sexta-feira, 8 de março de 2024

Breve análise de conjuntura da atual política indigenista e papel da igreja missionária

Fazer uma análise de conjuntura, mesmo que superficialmente, exige sempre não somente um volume de informações de qualidade, confiáveis, uma discreta cautela, mas também a clara identificação do ponto de vista a partir do qual se quer analisar. Ou seja, o seu lugar social escolhido para olhar-analisar o todo. O nosso ponto de vista tenta incorporar anseios e aspirações de diferentes etnias que manifestam e alimentam expectativas e mudanças radicais em suas diferentes realidades. Será, portanto, um ponto de vista parcial, delimitado, mas não por isso menos legítimo de quem reside em Brasília, por exemplo, e ocupa um cargo numa repartição pública responsável por políticas indigenistas...Dito isso, gostaria de salientar algumas sombras que pairam sobre o novo governo Lula ou 'omissões simbólicas' que vêm deixando bastante amargo em boca para quem almejava algo mais alvissareiro...

Talvez um dos pontos negativos do atual governo com relação à política indigenista tenha sido o de não ter sinalizado desde o início, de forma enfática, embora simbólica, para que veio. É bem verdade que herdou um fardo carregado de atraso, de omissão, de falta de orçamento, de descaso generalizado, de militarização da FUNAI e de desmantelamento de infraestruturas, mas poderia ter aproveitado, por exemplo, da crise humanitária na Terra Yanomami, em Roraima, - revelada bem no início de janeiro de 2023 - para deixar claro quais ações norteadoras o novo governo iria seguir. Infelizmente, limitou-se a uma intervenção militar pontual (exército e Polícia Federal) contra garimpeiros e outros invasores que, embora explorada pela mídia, não se tem se transformado numa renovada política de proteção e de assistência sanitária permanente, pelo menos para aquele povo indígena já duramente provado e agredido. Basta dizer que no primeiro ano do governo Lula foram verificadas 363 mortes de Yanomami. O número representa um aumento de 20 óbitos em relação a 2022, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No governo anterior os dados eram descaradamente  subnotificados.

Outra sinalização de enorme poder simbólico que o novo governo poderia ter lançado foi a que diz respeito às demarcações de terras indígenas. Ou seja, deveria ter deixado claro como, posteriormente, tentou fazer mediante a recente mensagem que o governo enviou em fevereiro passado ao congresso, que iria sim, retomar de forma decidida, firme e consistente o que a Constituição determina: a legalização definitiva de todas as terras indígenas que deveriam ter sido demarcadas no prazo de 5 (cinco) a partir da promulgação da Constituição de 1988. Infelizmente, ao longo de todo o ano de 2023 limitou-se a homologar (reconhecimento final formal) somente 08 (Oito) Terras Indígenas, e a identificar 03 (três). Assim, o Brasil sai de um jejum de cinco anos sem demarcações, - incluindo parcialmente o governo Temer, - chegando ao total de 511 Terras Indígenas com processos de demarcação finalizados. Contudo, ainda faltam 255 Terras Indígenas com seu processo de demarcação já iniciado e ainda não finalizado. A retomada da política indigenista oficial e dos processos de demarcação no governo Lula se dá, tragicamente, numa conjuntura desfavorável para os povos indígenas já que as ofensivas aos direitos indígenas se fortaleceram no Legislativo e no Judiciário, onde se multiplicam propostas legislativas anti-indígenas e teses jurídicas como a do "Marco Temporal". Esta última tese rejeitada pelo STF foi proposta e aprovada no Senado, criando insegurança jurídica e um engodo de não fácil solução. 

Uma série de pressões do Congresso sobre o Executivo  vêm impactando esse cenário, a começar pela pasta que ficaria responsável pela declaração das Terras Indígenas. Abrigada inicialmente no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) - cuja ministra é uma indígena Guajajara do nosso Estado, Sônia Guajajara, - essa atribuição voltou ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJ), sob a responsabilidade do então ministro Flávio Dino. O senador Dino, que assumiu em fevereiro de 2024 uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF), atravessou seu mandato como ministro sem reconhecer a posse permanente indígena de  nenhuma Terra Indígena e deixou para Ricardo Lewandowski, seu sucessor, ao menos 23 portarias prontas para assinatura. 

Um último ponto que vale a pena ser frisado é de que, se de um lado é extremamente positivo o fato de o governo Lula ter criado um ministério específico para os povos indígenas (MPI) e ter colocados indígenas em cargos estratégicos (FUNAI- Fundação Nacional dos Povos Indígenas, SESAI – Secretaria Especial Saúde Indígena, etc.), do outro lado, ao não garantir um orçamento adequado e ao não outorgar plena autonomia de ação, cria as condições reais de ‘jogar aos leões’ lideranças indígenas de renome e ‘queimar’ a experiência pioneira iniciada. Nesse sentido, muitas lideranças indígenas que tentaram dar um 'desconto' nesse primeiro ano de governo e tiveram a paciência histórica de garantir confiança esperam que, a  partir desse ano de 2024 o governo Lula seja mais proativo e ousado. Que se concentre, essencialmente, na defesa permanente dos territórios já demarcados evitando todo tipo de invasão e esbulho; que tome iniciativas claras para que se reconheçam formalmente os territórios indígenas ainda não identificados; e, enfim, que se planejem ações bem estruturadas para despejar e expulsar quantos os têm ocupado ilegalmente ao longo desse anos. Simultaneamente, espera-se que se invista sempre mais, e de forma mais consistente e qualificada no atendimento à saúde indígena, prevenindo e combatendo doenças e encarando a luta contra a desnutrição com ações globais, estruturantes e permanentes. 

Não podemos, enfim, deixar de ignorar que ao lado de uma ‘política indigenista’ há, também, e sempre, uma ‘política indígena’ – aquela que é realizada pelos próprios povos indígenas, - que não é badalada pela mídia, mas que assume sempre mais proporções significativas. Através de inúmeras iniciativas de fiscalização territorial (ex. os guardiões da floresta tão presentes e incisivos no Maranhão) e múltiplas medidas político-pedagógicas os próprios povos indígenas, seja em nível regional que nacional, se articulam e intervêm, autônoma e internamente, para proteger, denunciar, pressionar e expulsar aqueles  invasores (garimpeiros, fazendeiros, sojicultores) que se apossaram de enormes fatias de terras indígenas, inclusive graças a determinadas portarias assinadas no governo anterior que lhes dá esse poder!  

No que se refere ao papel da igreja missionária na atual conjuntura é importante frisar os seguintes pontos: 

a. A igreja deveria reconhecer, de fato, a plena autonomia e maturidade dos povos indígenas sem querer ser sua ‘porta-voz’, sem ‘falar por eles’ ou sem ‘se substituir a eles’. É preciso, isso sim, fazer com que os povos aos quais a igreja é chamada a servir sintam que ela é uma aliada fiel, parceira, ‘amiga’ de todas as horas, mas que, afinal, devem ser eles mesmos os protagonistas na condução das políticas públicas com foco na sua realidade específica. Cabe à igreja o papel de fazer ecoar com seriedade, profissionalismo, coragem e sem mitificações as opiniões, as posturas, as reivindicações, e as denúncias que os próprios povos indígenas encaminham. 

b. Como igreja missionária, diante das múltiplas contradições, - inclusive no seio do próprios povos indígenas, - polarismos sociais e culturais, e outras formas de agressão, deveria assumir sempre mais o papel de humilde mediadora, servidora dedicada de suas aspirações e necessidades, auscultadora paciente de seus sonhos e dramas, e defensora intransigente dos direitos indígenas,  independentemente de quem esteja governando. 


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