido de Deus! Jesus, entretanto, havia construído para si uma identidade antagônica àquela elaborada por uma nação inteira. Jesus se encarava como um servidor e ainda por cima, sofredor. Não que Jesus fosse partidário e defensor de uma visão sacrifical segundo a qual, ao se sacrificar, iria salvar a humanidade. Ao contrário: Jesus gostava de viver e queria viver! Até no momento final Jesus suplicou o Pai para que lhe tirasse o cálice-perspectiva do martírio-morte. Jesus começou a construir a sua nova identidade de servo sofredor a partir de uma análise-avaliação realista, histórica, da sua prática-missão. Dos frutos que havia colhido até então, e das conseqüências que vinha assumindo e haveria de arcar para se manter fiel ao projeto de libertar pessoas escravas-dependentes. Libertá-las de seus complexos de culpas e de inferioridade. Das feridas de seus corpos, de seus fantasmas e medos interiores. Da corrupção e cooptação das hierarquias sacerdotais, do Sinédrio e dos representantes do império romano invasor.

Não a sua visão de adivinho divino, e sim a capacidade de ler a sua própria história, os sinais dos tempos, os meandros do ser e do poder humano-diabólico, permitiram que Jesus pudesse intuir que a sua missão teria um desfecho sangrento. Jesus podia ter recuado e esperado. Teria ganhado “a sua vida”, mas certamente teria perdido a sua guerra interior, a sua existência-ser-dignidade. A sua firme decisão de marchar a Jerusalém pode cheirar a “fanatismo” ou pode indicar um erro estratégico caso Ele imaginasse que acolá se manifestaria o Reino de Deus....

Jesus queria apontar coerentemente que a vida nova-salvação surge dos “servos derrotados e sofredores”, dos invisíveis da história. Daqueles que podem até “perder” a sua vida, - pois ela lhes é tirada pelas mãos dos “vencedores-super-homens” e carrascos orgulhosos que querem vencer sempre – mas conseguem, entretanto, dar-lhe pleno sentido. E isto lhes basta!

sábado, 16 de agosto de 2008

“Assunção” de Maria: o corpo, nicho da divindade!

A crença na assunção de Maria ao “céu” não tem respaldo bíblico-teológico. Nem se alicerça em fatos-acontecimentos objetivos históricos, ou seja, na comprovação documental da subida física de um corpo ao céu (algo inverossímil), mas em concepções de vida. As primeiras comunidades cristãs já nos seus primórdios, em seu conturbado processo de “divinização” de Jesus, quiseram reconhecer-enaltecer o papel extraordinário que Maria teve na vida de Jesus. E, ao mesmo tempo, lançar uma mensagem de vida ao mundo: o corpo, por ser “templo-nicho do Espírito” não é algo funcional, instrumental e descartável, mas revela a presença criadora e vital do próprio Deus.
Nas infinitas e nunca totalmente resolvidas disputas dogmático-doutrinárias sobre a humanidade (passível de corrupção e morte) e a divindade (incorruptível) de Jesus ganha consistência a idéia-crença de que não somente o “espírito” tem valor, mas também “o corpo”. O corpo “contém e abriga o espírito”. Sem ele, o corpo, o espírito não existe. Desfigurar, torturar, seviciar corpos é, simultaneamente, tentar apagar-aniquilar o espírito-dignidade-consciência da pessoa. Por isso que Jesus repetia:” Tenham medo, entretanto, daqueles que têm o poder de aniquilar-corromper não somente o vosso espírito (dignidade, consciência), mas também o poder de corromper e trucidar o vosso corpo, juntamente com o vosso espírito!”
A assunção de Maria manifesta a aspiração-desejo das primeiras comunidades de salvaguardar a integralidade da pessoa (corpo e espírito), simbolizada por Maria . Diante da tentação alienante de venerar a supremacia do “espírito” sobre tudo o que é "corporeo", as comunidades nos alertam que ele existe e tem sentido se os corpos são plenamente preservados e respeitados. Por serem dimensões indissociáveis, corpo-espírito, ao ameaçar uma ataca-se a outra, e vice-versa. De fato, uma não existe sem a outra. Querer desejar o céu desprezando “a terra”, ou querer salvar o “espírito” menosprezando “o corpo” seria uma contradição e uma traição à prática evangelizadora de Jesus de Nazaré. Afinal, ele veio para salvar toda pessoa, e a pessoa toda, ou seja, não somente uma banda!
Justamente na liturgia hodierna a igreja resgata o cântico de Maria em que corpos humilhados, submissos e famintos, são elevados, libertados e fartados pela ação do espírito de Deus na vida humana. É nisso que se revela a divindade que está dentro da cada pessoa: assegurar que cada corpo seja, de fato, um templo de liberdade, de respeito, de dignidade plena e de fartura sem fim. O céu-divindade já está aqui na terra-corpo toda vez que isso acontecer. A terra-corpo está no céu-divindade toda vez que encontramos pessoas que como Maria são disponíveis a se tornarem templos de vida e liberdade.
O céu se humaniza, e o humano descobre o divino que está dentro de si.

domingo, 10 de agosto de 2008

Na tempestade da vida, mãos estendidas nos seguram (Mt.14, 22-33)

O trecho evangélico hodierno é uma verdadeira obra-prima de lição existencial. A metáfora evangélica reproduz de forma plástica o que experimentamos frequentemente ao longo da nossa vida: insegurança, impotência diante dos problemas e desafios, fracassos, decepções, tormentas, tempestades, ventanias arrasadoras. É o mar agitado da vida. É o mar dos conflitos, das contradições e das contrariedades, das ondas impetuosas prestes a engolir suas vítimas. Isso é algo inscrito na trajetória humana. Não há como evitar tempestades e ventanias. Entretanto, faz-se necessário examinar como reagimos diante de tudo isso. Às vezes, ao experimentar a insegurança e a impotência na vida, o medo parece nos dominar. O medo paralisa, cega, confunde e desvirtua a realidade. O que poderia ser pequeno e irrelevante torna-se algo grandioso e invencível.
Outras vezes, diante das tormentas da vida tentamos fugir e nos refugiar em espaços e formas de vida que nos alienam totalmente da realidade. É tentativa de fuga de um sofrimento que o consideramos incompreensível. É fuga de um desafio que achamos insuperável, esmagador.

Mateus quer nos revelar qual é a melhor de reagir quando fazemos a experiência da tempestade da vida. Ele o faz ao nos apresentar Jesus que mergulha diretamente na ventania. Jesus não se amedronta e não foge, enfrenta. É no enfrentamento direto que Jesus consegue dominar-controlar a tormenta. Não é tragado por ela, mesmo estando nela, justamente porque a enfrenta. Jesus que caminha sobre as água é a representação plástica da nossa vida: os desafios, os problemas, a maldade, a injustiça humana têm que ser enfrentadas e não escamoteadas, justamente para podermos superá-las e vencê-las. Quem sabe enfrentar vai poder passar-andar por cima sem medo de ser tragado, sugado. É bem verdade que quem faz essa experiência pode se sentir como Pedro, um ser fraco, inseguro, medroso, tendo a clara sensação que vai afogar. O vento parece tragar e arrebatar a pessoa deixando-a à mercê das correntezas, na mais absoluta falta de controle. É nessas horas que devem aparecer “as mãos estendidas” a segurarem com firmeza quantos estão sendo tragados pelas tormentas da vida. Sozinhos dificilmente poderemos sair. Contando, porém, com mãos amigas e solidárias poderemos dominar a tempestade e transformar a ventania em brisa relaxante. E o Deus-fantasma, disforme, irreconhecível-ausente no meio da tempestade, revela o seu rosto-identidade ao segurar a mão daquele que está prestes a ser tragado.

Desejo a todos os pais que sejam essas mãos seguras, meigas, amigas, capazes de segurarem as mãos suplicantes e trêmulas de tantos filhos e filhas. É nessas horas que estes poderão fazer a experiência de se sentirem amados e fortalecidos em sua capacidade de superar desafios e problemas sem escamoteá-los e sem se refugiar em falsas e alucinantes seguranças. FELIZ DIA DOS PAIS!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Combonianos do Brasil Nordeste se manifestam por ocasião do processo político eleitoral

Nós Combonianos do Nordeste, reunidos em Açailândia/MA, refletimos sobre o sentido de mais um processo eleitoral político que culminará com a escolha de novos administradores municipais de 5.600 cidades do Brasil. O nosso olhar é propositalmente condicionado e filtrado pelas variadas e preocupantes situações em que vivem as pequenas e grandes cidades do Nordeste, região onde atuamos.

O processo eleitoral, apesar das decepções com a política formal, continua sendo visto como um momento mágico e deslumbrante, carregado de expectativas. Muitos imaginam que se escolhêssemos um “bom candidato” e derrubássemos “os ruins”, o Brasil mudaria. Ao longo desses anos, pelo nosso voto, sucederam-se bons e maus políticos. Persegue-nos, contudo, a sensação de que, até hoje, nenhum deles está dando certo. Não se pode esquecer que mesmo votando mais uma vez, continuaríamos nos decepcionando com os novos eleitos, pois não são eles que vão mudar. Quem tem que mudar somos nós, cidadãos e cidadãs do Brasil! Somos nós, a verdadeira matéria prima que tem o poder de construir outro País e outra cidadania.

Ao olharmos para essas fases iniciais de campanha eleitoral constatam-se numerosos casos de abuso de poder econômico e escandalosas formas de “aquisição” de voto. É revoltante a desfaçatez com que inúmeros candidatos e seus próprios partidos praticam ou deixam acontecer tudo isso, não obstante as pequenas reformas políticas adotadas recentemente para evitar abusos do poder econômico. Esquecemo-nos, todavia, que nós também estamos alimentando essa máquina iníqua que corrompe e banaliza o sistema democrático participativo ao aceitarmos passivamente tudo isso.

Não se pode ignorar, entretanto, que esse momento eleitoral se re-apresenta, paradoxalmente, como um gesto pedagógico quase que a nos confirmar sobre a urgência e a justeza do nosso empenho em favor da construção da verdadeira “cidadania”. Esta não se constrói durante um processo eleitoral. Não passa pela eleição de alguns políticos que “vivem da política” formal, apesar da sua capacidade administrativa e clarividente. A “nova cidade humana de direito”, ou seja, a cidadania consciente e responsável se constrói no cotidiano, quase sempre longe dos gabinetes dos prefeitos e das negociações escusas das Câmaras de Vereadores.

A cidadania é planejada e construída a partir das praças sem jardins, dos bairros sem saneamento básico, das escolas e hospitais sucateados, das ruas esburacadas e nas periferias abandonadas e ocultadas pelos centros das cidades e de seus luxuosos condomínios; nas microscópicas iniciativas de economia solidária, na crescente consciência da importância do ambiente e na intransigência contra a corrupção; nas insistentes reivindicações localizadas que manifestam a vontade de tantos cidadãos e cidadãs de serem reconhecidos como “gente”!

Por tudo isso, nós Missionários Combonianos do Nordeste reafirmamos o nosso compromisso de irmos além da participação dos processos políticos eleitorais. De superarmos a falácia de que os destinos de uma cidade se jogam numa eleição, e na escolha de um “bom candidato”. Queremos continuar a nos educar à responsabilidade cidadã, à ética nas pequenas e grandes opções e à firmeza moral quando a lógica do poder e do dinheiro se apresenta como algo “normal”. Queremos continuar a nos educar juntamente com o numeroso exército dos “sem voto”, dos “sem registro”, dos “sem bolsa”. Ao lado, também, de todos aqueles cidadãos e cidadãs, operadores da justiça e do direito, grupos e movimentos, políticos que “vivem pela política”, e que têm consciência de que, enquanto não houver verdadeira educação à convivência cidadã baseada no respeito e na tolerância, não haverá país livre, democrático, humano, justo e soberano.

Açailândia, 31 de julho de 2008

Romaria da terra em Bom Jesus da Selva. Pe. Flavio Lazzarin nos propõe uma reflexão.

29 Uma coisa eu digo a vocês, irmãos: o tempo se tornou breve. De agora em diante, aqueles que têm esposa, comportem-se como se não a tivessem; 30 aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se alegram, como se não se alegrassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; 31 os que tiram partido deste mundo, como se não desfrutassem. Porque a aparência deste mundo é passageira.”(1 Cor 7,29-31)

Será que Paulo, com esta profecia, quer mesmo negar o mistério e a beleza do relacionamento entre a mulher e o homem? E o dom precioso da fraternidade e da amizade? Será que quer fechar os olhos, e o coração, diante das lagrimas e do sofrimento dos pobres? Ou talvez tenha esquecido de Jesus quando chorou a morte do amigo Lázaro? E das lagrimas do Mestre, que, contemplando Jerusalém, chorava sobre os corações de pedra, que se fecham à Bela Notícia do Reino? Será que Paulo despreza a alegria e o convívio carinhoso e amoroso da família e da comunidade?

Não podemos acreditar que o sentido destas palavras, endereçadas à comunidade de Corinto, se resuma na proposta de viver neste mundo adotando o estilo do “fazer de conta”, como se não tivesse importância para os cristãos a economia, a política, a história e a própria Vida. Como se a situação dos povos indígenas e dos povos do campo e das cidades não pesasse na balança da Justiça do Reino do Pai.

Como se o grito do Planeta Terra, da Amazônia e do Cerrado, do Sertão e da Mata Atlântica, do Pantanal e da Caatinga, do Rio São Francisco, do Rio Itapecuru, Mearim, Parnaíba, Balsas, Pindaré... agredidos e destruídos pelos grandes negócios do capitalismo, não tivesse chegado aos ouvidos de Javé.

Como se o fatalismo, tão presente no meio do povo, fosse a pedra, religiosamente colocada sobre todos os sonhos de uma vida e de um mundo diferente. Como se o medo diante dos poderes e dos poderosos fosse a única lei que governa a história. O medo como condenação: aceita e interiorizada pelos oprimidos e excluídos.

O medo como submissão: aceita como a única forma de “bom senso” para poder sobreviver numa realidade de injustiça e desigualdade, de clientelismo, apadrinhamento, cooptação. E chantagem praticada por quem manda para negar a dignidade e os direitos fundamentais dos pobres.

O medo que nos faz repetir, há séculos, que “cachorro sem dono, não presta”... E, freqüentemente, os pobres reproduzem a lógica dos seus opressores, herdando a esperteza de tirar vantagem, mentir e roubar – como boa parte de nossos administradores - sem se preocupar com a vida dos outros. E acontece que, às vezes, os pobres repetem o esquema da opressão dentro de seus lares e quem sempre fica humilhado e oprimido, no mundo como nas nossas casas, são os mais fracos: as mulheres e as crianças.

O que significa, em fim, que o cenário deste mundo é passageiro? A proposta de Paulo não é a fuga deste mundo! É o contrario!

Como tudo passa, tudo é passageiro, estamos proibidos de divinizar o poder de quem manda no Município, no Estado, no Brasil e no Planeta. O poder do latifúndio, dos madeireiros e dos usineiros, o poder do agro-negócio, o poder imperial dos Estados Unidos... tudo isto passa... termina, fenece, morre...Como tudo passa, é possível intervir na realidade e transformá-la.

O que fica é a pessoa de Jesus e as sementes do Reino, que está perto, que está presente em quem, com a comunidade, venceu o medo com a fé. E quantas irmãs e irmãos, também no nosso meio, são fieis a Jesus de Nazaré e ao Reino de justiça e paz, Reino de misericórdia e verdade!!!

E nós conhecemos muitos companheiros e companheiras, que participam da construção de um novo céu e de uma nova terra, com as suas práticas comunitárias, eclesiais e sociais!!! Nas Cebs, que acreditam na força da comunidade que reza, que ama, que resiste e que luta; nos lutadores e lutadoras pela terra com t minúsculo e pela Terra com T maiúsculo; na resistência secular dos povos indígenas; na teimosia das famílias camponesas, que continuam cuidando da terra e da sua cultura; nos mártires da caminhada: Padre Josimo, Irmã Dorothy e todos os mártires da terra.

Nos que acreditam no reinado de Jesus, Senhor da Vida, Senhor do Universo, companheiro daqueles e daquelas que defendem a Vida e não temem a morte.

sábado, 2 de agosto de 2008

Multiplicando pão e partilha: boa nova para os “sem pão” e para os...”sem cobiça”! (Mt.14,13-21)

O trecho evangélico dominical exalta mais uma vez o grande sonho-utopia de alguns grupos do antigo Israel: a realização de um grande banquete onde todos os povos (não somente Israel!) pudessem aceder e se fartarem com “carnes gordas e vinhos refinados”. Lugar onde “toda lágrima seria enxugada”. O profeta Jesus alimenta essa utopia explorando toda oportunidade, ocasião, pretexto. Mas só isso seria pouco demais! Jesus, de alguma forma, vai além da utopia, a supera e a realiza. A “u-topia” (algo que não se encontra-constrói em nenhum lugar) torna-se “topia” (algo que se encontra-constrói em algum lugar). E como um bom pedagogo, oferece algumas dicas......

1. “Viu uma grande multidão” (v.14) O ver do profeta Jesus vai além de uma simples função fisiológica. Vai além de um simples olhar sociológico, uma constatação fenomenológica. É o olhar penetrante que mergulha nas ânsias e anseios das pessoas, nas angustias, nas fobias inconscientes e nas expectativas coletivas. A multidão reduzida e numericamente insignificante torna-se, aqui, “grande”, do tamanho de suas necessidades e da sua vontade de ser vista. Jesus consegue ver os que são “invisíveis” aos olhos dos que moram nos palácios governamentais e episcopais, e nos gabinetes e câmaras municipais.
2. “tomado de compaixão....” (v.14) em grego: “as vísceras se contorceram”. Em outras palavras: Jesus sentiu até na alma o drama das pessoas. Ter compaixão não é uma mera sensação reflexa de caráter psicossomático, mas é uma postura perante as pessoas e as situações da vida. Implica ser educado a “sentir”. Quem não sente não vê. Poderíamos dizer que Jesus sentiu, contorceu-se por dentro, e por isso viu...a grande multidão e suas necessidades.
3. “Despede as multidões para que vão às aldeias comprar alimento para si” (v. 15) O pensamento-prática dos discípulos vão na contra-mão da utopia acariciada e apregoada por grupos minoritários de Israel. Segundo os discípulos o “grande banquete” só pode ser construído mediante o dinheiro (compra-venda), ou seja, relações de mercado. Além disso, um mercado voltado não para comprar e abastecer a todos e sim, para si próprio. Relações mercantilistas e individualistas. É isso que eles conhecem e é isso que eles reproduzem. Eles precisam fazer a experiência de conhecer algo alternativo. Fazer a experiência que a abertura e a acolhida do outro, a solidariedade, o estar com, não podem jamais ser comprados.
4. “Dai-lhes vós mesmos de comer” (v.16) Frequentemente delegamos os outros a fazer e a assumir responsabilidades e compromissos. Colocamo-nos no meio da “grande multidão” como mediadores e intermediários iluminados, mas o discípulo é aquele que assume, se expõe, não tem medo de se sujar, de se queimar, de se misturar. O banquete é construído se é a gente que providencia o necessário para que as pessoas ao sentarem à mesa tenham de que se alimentar.
5. “Só temos aqui 5 pães e 2 peixes” (v.17) O alimento já está entre nós. Não precisamos comprá-lo. Ele está mal distribuído, mas é o suficiente para que se evite entrar na dinâmica do mercado, na compra-venda. E é suficiente para que se alimentem todos os presentes. Trata-se, agora, de convencer as pessoas de pôr em comum o alimento que já está dentre eles e encontrar os critérios para partilhá-lo de forma equânime entre todos.
6. “Todos se saciaram e ainda recolheram 12 cestos” (v.20) Jesus consegue persuadir os presentes a tomarem consciência de que o banquete não é preparado por alguém externo, um benfeitor ou um caridoso, mas que ele é o resultado da capacidade de “nós mesmos” socializarmos o pouco ou o muito que temos. E distribuí-lo segundo os critérios das necessidades, da justiça restaurativa, e não segundo os critérios da justiça distributiva (dar a cada um o seu!). A quem precisa mais, dá-se mais, a quem precisa menos, se dá menos! O resultado imediato é claro: fartura plena para todos os presentes que participaram. E mais do que isso: sobra tanto alimento (12 cestos!) capaz de alimentar a humanidade inteira, - que não está aí, - mas que poderá ser convidada e se saciar ao participar da construção da "topia" do “grande banquete”. As sobras não são as mais-valias de uma relação mercantilista que não existiu, mas a prova evidente de que relações sociais e econômicas alternativas podem ser experimentadas e construídas. O inédito e o surpreendente estão ao nosso alcance: multipliquemos pão e justiça!

Bom domingo a todos-as!