Parece-me que o principal problema da Igreja Católica hoje não é o clericalismo, mas a versão sacerdotal do catolicismo. O clericalismo é um problema moral. A organização sacerdotal do cristianismo não. Esta é uma dificuldade estrutural. Se a Igreja Católica não fosse organizada sacerdotalmente, não haveria os abusos de poder por parte do clero que tanto lamentamos hoje e muitos outros problemas.
Há padres que não são clericais. Eles não abusam de sua investidura. São ministros humildes, que caminham com suas comunidades e a seu serviço. Eles aprendem com os leigos e os orientam com eficácia, porque têm a abertura necessária para aprender sobre a realidade e a vida em geral. Ninguém foge de suas pregações porque eles têm algo a dizer. No entanto, eles não foram eleitos por suas comunidades e, consequentemente, não devem prestar contas a elas pelo desempenho de suas funções. Padres, sacerdotes, ministros, ou como se quiser chamá-los, são escolhidos por outros padres e são ordenados pelos bispos para cumprir uma função. Nesse sentido, o nome “funcionários” pode muito bem ser aplicado a eles, mesmo que não gostem. São administradores maiores ou menores, de uma espécie de multinacional ― a maior do mundo? ― que nada deveria ter que a ver com a Igreja de Cristo. A Igreja – que, como qualquer organização humana, requer uma institucionalidade – precisa destes servidores para desempenhar tarefas que vão desde o anúncio da Palavra até à administração dos sacramentos, incluindo a arrecadação de recursos para desenvolver estes serviços, para apoiar as obras educativas, caritativas e de justiça, e para sustentar a própria vida deles. Porém, essa mesma instituição foi capaz de desumanizar sua liderança. Na verdade, ela o faz. Será que precisa fazer isso até certo ponto? Em mais de uma ocasião, pareceu-nos que sim.
O fato é que na Igreja Católica de hoje é possível ser padre sem ser cristão. Soa duro, mas é a isso que chegamos. Nos seminários, as pessoas são formadas para ensinar e administrar os sacramentos, bem como o dinheiro e, às vezes, as pessoas. Para isso, os formandos são submetidos a processos de aculturação. Os seminaristas são romanizados. Eles são reformatados. Eles são vestidos como sacerdotes para distingui-los dos outros. Eles estão isentos de passar pelas experiências fundamentais de seus contemporâneos, como intimidade afetiva e paternidade, e, no caso dos religiosos, pela obrigação de qualquer pessoa de ganhar seu pão. Os sacerdotes são seres psicologicamente divididos na mesma medida em que são separados (“escolhidos” por Deus) dos mortais comuns. Eles representam a separação entre Igreja e mundo. Aqui a Igreja (“sagrada”), ali o mundo (“profano”). À medida que essa separação é acentuada, eles são incapazes de entender o que está acontecendo e orientar efetivamente um povo que progressivamente os considera irrelevantes. A pregação de muitos deles é um fracasso do começo ao fim. Mesmo a doutrina da Igreja Católica, em mais de uma maneira, vem de pessoas que parecem não ter as tradições epistemológicas necessárias.
Muitos, especialmente os jovens, consideram a Igreja uma anomalia. O fato é que os próprios padres, divididos internamente, bipolarizados, acabam se desintegrando. Talvez os padres clericais consigam superar esse perigo. Mas certamente ao preço de uma desumanização que não pode ser a vontade de Deus que, convertido em um ser humano autêntico e o mais autêntico dos seres humanos, nos humaniza. Jesus foi um leigo que soube integrar a realidade em seus mais diversos aspectos em sua pessoa, uma pessoa humana que nos divinizou porque nos laicizou. Quem pode explicar a sua conversão em um Sumo e Eterno sacerdote? A Igreja Católica não precisa resolver o problema do clericalismo. Ela precisa, em primeiro lugar, ser não-sacerdotal [dessacerdotalizar-se]. Na Igreja, houve e há versões não sacerdotais do cristianismo: monaquismo, religiosidade popular latino-americana, 70% das comunidades da Amazônia sem padres, as igrejas evangélicas pentecostais e outras. Todas essas versões têm seus próprios problemas. Umas são mais saudáveis, “mais cristãs” do que outras. A versão sacerdotal do cristianismo tornou-se uma expressão patológica dele. Os ministros da Igreja Católica – que infelizmente não deixam de ser chamados de “sacerdotes”, como o Vaticano II tanto queria – deveriam ser escolhidos, formados e capacitados para liderar as comunidades através de processos nos quais se pudesse controlar que eles tivessem a autoridade necessária para realizar tal serviço. A autoridade, na Igreja de Cristo, deveria provir, antes de tudo, de uma experiência pessoal do Evangelho. As autoridades deveriam, como testemunhas, ser capazes de proclamar com convicção que Deus é digno de fé e que a própria Igreja pode constituir o Evangelho no mundo de hoje. A Igreja Católica necessita de ministros que sejam cristãos, em vez de funcionários de uma organização sacerdotal internacional administrada por uma classe que se elege e acredita estar isenta de accountability (= prestar contas) ao Povo de Deus.