sábado, 23 de outubro de 2010

Legalista no templo, transgressor na rua. Hipocrisia e transparência humana. (Lc.18,9-14)


Mais uma parábola de Jesus em que ‘os transgressores arrependidos’ se saem melhor do que os ‘comportados e leais’ aos preceitos legais. Como toda parábola, esta também é, de certa forma, inverossímil. Convenhamos: não existe uma pessoa que seja totalmente uma coisa ou totalmente outra. Em cada pessoa convive a dimensão farisaica e a dimensão transgressora, embora com percentuais diferenciados. O intuito de Jesus é o de apontar para as posturas básicas de conceber a própria relação com Deus e com as pessoas.

A primeira, a farisaica. A pessoa parece mostrar abertura para com Deus, mas não se confronta com Ele. Não se deixa examinar por Ele. Perante Deus não avalia o seu modo de proceder. De Deus ele só cobra reconhecimento. O fariseu só espera ser confirmado por Deus. Afinal, ele se considera justo. Mais justo do que os demais seres humanos. A Deus só cabe reconhecer e premiar esta sua suposta justiça e lisura legal. A salvação, para o fariseu, é conquista pessoal, e não um dom de Deus. Ela é fruto do seu esforço pessoal e de sua obediência a leis e preceitos que ele mesmo criou. O próprio Deus não passa de uma sua criação. Plasmado à imagem e semelhança do fariseu Deus é utilizado por ele só para confirmá-lo, e não para questioná-lo ou ajudá-lo. Essa postura arrogante, autárquica é, afinal, o resultado de um modo de se relacionar com os demais seres humanos. O modo de proceder farisaico concebe os outros como instrumentos. Seres que podem ser usados e manipulados para fins próprios. Eles serão bons colaboradores se agirem de acordo com suas expectativas pessoais. Serão desobedientes e transgressores aos seus olhos se não aceitarem a sua vontade. Deus, nesse caso, para o fariseu, é a objetivação de relações humanas hipócritas, doentias, assimétricas que ele mesmo vive.

A segunda postura, a do ‘transgressor realista’. Ele não esconde nem de si próprio e nem de Deus as suas contradições. Tem consciência que as suas ações ferem e machucam outros seres humanos. Sabe que o Deus a quem se dirige, e que está acima dos seus princípios e leis pessoais, o questiona. E exige mudança radical de postura. Talvez não consiga operar a transformação exigida, mas sabe que precisa fazê-la. Isso permitirá que comece a olhar para os demais seres humanos não mais como objetos a serem explorados e usados, e sim como parceiros, amigos, irmãos que o ajudarão a compreender a sua própria fragilidade e a alheia. Aprenderá a não julgar, a não condenar. O seu Deus é o Deus da misericórdia. Não aquela misericórdia que tudo absolve e tudo justifica. Mas a ‘transparência e simplicidade de coração’ que tudo compreende. Que questiona, provoca, cobra, mas que também ajuda, socorre, e sempre oferece a mão amiga. Para, afinal, ‘encarar de pé’, sem receio e sem humilhação, o rosto de Deus nos demais rostos de outros ‘transgressores’ que experimentaram, porém, o que significa ser amado e compreendido por um Deus que não condena.


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