Toda vez que ouço ou leio notícias anunciando a nomeação de missionários religiosos a bispo sou invadido por uma mistura de temor e tremor. Não é para menos: sou veementemente contrário a essa prática mesmo que tenha que reconhecer que está bastante consolidada na tradição vaticana. Nada impede, contudo, que na atual etapa da longa caminhada eclesial se possa inaugurar, até contra todas as tendências, uma nova e inédita postura, sem ilusões e sem ufanismos. Coloco, a seguir, algumas argumentações para justificar a minha contrariedade.
O primeiro motivo é que considero que um religioso consagrado, missionário, deveria se devotar única e exclusivamente àquelas realidades gritantes e específicas da humanidade, e àquelas apontadas, historicamente, pelo fundador e permanentemente atualizadas pelo seu próprio instituto. Entendo que ao assumir o ‘cargo’ de bispo o missionário é vinculado, direta e sistematicamente, a uma administração formal que, pessoalmente, considero desviante. Ocorre que o cargo de bispo, tal como é concebido atualmente na administração eclesiástica, não se coaduna com a vocação missionária do escolhido, em que pesem suas mais recônditas ambições pessoais. O religioso, com efeito, se afasta, mesmo sem querer, dos objetivos e das dinâmicas próprios de um missionário consagrado. É só olharmos a atuação de vários missionários que, após assumirem a administração de uma diocese, acabam se apartando afetiva e efetivamente de seu instituto, de suas presenças missionárias, de sua metodologia e de suas opções pastorais. Não podemos ignorar, também, que, frequentemente, inúmeras dioceses possuem, internamente, em seus próprios quadros, presbíteros locais qualificados para assumirem o cargo de pastorear uma determinada diocese, sem recorrer, necessariamente, aos presbíteros missionários de ‘fora’!
O segundo motivo que me faz discordar com a prática de nomeações episcopais de religiosos missionários é a constatação de que, em geral, os ordenados em lugar de assumirem ‘dioceses missionárias’, ou seja, realidades eclesiais necessitadas, desafiadoras e carentes de tudo, muitas vezes são destinados a assumirem ‘dioceses autossuficientes’, sem grandes desafios pastorais, exigindo somente continuidade na administração ordinária. Qual, então, o sentido dessas escolhas? Poder-se-ia argumentar que a presença de um bispo proveniente de um instituto missionário sacudiria, positivamente, os cristãos a se abrirem a uma nova sensibilidade missionária, contudo, acho o contrário. Na maioria dos casos é o bispo missionário que é ‘cooptado’ pelas exigências próprias do ofício a se enquadrar e a passar a trabalhar segundo os esquemas consolidados da administração canônico-diocesana, e da sua freguesia. Os papeis de ‘bispo-administrador e de bispo-pastor’ parecem ser sempre mais irreconciliáveis e, em alguns casos, antagônicos, principalmente para aqueles missionários que têm se identificado com suas experiências missionárias positivas anteriores. Acredito que muitos de nós puderam ouvir ou presenciar desabafos de colegas bispos ou de bispos diocesanos diante do grande dilema de conciliar o espírito-prática missionária que, em geral, nos coloca em contato sistemático com comunidades, movimentos, famílias e grupos eclesiais, e as obrigações episcopais canônico-burocráticas de monitorar as prestações de conta, a angustiante e constrangedora preocupação em arrecadar fundos para as atividades pastorais e a manutenção de agentes de pastoral, dialogar com o clero e resolver os crescentes conflitos e disputas internas, celebrar crismas, presidir missas de encerramento de festejos, participar das inúmeras comissões da CNBB e ‘poder viajar’, frequentemente, até para aliviar as tensões internas acumuladas.
Um terceiro motivo que gostaria de expor é que quase sempre os responsáveis dos institutos religiosos e suas comunidades veem as nomeações de um dos seus membros como uma espécie de reconhecimento público perante o Vaticano, ou perante os demais institutos. Ou um reconhecimento das supostas qualidades e virtudes de um missionário com perfil específico para administrar recursos humanos e financeiros. Acaba-se entrando numa lógica extremamente ambígua e perigosa. O Vaticano através de seus mediadores faz suas sondagens e nomeia o indicado que não encontra, em geral, por parte dos responsáveis do instituto missionário nenhuma oposição e, tampouco, a apresentação de algum tipo de condição. Não ignoro que existe nesses casos uma velada imposição canônico-vaticana de ter que aceitar, formal e moralmente, a ‘nomeação a bispo’ – até porque o papel vinculante da obediência formal não pode ser contestado, mas acatado cegamente. No entanto, parece-me legítimo se perguntar se não seria o caso de o escolhido e o seu conselho geral reagirem com firmeza polida e altivez digna à Congregação Romana abdicando, uma vez por todas, a esta ultrapassada atitude de submissão às suas irretocáveis decisões. Não seria o caso, por exemplo, de o próprio missionário escolhido como bispo, em comunhão com a sua própria congregação, mostrarem seu legítimo direito ao diálogo ou, se preferirem, à negociação, à dissidência. Com tal postura poder-se-ia chegar a um consenso em que o nomeado seja destinado, pelo menos, a uma diocese ‘realmente missionária’ com escassez de recursos humanos qualificados, de infraestruturas, de pouca presença eclesial e missionária, e longe de sua ‘terra natal’, até para sinalizar a sua firme disposição em continuar a ser um missionário ‘ad gentes’ como prometeu quando se consagrou? Infelizmente, observo que um Conselho Geral não possui uma razoável autonomia e uma honrosa altivez para contestar e se opor a uma nomeação vaticana.
O quarto motivo que me incomoda é que o missionário, uma vez escolhido e nomeado para ser bispo incorpora, mesmo sem querer, os mesmos hábitos próprios de quando ocorre uma ‘solene promoção’ a um cargo de prestigio, dentro de uma determinada hierarquia. Assiste-se, nesses casos, a patéticas exibições de uma velada bajulação por parte do seu entorno, de formalismos farisaicos e de retóricas homenagens atestando, dessa forma, que o escolhido não estaria a mergulhar numa missão de serviço missionário oculto e abnegado, e sim, numa realidade de visibilidade pública, com suas dinâmicas de poder e de interferência social e eclesial. Continua a causar espanto como determinados missionários ao chegar ao episcopado capricham nas formalidades cultivando um cuidado exacerbado com a simbologia do cargo (mitra, báculo, casula, anel, cruz pectoral, etc.), sem falar nos títulos honoríficos e nas bem equipadas residências oficiais. Não parece ser isto o que o Mestre ensinou aos seus seguidores missionários itinerantes da Boa Nova ao alertá-los que ‘aquele que é primeiro seja o último e o servidor de todos’!
Certamente, não vai faltar gente que vai reagir a essas insignificantes considerações afirmando que seriam o fruto de alguém que não tem mais chance de ser bispo, imaginando, assim, que esse seria o sonho de todo presbítero e missionário... Outros dirão que se insiste em encontrar ‘o pelo no ovo’ e que não compensa criar polêmicas estúpidas e sem sentido... Outros, enfim, observarão que tudo isso é coisa manjada e que não vai acrescentar nada e não levar a lugar nenhum...Contudo, não podemos ignorar a atual conjuntura mundial e eclesial em que vivemos. É nela que somos chamados a ser sinal luminoso, sal que dá sabor, testemunhas de uma Boa Nova específica, compreensível e atualizada. Com efeito, não se pode negar que, tendencialmente, a sociedade e muitos setores da nossa igreja, hoje, estão a consolidar práticas feudais destoantes ao promoverem o ressurgimento de várias formas de autoritarismo iluminado, de discriminação do ‘diferente’, do ‘anátema sit’ aos que vivem ‘extra eclesia’, da liberdade ilimitada para inocular e impor pensamentos únicos e desvirtuarem valores evangélicos e humanos. Não podemos mais nos omitir, como missionários ousados, como sujeitos críticos pensantes e membros de um grupo missionário que ostenta uma identidade missionária servidora e aberta ao mundo, em romper com práticas esclerosadas, hábitos, metodologias e terminologias canônico-pastorais que desviam o foco do que continua sendo o único paradigma que faz sentido para todo discípulo realmente missionário: ‘estar no meio do mundo como aqueles que servem’. Nada mais do que isso!
São Luís, 10 de novembro, 2024
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