quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Carta de padre Franco Pellegrini à igreja de Sussuarana


'Queridos irmãos e irmãs o que contemplava até poucos dias atrás só com os olhos mortais, agora eu posso contemplar com a plenitude dos meus sentidos mais profundos: a face luminosa do Pai e Mãe, o Deus de toda luz, de toda esperança, de toda caridade. O Deus de toda vida. É nessa contemplação luminosa que olho para a minha vida terrena, quando estava no meio de vocês. Fazendo ao mesmo tempo memória e balanço do que foi a minha passagem entre vocês. Nasci numa terra bonita, coberta de flores e de muito verde na primavera, mas que reveste de neve e gelo nos rígidos invernos. Uma terra que exigia sacrifício e suor para extrair dela o necessário para comer. À sombra daquelas montanhas, no povoado de Giovo, em Trento, Italia, poucos meses após o fim da segunda guerra mundial, no dia 19 de julho de 1945 mamãe Ana - que ainda vive - e papai Gino, falecido em 1986, anunciaram que havia nascido o quarto dos seus cinco filhos.


Quase como gesto de agradecimento a Deus os meus pais me apoiaram quando lhes comuniquei que queria entrar no seminário das Missões Africanas, em Trento. Em 1955, aos 11 aninhos queria trilhar os mesmos caminhos de muitos missionários que deixam a sua terra e querem comunicar o amor de Deus a todos os filhos e filhas que Ele gerou. Não tinha totalmente clareza, na época, do que significava ser missionário, mas o entendi mais tarde quando comecei a ouvir o testemunho de muitos missionários vindos da África e que passavam por lá. Isso me deu a certeza de que era isso mesmo que Deus queria de mim. Terminei os meus estudos de filosofia e teologia na Itália, em Roma, até ser ordenado sacerdote no dia 17 de abril de 1971 no povoado onde nasci.


Já em 1972 me encontrava no sul do Maranhão, numa cidadezinha da diocese de Balsas, de nome Sucupira do Norte. Lugar sem alguma infra-estrutura, de lavradores sem terra, de grandes fazendeiros com muita terra ociosa. Tudo para ser construído. O bispo de Balsas era um nosso confrade, comboniano, homem cheio de zelo apostólico, o saudoso Dom Rino Carlesi. Ele, como eu, acreditava na força dos pequenos. Com outros confrades começamos a construir a igreja viva, aquela feita de gente que luta, que se organiza, que louva e reivindica. Iniciamos cursos de formação para animadores de comunidades, catequistas. Acreditávamos na força da educação, aquela que valoriza a pessoa e sabe descobrir o melhor que existe em cada um. Em 1977 me chamaram para ficar um tempinho na Itália para animar a juventude, para que outros jovens se abrissem à missão. Tinha 32 anos naquela época. Foi uma experiência intensa, mas que durou só alguns anos, pois recebi na bandeja um convite para regressar ao Maranhão, na paróquia de Riachão a 70 km de Balsas.



Em 1980, portanto, não me fiz de rogado e corri logo para lá. Reencontrei o meu velho bispo que me acolheu de braços abertos. Não perdemos tempo. Havia mais de 50 comunidades espalhadas naquele imenso sertão à espera de alguém que os confirmassem não só na fé, mas também em suas lutas por reconhecimento de direitos e dignidade. Lembro de numerosos conflitos e mortes por causa da posse da terra naquele rincão do Maranhão que parecia esquecido pelo meu Deus. Nunca me arrependi por ter ficado sempre do lado daqueles lavradores desejosos de produzir, mas que não possuíam um pedaço de chão e viviam oprimidos e humilhados por latifundiários sem escrúpulos. Na nossa caminhada pastoral, fé e compromisso caminhavam juntos de forma harmoniosa. E sempre acreditei nisso. Afinal, Deus mandou o seu filho ao mundo para salvar o ‘homem todo’, corpo e alma, e não só um pedaço. Com homens e mulheres de fé e de luta organizamos um sindicato de lavradores muito combativo, um verdadeiro aliado e defensor dos lavradores que não fez o duplo jogo, e não se vendeu como era freqüente naquela época. Apostei juntamente com a igreja de Balsas no surgimento e na consolidação das Comunidades Eclesiais de Base por acreditar que todos, homens e mulheres, e padres, indistintamente, fazemos parte do único povo de Deus, sem privilégios e sem honrarias. Era bonito e prazeroso ver como Deus ‘escondia muita coisa aos sabidos e espertalhões e as revelava aos pequenos’. Quantas vezes agradeci Deus por constatar quão verdadeira era a Sua palavra!


Depois de 4 anos de permanência em Riachão me pediram para prestar um serviço como formador e pároco em São Paulo, no Parque Santa Madalena, onde nós combonianos tínhamos uma casa de formação para teólogos e uma paróquia imensa. Não era o que desejava, mas fui, pois sempre entendi que se me chamavam para algum serviço era porque podia oferecer algo de bom. Em São Paulo havia muita violência, muitas favelas, muito descaso e abusos de todo tipo. Reconheço que no início vivia com saudade do povo do sertão, do luar e das noites cheias de estrelas, dos banhos nos rios, e até das longas e cansativas viagens de ‘desobriga’ nas costas de um burro em que permanecíamos fora de casa mais de mês. Mas a dura e cruel realidade de São Paulo abriu os meus olhos sobre a vida de numerosas famílias das periferias urbanas no nosso País. Entrei firme com os meus seminaristas e com as comunidades eclesiais na construção de novos espaços de humanidade. Priorizamos os menores abandonados, aqueles com deficiência física, os dependentes de drogas. Aí descobri a humanidade que nasce e floresce no meio da brutalidade urbana. Encontrei muita gente inconformada, de luta e de fé. Carregada de humanidade e carinho.


Em 1989 me chamaram de volta para o Maranhão, para trabalhar numa paróquia da periferia de São Luis, na Vila Embratel. Esse também foi um período marcante na minha vida. Com as comunidade daquela abandonada periferia organizamos e promovemos inúmeras atividades e projetos que existem ainda hoje. Apostamos de um lado na força e na participação dos leigos e leigas na igreja e na sociedade, nas pastorais sociais, na atenção aos menores abandonados, na alfabetização de adultos, e do outro lado, na luta pelo solo urbano para que as famílias que vinham do interior do Estado tivessem onde construir a sua casa. Foi aqui que tomei a decisão definitiva de me naturalizar brasileiro. Havia entendido que para mim não haveria outra terra a não ser esta. Foi uma festa quando chegaram a minha carteira de identidade e o meu passaporte inteiramente brasileiros. Passei quase 10 anos em São Luis até o dia em que me pediram para integrar uma comunidade que iria assumir uma presença missionária em Itupiranga, na diocese de Marabá, no Pará. Um território extenso, muitos assentamentos de família sem terra, muitas agressões às pessoas e ao ambiente. Uma paróquia em que fazia quase 4 anos que o padre não andava por lá. Aqui não fiquei muito, pois havia necessidade de integrar a comunidade comboniana que atuava em Balsas, na paróquia do Potosí. Lá consolidamos um projeto pastoral consistente. Com o saudoso amigo bispo Dom Franco organizamos e promovemos encontros, sínodo diocesano, romarias. Parecia-me ter voltado 'às minhas origens' missionárias! Me senti profundamente confirmado no meu ser missionário. Em Balsas fiquei até o meu destino final, Sussuarana.

Com certeza muitos de vocês se lembram quando cheguei em 2004. Confiante e temeroso ao mesmo tempo. Foi um tempo de graça para mim. Realidade nova, mas só em parte. Nunca havia trabalhado aqui, mas como sempre havia acontecido ao longo da minha vida nessa terra, aqui encontrei gente generosa, dedicada, disposta a enfrentar todo tipo de desafio. Hoje, olhando para cada um de vocês me sinto de poder proclamar as mesmas palavras de Jesus o bom pastor: ‘Eu conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem’ Vocês sabem que há sinceridade no que digo. Procurei me colocar, mesmo com as minhas fragilidades, ao serviço de todos vocês, sem julgar e condenar, acreditando que somente unidos podemos construir um novo jeito de ser igreja, de ser família. Pode ser que para alguns tenha parecido duro ou até intolerante, mas acreditem se isso ocorreu foi para manter fidelidade à prática evangélica de Jesus de Nazaré a essa igreja que fez uma opção clara em favor dos pequenos.


Acredito que a melhor forma para continuar a nos sentir unidos é reproduzir e multiplicar os mesmos gestos e as mesmas escolhas de Jesus: anunciar e testemunhar o Reino da vida, da paz verdadeira, da justiça, do respeito e do reconhecimento da dignidade de cada pessoa. Nisso poderemos nos sentir em permanente comunhão entre nós e com a humanidade, para além da morte, para além do tempo, para além de qualquer limite. Um eterno e saudoso abraço a todos vocês e que o Deus da vida vos proteja, vos guarde e vos abençoe,


Padre Franco


Sussuarana, 8 de dezembro 2011 - Salvador na missa de sétimo dia


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