quarta-feira, 21 de janeiro de 2009


Apresento a parte final do documento aberto "Para uma nova pastoral indigenista no Maranhão" elaborado pelos Missionários Combonianos e a Associação Carlo Ubbiali e dirigido aos senhores bispos e dioceses do Maranhão, especificamente às dioceses em cuja jurisdição contam com a presença de povos indígenas....sem pretensões!


PARTE I

A igreja católica no Maranhão e o seu compromisso missionário com as comunidades indígenas. Algumas pistas pastorais.

Parece-nos entrever em muitos gestos, conversas informais, desabafos, iniciativas, debates e ensaios pastorais locais de algumas dioceses em cuja jurisdição há presença indígena, uma certa preocupação e mal-estar para com a situação das comunidades indígenas. A preocupação surge da constatação de que a presença de territórios e comunidades indígenas em suas regiões são fontes de tensões e conflitos. Ao mesmo tempo, parece-nos identificar um sentimento de insatisfação e mal-estar fruto de um desnorteamento pastoral de fundo quanto a uma possível intervenção junto a essas comunidades.

É freqüente ouvir de um lado várias manifestações sobre a urgência de a igreja marcar presença ativa junto às comunidades indígenas e, por outro lado, a constatação de que não haveria pessoas/agentes de pastoral disponíveis, e com competência, para atuar e representá-la nesse campo específico. Diante disso, a tendência eclesial geral é a de não tomar iniciativas pastorais e delegar, em alguns casos, a algumas equipes pastorais ou pessoas pertencentes a organizações de caráter nacional a tarefa/missão de planejar e realizar algo junto aos povos indígenas no Estado. Entretanto, fora algumas raras exceções, pelo fato que essas pessoas não são expressões diretas da igreja local e frutos da vontade-planejamento pastoral local, a tentação é de renunciar a possíveis formas de colaboração, de monitoramento e acompanhamento mais diretos. Dessa forma, a igreja, enquanto instituição exime-se de possíveis compromissos explícitos e diretos junto aos povos indígenas. Em outras palavras: não se trata de contratar ou aceitar eventuais missionários para trabalhar com as comunidades indígenas nas dioceses, mas a própria igreja institucional, mediante suas formas de coordenação e instâncias de decisão formular, planejar e executar formas de presença junto aos povos indígenas como expressão de sua missão evangélica irrenunciável em um determinado território. A igreja tem algo a dizer, fazer e ser com todas as camadas sociais de uma determinada região, independentemente de ter paróquias e grupos constituídos. Ela é irmã e mãe de todos os seus filhos e filhas e não somente de alguns fiéis!

Embora não caiba nesse contexto uma fundamentação teológico-pastoral da importância de possuirmos na nossa terra maranhense uma igreja indígena queremos reafirmar que é vital para a igreja católica e a sociedade do Maranhão o seu surgimento com rosto específico, e que venha a complementar e enriquecer os já diferenciados rostos eclesiais presentes na nossa igreja católica.

Temos consciência que ao falar em “igreja”, poderia fazer ressoar no imaginário de muitas pessoas a sua dimensão institucional em detrimento do seu aspecto carismático e profético. A nossa preocupação não é a de consagrar desde já possíveis instituições eclesiais indígenas com seus aparatos formais e disciplinares, - embora isso também tenha a sua importância - mas fazer emergir a presença do espírito de Jesus de Nazaré e o espírito de Pentecostes em que todos se entendem mesmo falando línguas-culturas diferentes. O espírito do Ressuscitado, que inspira, abre portas trancadas, elimina medos e inseguranças, que continua anunciando a sua boa nova a partir da “Galiléia dos gentios”, de forma significativa e diferenciada a todos os povos e culturas, às comunidades indígenas dessa terra.

Acreditamos que a missão da igreja católica nesse momento é a de operar como verdadeira educadora na fé, ou seja, a de saber extrair, valorizar, puxar para fora (ex-ducere = educar = puxar para fora) a imensa riqueza espiritual que já está presente na vida, no simbólico, na materialidade do cotidiano das comunidades indígenas.

Não se trata de forçar conversões, nem tão pouco de manipular e/ou moldar/adequar consciências e formas próprias de crer e celebrar, mas a de fazer emergir o sentir religioso-espiritual-simbólico das comunidades indígenas. Um sentir que se manifesta também em suas lutas cotidianas por direitos, por reconhecimento e respeito de sua integridade física, moral e cultural. Fazer de tudo isso um elemento enriquecedor para toda a igreja/sociedade, aceitando e compartilhando o seu modo específico de representá-lo, organizá-lo, explicitá-lo e comunicá-lo para si próprios e para os demais. Ou seja, admitindo radicalmente o seu estatuto de “autonomia eclesial”, pois a comunhão profunda das comunidades indígenas eclesiais com os demais rostos eclesiais dessa terra dar-se-á na aceitação/adesão à proposta-projeto de Jesus de Nazaré, re-interpretado e vivenciado a partir da sua história e da sua fé Nele.

Nesse sentido gostaríamos de apontar alguns passos de ordem pastoral com o intuito de contribuir na re-apropriação da herança histórico-profética dessa igreja maranhense junto aos povos indígenas e, ao mesmo tempo, reafirmar publicamente a vontade-desejo de caminhar ao seu lado no diálogo e no serviço. Não querem ser dicas e nem piedosas recomendações, mas sinalizações fraternas e incentivos para acertar o passo.

Um primeiro passo que consideramos essencial nesse momento é uma “mesa redonda sinodal” entre as dioceses em cuja jurisdição vivem povos indígenas. Embora não seja específico somente daquelas dioceses, mas de todas, acreditamos que num primeiro momento, faz-se necessário um refletir, debater, contemplar e olhar conjuntamente a nossa prática pastoral e social, e a realidade indígena das nossas regiões. À luz dos sentimentos, desabafos, preocupações, informações, sonhos de ambas as partes poderemos fazer emergir um sentir comum que sem pretensões, pressões e cobranças recíprocas nos auxiliará no estabelecimento/elaboração de metas e horizontes consensuais. Isto evitará que cada diocese ou grupos locais/nacionais atuem de forma isolada, personalista e/ou monopolista.

Acreditamos que para poder estimar, apreciar e amar alguém faz-se necessário o conhecimento e a convivência recíproca. Acreditamos que não existe, porém, uma equação direta entre conhecimento e amor. Ou seja, pode-se amar alguém ou algo sem necessariamente conhecê-lo em profundidade. No nosso caso específico não precisamos ser todos antropólogos ou etnógrafos para poder entrar em comunhão-solidariedade com os povos indígenas da nossa diocese. O que não significa desprezar o conhecimento de sua história, anseios, sonhos, etc. mas, ao contrário, manifestar concretamente claros gestos de acolhida para com as comunidades indígenas e tecer elos de colaboração recíproca a nível local. É bom não esquecer que as maiores manifestações de racismo anti-indígena ocorrem nos locais próximos das aldeias.


É localmente que como igreja temos que combater a intolerância e, do outro, apresentar formas de respeito, estima, apreço para com as comunidades indígenas.

Não se trata de produzir infraestruturas físicas, e sim, mostrar claramente que as nossas igrejas, salas, pessoas, comunidades eclesiais são espaços abertos para elas também. Se no meio de tanta intolerância e manifestações de racismo a igreja fosse sinal de acolhida para com as comunidades indígenas seria um passo extraordinário rumo à construção de um novo jeito de sermos humanidade e igreja de Jesus Cristo!

Outro ponto a ser destacado é que as dioceses, mediante a sua coordenação diocesana de pastoral ou da coordenação da pastoral indigenista, onde existir, deveriam assumir diretamente a condução, monitoramento e acompanhamento das atividades pastorais indigenistas na sua jurisdição.

Não se trata de possuir o monopólio de uma determinada presença nas comunidades indígenas, mas por se tratar de presença pastoral acreditamos ser fundamental que exista um mínimo de agir consensual. Afinal, o que está em jogo é a presença/imagem/postura, também institucional, da igreja católica em um determinado lugar. Como igreja local ela é freqüentemente chamada a se posicionar, opinar e se manifestar perante determinados conflitos e disputas. Parece-nos fundamental que ela não delegue a quem quer que seja essa sua obrigação moral e social de marcar posição de forma afirmativa. No caso que delegue que seja após um prévio conhecimento e consentimento formal. Omitir-se ou desconhecer determinadas realidades locais que envolvem as comunidades indígenas e não indígenas seria renunciar ao seu pastoreio e à sua missão evangélica.

Muitas vezes uma igreja particular encontra dificuldade quanto à sua inserção junto às comunidades indígenas: como fazer, o que fazer, quem vai fazer... É importante, antes de tudo, definir qual será o seu papel e qual a identidade que irá assumir junto às comunidades indígenas.

Diante de uma realidade nova ou pouco trabalhada é normal se sentir um tanto perdido. Principalmente quando não existem experiências acumuladas localmente nesse campo específico. É importante não se deixar vencer nem pela necessidade de querer fazer algo, seja o que for e de qualquer jeito, e nem se deixar dominar pelo medo de cometer “besteiras antropológicas”. O normal processo de aproximação fraterna, de acolhida, de respeito, de firmeza em se colocar de forma crítica ao lado das comunidades permitirá que estas ajudem a definir qual deverá ser o papel/colaboração/serviço que será solicitado à igreja. Ao mesmo tempo, esta deverá ser clara se terá condições de ir ao encontro às solicitações indígenas nas formas que lhes são exigidas. É no diálogo aberto e franco, sem pudores, de forma adulta, sem paternalismos e sentimentos de pena para com as comunidades que a igreja irá construir a sua identidade que lhe permitirá aceitação por parte das comunidades. Lembremo-nos que, em geral, as comunidades indígenas sempre querem saber o porquê de uma visita ou de uma determinada atividade/intervenção. Construir o seu próprio rosto junto a elas e obter um claro consenso e aceitação torna-se imprescindível!

PARTE II

Ao definir o seu rosto/perfil/identidade junto às comunidades indígenas e perante a sociedade em geral, a igreja tem que tomar consciência que possui ainda uma força moral – em que pese a sua fragilidade - que nenhuma outra instituição possui, seja junto às comunidades indígenas bem como perante os poderes públicos.

Não cabe dúvida que nem sempre temos consciência que a instituição igreja possui um prestígio e uma força moral que nem sempre é devidamente utilizada para fortalecer e reforçar valores, defender direitos ameaçados, incentivar intervenções positivas na ordem da justiça social. Evidentemente se de um lado isso lhe advém pelo simples fato de ser igreja, do outro é adquirido/conquistado mediante atitudes coerentes, posturas inequívocas, e exercício corajoso de estar presente na vida cotidiana das pessoas e da sociedade. Ao longo desses anos muitos acontecimentos conflituosos tomaram proporções, às vezes, incontroláveis e se chegou a impasses institucionais e práticos por falta de intermediários e interlocutores que tivessem peso e força social. Isto não significa preconizar acordos e alianças em gabinetes de palácio entre poderes públicos e bispos, mas exercer a voz profética eclesial que não pode ser veiculada simplesmente com uma carta aberta ao povo de Deus e sim, ser ouvida também nas instâncias da justiça formal.

Uma última questão entre as muitas que poderíamos colocar é que como igreja deveríamos nos relacionar com as comunidades indígenas em pé de igualdade, sem mistificação, com irreais idealizações e/ou recíprocas demonizações.

Temos consciência que isto pode parecer bastante contraditório, pois não somos iguais e não temos igual peso/força social! Entretanto, ao afirmar isso queremos simplesmente tomar consciência de que:
a) O mal e o bem – se é que se pode falar assim – não estão totalmente presentes em um lado somente. Ou seja, cada um de nós é uma mistura dos dois. Não podemos ou demonizar ou idealizar um interlocutor, um parceiro/aliado ou até um possível e suposto rival. Às vezes a falta de conhecimento da realidade do “outro” nos leva, no plano prático, o da ação política, a imaginar que é o outro aquele que está totalmente errado ou, numa idealização irreal, achar que ele sempre está plenamente correto. Contradições, interesses próprios, espertezas, estão presentes em todas as sociedades e culturas. Ignorar isso é ignorar a história e as dinâmicas da existência humana.

b) A consciência disso faz com que possamos entrar numa dinâmica de colaboração, de verdadeira aliança com o outro sem inibição e submissão. Evitamos assim, uma possível e recíproca pressão moral para que o outro sempre nos confirme em tudo o que pensamos. Essa liberdade interior e maturidade relacional é fundamental para que os dois cresçam. Nesse sentido, como igreja, não podemos nos colocar numa posição de mera subserviência a solicitações, pedidos, exigência de determinados setores indígenas, o que poderia ser fruto de uma idealização do outro ou de uma falta de liberdade interior. Isto não seria nada educativo. Ao mesmo tempo, não podemos manipular e/ou chantagear moralmente as comunidades por nos colocar numa posição de força, o que poderia manifestar desconfiança, incapacidade ou inépcia do outro.

c) Acreditamos que uma relação madura com as comunidades indígenas não nos impede de enxergar as comuns fragilidades, as recíprocas contradições e as tentativas de alguns querer se utilizar dos outros. É justamente ao tomarmos consciência de que isto faz parte das dinâmicas humanas e sociais que temos que construir uma aliança construtiva com as comunidades indígenas e, reciprocamente, nos confirmar. Lembremos que quando falamos genericamente em “comunidades indígenas” atrás dessa realidade-conceito existem modos de vida, projetos, interesses profundamente diferentes e até antagônicos. Ignorar essa multiplicidade de visões e de procedimentos sociais e políticos é pura ingenuidade e não iríamos contribuir com aquilo que essas comunidades esperam de nós. Afinal, isso não nos impede de sermos verdadeiros irmãos-irmãs delas, pois optamos por elas não porque são santas e perfeitas, mas simplesmente porque são....”comunidades indígenas” parceiras, irmãs, membros da grande família de Tupã, moradoras da mesma terra-mãe.

Conclusão
Como conclusão dessas despretensiosas reflexões gostaríamos de citar literalmente o número 530 dos documentos de Aparecida, pois sintetiza aquilo que deveria ser o compromisso-missão de uma igreja missionária na América Latina, hoje:
Como discípulos e missionários a serviço da vida, acompanhamos os povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias, na defesa do território, na educação intercultural bilíngüe e na defesa de seus direitos. Comprometemo-nos também a criar consciência na sociedade a respeito da realidade indígena e seus valores, através dos meios de comunicação social e outros espaços de opinião. A partir dos princípios do evangelho, apoiamos a denúncia de atitudes contrárias à vida plena em nossos povos de origem e nos comprometemos a prosseguir na obra de evangelização dos indígenas, assim como a procurar as aprendizagens educativas e de trabalho com as transformações culturais que isso implica.” Assim seja!

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