sábado, 27 de setembro de 2008

Mt 21,28-32: os "sem palavra" que fazem a vontade do Pai


Parece ter se diluído no tempo e no espaço o poder da palavra. A palavra como expressão máxima do ser, da identidade de uma pessoa. Parece coisa relegada aos tempos “das sociedades tribais” e da “tradição oral,” em que a palavra conservava e transmitia o tesouro da memória coletiva e da identidade de um povo. O próprio líder era escolhido a partir de sua capacidade de falar, de pronunciar palavras que tocassem os sentimentos e os sonhos das pessoas. Ele detinha o poder da palavra, mais do que o das armas. Houve época em que “a palavra dada” era como que entregar si mesmo ao outro, a própria credibilidade, honra e integridade moral. Dar a palavra era assumir responsabilidade pessoal e o compromisso intransferível de cumprir o prometido/combinado. No Gênesis lemos que o próprio Deus “cria” mediante a palavra. “Deus disse” e as coisas tomam corpo e vida. A palavra sempre foi ladeada pelo seu ato-ação correspondente. Uma não existia sem a outra.

Hoje, muito pouco de tudo isso parece ter sentido para os dominadores da escrita, do protocolo, do registro, do cartório. Poucos confiam na pessoa que só empresta a sua palavra. Exige-se muito mais que isso. A palavra não deixou de exercer um grande fascínio e sedução, mas ela, freqüentemente, é usada para se disfarçar e ocultar intenções, projetos, sonhos, ambições. Fazem uso da palavra para renegá-la logo em seguida com gestos e ações que são antagônicas a ela. Na modernidade instaurou-se o definitivo divórcio entre palavra e o seu significante concreto. Um divórcio de alto teor destrutivo por ser também o resultado de uma progressiva falta de ética e, além disso, de cunho individualista.
No evangelho desse domingo Jesus, observador atento e irônico, procura desmascarar os arrogantes fanfarrões “da palavra dada”. Aqueles que utilizam o escudo da palavra, da promessa, da fidelidade e obediência às normas e ritos para esvaziá-la com ações contraditórias. O fascínio sedutor da palavra é utilizado pelos mestres da lei, os escribas, os fariseus lacaios das normas e fórmulas ritualísticas e os sacerdotes lambe-altares para ocultar e negar direitos, justiça e fraternidade. São pessoas que vivem de aparências e formalidades e acreditam que só isto basta para conquistar prestígio e reconhecimento social e, claramente, para conseguir manipular, distorcer, convencer os “sem palavra”. Jesus desmonta através da parábola dos dois irmãos a suposta segurança religiosa e social em que estes se haviam entrincheirado ao sustentar que são somente os que “praticam, que fazem, que cumprem” que estão em sintonia com o Reino. Não aquele que DIZ, mas aquele que FAZ é que entra na dinâmica da construção da humanidade que Deus quer.

O alvo era claro e direto: não os lacaios das normas religiosas e rituais, e sim os pecadores, as prostitutas, os publicanos, ou seja, os que diziam não às normas de pureza ritual, - mas aderiam ao projeto de Jesus - que são os que cumprem a vontade do Pai. Jesus não quer demonizar a palavra-rito em detrimento de um suposto fazer salvador, mas de restabelecer o primado da coerência, da integridade ética, da ligação indissociável entre fé e vida e pondo fim a toda hipocrisia e duplicidade.

Mais antes uma ortopraxia que defende a vida, a solidariedade e o direito, do que uma ortodoxia vazia de valores, gestos e ações que apontam para vida em plenitude. Bom domingo!

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