sábado, 19 de julho de 2008

ANOTAÇÕES PARA UMA ANÁLISE DE CONJUNTURA ECLESIAL I

Análise de conjuntura só faz sentido se ela consegue levantar e apontar tendências, rumos em vista do futuro, não do presente. Entender o presente para perceber o que poderá ocorrer no futuro. E dessa forma se preparar para intervir, modificar e construir cenários desejados. A igreja só pode ser entendida dentro do grande contexto-cenário que é a sociedade em todas as suas dimensões. Ela vive e atua inserida nesse contexto maior. Afinal, é formada por gente e não anjos. Ora, se essa sociedade está passando por mutações de toda ordem e da ordem toda, a igreja não escapa disso. Se não conseguimos ter noção das mudanças estruturais que hoje estão ocorrendo nos é difícil entender o que vem ocorrendo com ela. Ao não entender isso podemos acabar emitindo julgamentos estapafúrdios sobre nós mesmos e sobre os outros e assumir atitudes fora da história, inadequadas.

A sociedade hoje está vivenciando aquilo que poderíamos definir de modernidade “líquida” em contraposição à modernidade sólida, de uma passado recente. Na modernidade líquida vão se desestabilizando, flexibilizando, precarizando as sólidas certezas que por muito tempo podíamos contar: trabalho, tempo, espaço, estado, ética-moral, dogmas-doutrina, família... A individualidade/pessoa se liquefaz, se fragmenta, sente-se sozinha mesmo estando no meio de tantas outras pessoas. As relações inter-pessoais tornam-se sempre mais conflituosas e assumem características mercantilistas. É como se estivéssemos jogando vários jogos simultaneamente e que durante o jogo mudassem as regras improvisamente e somos obrigados a aprender novas regras e novos jogos. Dessa forma somos obrigados a nos acostumar a desacostumar. O que considerávamos um hábito, um costume que dava segurança solidez, tem que ser re-inventado, re-criado. Se é isso que vem ocorrendo com a sociedade a igreja não vai poder se descolar dessa macro-realidade.

Tem-se a sensação-percepção de que há dentro da igreja um certo e compreensível desnorteamento...pois o próprio norte se tornou...líquido. Ele não aparece com aquela solidez que nos parecia existir num passado próximo. Experimenta-se uma profunda insegurança nas nossas escolhas e decisões. Hoje, é-nos mais fácil dizer o que não queremos do que dizer o que queremos! A suposta segurança que provinha das nossas metodologias comprovadas, das sólidas opções evangélicas e pastorais, planejamentos estratégicos, organização centralizada ou não, assembléias mais ou menos representativas, doutrina dogmática, moral, parece-nos, agora, tudo tão solto, tão fluido....Perguntemo-nos, então, como a igreja – entendida não como algo homogêneo, - reage diante dessa fluidez social e cultural?

Percebe-se que, em geral, há uma dificuldade estrutural em perceber que há mudanças radicais ocorrendo e, ao percebê-las, nos chocamos com uma incapacidade de fundo em compreendê-las e intuir o seu alcance. Parece-me enxergar nisso três cenários para a igreja ser entendida, hoje. São ao mesmo tempo tendências e atitudes, reações-respostas.

Cenário I
Diante do novo, do inédito, do incompreensível (no imediato), do escorregadio, há setores da igreja que se deixam vencer pelo medo, pelo pavor. O medo de se perder ou perder o que achava certo, sólido, o que, supostamente, dava sentido à sua vida. O medo paralisa, é traiçoeiro, distorce a realidade, nos faz ver coisas que não existem na realidade objetiva. Como forma de superar esse medo produzido pelo inédito, pelo novo-diferente, esses setores da igreja –que parecem ser hegemônicos – procuram se agarrar com mais força ao passado, agora, porém, idealizado e mistificado. Tudo o que acontecia no passado lhes aparece bonito! O presente é visto como fonte de incerteza, de falta de sentidos, de queda de valores, de...relativismos de toda ordem...É este o caminho que está sendo trilhado, por exemplo, pelo atual papa Bento XVI e por muitos setores da igreja católica, e não só a hierárquica.

É fuga ao e no passado. Não ao passado fundador de inspiração, mas apresentado agora como o único e verdadeiro espaço de realização da verdadeira igreja. Procura-se proteger a igreja numa redoma resplandecente para ela não se contaminar/misturar com um mundo visto como desviante, corrupto e perdido. A volta ao latim, às grandes e solenes liturgias, os show/missas, a atenção à quantidade de fiéis, os grandes templos com grandes massas, a coisificação/banalização do simbólico (estolas, casulas, báculo, comunhão na boca, coroinhas, etc.) a pacificação com movimentos tradicionalistas e cismáticos como o de Lefévre, o apoio irrestrito àqueles movimentos pentecostais supostamente católicos que representam verdadeiras injeções alucinógenas, a dificuldade de dialogar com outras igrejas não reconhecidas sequer como igrejas, pois só a católica teria o depósito da fé verdadeira – só conferir a Dominus Jesu, a Motu próprio“ e, ultimamente, “Sobre certos aspectos da doutrina sobre a igreja”, - para comprovar tudo isso.
Tudo isso expressa a negação das reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II. É, inclusive, uma clara desautorização das próprias instâncias decisórias eclesiais. É a negação ao diálogo com o mundo e com a própria igreja/povo de Deus, com a sociedade...líquida! Nesse cenário/atitude a igreja perde o seu poder moral e o seu poder de interferir e mediar/negociar conflitos e defender direitos. Isola-se ao se colocar acima dos outros. Perde a moral e o bonde da história!

Ilustração do Iº cenário
Houve uma época em que eu sonhei com uma Igreja na pobreza e na humildade, que não dependesse das potências deste mundo. Uma Igreja que desse espaço para as pessoas que pensam mais além. Uma Igreja que transmitisse valor, especialmente a quem se sente pequeno ou pecador. Uma Igreja jovem. Hoje já não tenho esses sonhos. Depois dos 75 anos decidi rezar pela Igreja. (Cardeal Carlo Maria Martini)

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