Mais um’ processo eleitoral’ foi deflagrado ao interno do Instituto Comboniano. Instados a seguir uma consolidada liturgia que se repete mecanicamente a cada três anos, os membros da nossa congregação são chamados a escolher, mediante o voto secreto, seus coordenadores provinciais e conselheiros pelo próximo triênio. É algo tão entranhado na estrutura e na configuração institucional que dificilmente chega a levantar qualquer tipo de questionamento. Afinal, seguem-se disposições e regras formais previstas e aprovadas pelos dispositivos jurídicos canônicos da Santa Sé, e pelas Constituições internas do próprio instituto. Haveria, então, a necessidade de mudar um mecanismo participativo que, afinal, vem garantindo a plena, livre e soberana vontade dos eleitores em ‘eleger’ seus legítimos coordenadores e representantes? Desde o meu ponto de vista pessoal, acredito que sim, e de forma urgente. É sobre isso que queria tecer algumas considerações com muita liberdade interior e simplicidade.
Problematizando e desconstruindo um ‘modelo eleitoral’ que está esgotado, viciado e inadequado
Há uma questão de fundo que vem me incomodando há décadas, a saber: porque nós religiosos, membros de ‘cenáculos de apóstolos’ adotamos e mantemos o mesmo sistema eleitoral adotado por partidos, sindicatos, associações, clubes e outros? É porque consideramos este modelo o único e o mais eficiente para expressar e respeitar a vontade soberana e ‘anônima’ de cada voto/membro? Ou, talvez, por uma encrustada preguiça histórica em que obedecemos à tradição segundo a qual ‘sempre se fez assim, porque mudar’? Acredito que chegou a hora de nós religiosos adotarmos a metodologia daquilo que conhecemos, embora genericamente, como ‘discernimento comunitário’. Haverá quem diga que, afinal, o atual ‘sistema eleitoral’, não inibe e nem impede o ‘discernimento comunitário’, dando por descontado que o ‘discernimento pessoal’ nunca deixou de existir. De fato, o discernimento comunitário presencial pode ocorrer, embora, historicamente, na nossa província, pela minha experiência e conhecimento, tenha encontrado não poucas dificuldades de ser realizado da forma que uma correta adoção dessa metodologia prevê. Ou seja: um discernimento a ser realizado em assembleia presencial, às claras, sem restrições, inibições e constrangimentos, debatendo nomes concretos, expondo, pública e fraternalmente, qualidades e limitações que poderiam incidir no exercício da coordenação deste ou daquele confrade a ser, eventualmente, escolhido, por exemplo, por aclamação ou levantada de mão. Haverá quem diga que, afinal, tudo isso não passa de uma mera sofisticação técnica e nada mais, embora seja importante compreender que o cerne do processo como um todo não consista em ‘aclamar ou levantar a mão’ em favor deste ou daquele escolhido, mas na lógica e na alçada simbólica e pedagógica do discernimento comunitário fraterno presencial.
Tenho a impressão que, a depender da província em que um confrade vive e trabalha, pode-se constatar duas atitudes diametralmente opostas dentro do nosso Instituto. Evidente que por motivos didáticos e de espaço as reduzimos somente a duas, das muitas outras possíveis. De um lado salta aos olhos um evidente desinteresse e uma clara saturação em termos de debate, de reflexão, e de confrontação interna sobre a vida da Província e do Instituto. Delega-se a um coordenador, conselho e aos secretariados a incumbência de animar, coordenar, administrar o grupo, mas cada confrade faz o que pode na sua realidade específica, sem maiores envolvimentos e preocupações com o todo. Isso, afeta, também, o debate sobre a escolha de confrades para serem coordenadores ou conselheiros. Parece que se chegou a um ponto tal em que a pessoa se tornou indiferente diante da tarefa de escolher este ou aquele confrade. Afinal, um vale o outro, tanto faz, pouco muda! Decênios atrás, contudo, a proximidade de uma eleição produzia nos confrades da nossa província um despertar repentino de interesse e debates formais, informais, e de corredor. E, do outro lado, simultaneamente, há uma atitude em que, - sempre a depender da província e de suas circunstâncias, - a proximidade de um ‘processo eleitoral’ interno desencadeia ainda um conjunto de articulações, alianças informais, campanhas clandestinas para ‘queimar ou promover’ este ou aquele possível candidato. Não se pode negar que, em muitos casos, os próprios possíveis badalados ‘candidatos a candidato’ fiquem neutros e alheios ao jogo eleitoral, mas ao contrário, tornam-se ativos e sorrateiros promotores de suas próprias candidaturas, mediante um conjunto de pequenas ações e artifícios e, até, tentativas de cooptação, que não vêm ao caso descrever aqui. Um fato, contudo, me parece inegável: o método arcaico de receber uma lista de nomes e cada confrade, ‘no segredo do seu quarto, na plena segurança e garantia do anonimato’ sinaliza com um X o nome do seu escolhido, sem qualquer tipo de debate e confrontação me parece que, além de favorecer a dispersão e a personalização do processo, é a negação de uma metodologia que uma comunidade/província religiosa deveria, ao contrário, adotar, sistematicamente. O desafio, portanto, me parece ser o de rever e reativar o exercício e a escolha dos nossos coordenadores e adotar um processo que seja coerente com a prática evangélica e se distanciar de modelos canônicos que foram adotados pelas circunstâncias históricas hoje não mais aplicáveis. Evidentemente, alguém, com justeza, poderá dizer que há questões bem mais centrais e urgentes. Lógico, mas quero me deter exclusivamente sobre essa dimensão eletiva por ser também expressão de uma lógica e de uma prática da vida religiosa que considero não somente ultrapassada, mas também nociva no atual quadro geral.
Reconstruindo o tecido da fraternidade e da prática da participação plena e do discernimento comunitário. Algumas propostas concretas.
Acredito ter clareza suficiente para perceber que não vão ser algumas propostas técnicas que vão evitar de um lado uma suposta indiferença dos confrades no processo de escolha dos novos coordenadores e, do outro, promover a superação de uma inegável ‘politização’ do processo eleitoral. Tenho também clareza que existem entraves canônicos e procedimentos legais a serem resolvidos, e não só internamente, embora não sejam tão insolúveis como poderíamos imaginar num primeiro momento. Dessa forma, sugiro:
1. Convocação de uma assembleia específica precedida por um retiro espiritual ‘ad hoc’ que ajude a incorporar atitudes, metodologias e práticas voltadas ao discernimento comunitário, ao valor da comunhão e da participação. Na assembleia faz-se uma avaliação completa e sistematizada da execução das prioridades em todos os níveis e da atuação dos diferentes secretariados, do conselho e conselheiros, e do coordenador provincial, seguindo um esquema lógico e coerente sempre consensual, naturalmente precedida por uma preparação adequada nas próprias comunidades ou setores. Sendo que seria uma assembleia de caráter especial, a cada três anos, avaliativa, programática e discernente, não há motivos de realizá-la às pressas só para cumprir tabela.
2. O destaque, nesse sentido, por ser uma circunstância específica, será dado à metodologia da escolha do coordenador o do seu conselho. Não há motivos de se fazer, antecipadamente, pré-sondagens e/ou sondagens formais, como comumente se faz. Nem correria uma lista formal de confrades com voz ativa e passiva, pois todos são cientes dessas regrinhas básicas de quem têm direitos formais para ser escolhido ou não.
3. O coordenador em exercício terá toda a liberdade e o tempo necessário de se colocar relatando dificuldades encontradas, analisando conflitos enfrentados, experiências significativas de confrontação, apontando desafios a serem enfrentados, e a sua disposição ou não de continuar a exercer o seu serviço. Abre-se para um amplo debate em que os participantes - e somente eles, pois não existiria mais o voto por correio, - fazem suas considerações, e já podem apontar nomes com as devidas justificativas. Naturalmente, os indicados, se não aceitarem uma determinada indicação poderão imediatamente desistir. Enfim, num clima de fraternidade se apontam falhas, acertos, propostas e nomes. Nada impede que um confrade por motivos de saúde ou outros, ao não estar presente, não possa dar a conhecer o seu parecer, a sua avaliação e também indicar explicitamente o nome que segundo ele acha ser o mais conveniente.
4. Quando a equipe de mediação e coordenação com os próprios participantes acharem que há convergência razoável sobre este ou aquele nome poderá ensaiar a proposta formal e pública de apontar um determinado nome pedindo que a assembleia se manifeste levantando a mão, por exemplo. Verificada a maioria se declara a pessoa do escolhido como novo coordenador. Imediatamente se comunica ao Conselho Geral que em caso de proibição daquele nome (casos raríssimos) poderá sustar o atual discernimento e pedir uma nova rodada para escolher um novo nome.
5. No que se refere à escolha dos conselheiros poder-se-á agir da mesma forma, mas com ressalvas. Cada um dos conselheiros em exercício se coloca perante os presentes, fazendo a sua autoavaliação e acolhendo as observações dos presentes. Manifesta a sua vontade de continuar ou de desistir. Todos sentir-se-ão livres de propor outros nomes, entretanto, proponho que a assembleia não proceda a uma espécie de ‘aclamação’ deste ou daquele nome, mas sim, que apenas aponte, de forma que caberá ao coordenador já escolhido encontrar tempo suficiente, com calma, no diálogo, para ele próprio escolher, posteriormente, os seus próprios conselheiros. Afinal, eles são conselheiros do coordenador provincial! O porquê dessa mudança? Muitas vezes ocorre que os conselheiros eleitos não são da total confiança do coordenador que foi escolhido; correm o perigo de não se sentirem suficientemente respaldados e/ou valorizados ou, se divergirem, sistematicamente, do coordenador, acabam criando empasses e constrangimentos internos. Isto ocorre mais do que imaginamos! E, afinal, na nossa tradição, os conselheiros não possuem muita importância representativa e/ou deliberativa. Acredito que os nomes e suas motivações já apontados pela assembleia dão elementos suficientes ao Coordenador para escolher este ou aquele confrade para ser conselheiro provincial. Contudo, poder-se-ia pensar, também, numa proposta intermédia, a saber, proceder para escolher dois conselheiros durante a assembleia no processo de discernimento comunitário presencial e dois que poderão ser escolhidos pelo coordenador, superando aqueles critérios de representatividade regional/setorial que nunca vigoraram para valer. Acredito que todos esses procedimentos poderão inibir eventuais joguinhos eleitoreiros e escaramuças de corredor para viabilizar na marra um ou outro confrade de sua preferência, pois, mesmo existindo essa tentação, ela poderá e deverá ser explicitada e justificada diante de todos. Com efeito, o debate e a escolha públicos, bem como a ausência do mecanismo que impede o anonimato inviabilizariam esse tipo de atitude pouco honesta e nada fraterna.
6. Tenho plena consciência de que essas considerações poderão deixar indiferentes vários confrades pelos mais diversos motivos: seja porque há coisas mais urgentes e prioritárias a debater; seja porque poderiam parecer demasiadamente idealistas e, aparente e canonicamente, inviáveis a médio prazo; seja porque o seu autor sequer participa de assembleias provinciais presenciais, - embora por motivos jamais investigados e exigidos, - contudo, seja o que for, acredito ser importante, nesse contexto de processo ‘eleitoral’ se debruçar sobre uma metodologia que reputo arcaica e à margem da lógica da vida religiosa fraterna. Só isso!
Piquiá, 04 de agosto, dia do sacerdócio comum de tod@s @s batizad@s, 2025