Existe um Natal que é o resultado de obsoletas convenções sociais e religiosas, de tradições e de devoções que, embora não sujeitas a um julgamento valorativo, pouco acrescentam ao nosso desejo de dar qualidade e sentido à nossa existência. Há, contudo, o Natal das significações. Ele representa a sincera tentativa de operar um verdadeiro processo de desvelamento e descobrir o que existe por trás de um acontecimento histórico, - e não de um mito, - como é o nascimento de Jesus de Nazaré.
É verdade: nada existe ao estado puro, tudo interfere no todo e, por sua vez, tudo se conecta com o todo. No entanto, o nosso esforço, nesse contexto, deveria ser o de ir além das aparências, dos inevitáveis mascaramentos natalinos, das manjadas interpretações de circunstância (nascimento biológico de Jesus, num humilde casebre, longe da cidade, do palácio e do templo, num contexto político específico de dominação territorial, de cadastramento dos contribuintes, etc.) no intuito de captar e adotar aquela significação natalina que para nós, hoje, aqui, é a mais iluminadora. Aquela que nos permite assumir um novo olhar sobre a nossa existência e, de consequência, nos motiva para uma nova prática, um inédito agir que se dissocia do anterior. São Paulo em sua carta aos Gálatas nos diz que “chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob o poderio da Lei, para libertar os que eram escravos da Lei, para que recebamos adoção de filhos”( Gal 4, 4-5). E, uma vez conscientes de que somos filhos livres e não escravos podemos perceber que o Espírito do seu Filho Jesus habita em nós e ele grita ‘Abá’. Dessa forma, com o Espírito do Filho dentro de nós, nos libertamos dos grilhões da escravidão da lei e, portanto, nos tornamos, nós também, como o Seu Filho, filhos e herdeiros do mesmo Pai.
Mas qual é e de onde vem a força mistificadora da lei que nos escraviza? É a lei em si ou o poder que lhe foi outorgado que se torna capaz de dominar o nosso espírito? Uma lei feita por quem, afinal? Não era certamente a lei que inspirada pelo princípio da equidade garantiria direitos. Era a lei elaborada no calar da noite pelos senhores do direito e dos preceitos, fruto de nebulosas negociações, de conchavos, e não de consensos. De imposições, e não de persuasões. E como a elite legisladora sacerdotal não tinha ‘força moral’ própria para exigir a sua submissão acrítica e obediente ela utilizava o nome de Deus como suposto ‘fundador e inspirador’ para impô-la ao povão. Uma vez consagrada como ‘lei divina’ ela se torna incontestável e totalizante. Estão lançadas as bases para justificar o domínio da lei, que é humana, falível, reformável, embora carregada de conotações sagradas, supostamente inquestionáveis. É aqui que podemos descobrir as raízes da verdadeira significação do Natal para o nosso contexto específico: Jesus gerado e educado na lei, ao se libertar do ‘jugo da lei formal e interiorizada’, a ultrapassa, e age com um verdadeiro emancipador ao desvendar as armadilhas da sua pretensa sacralidade e absolutização. Torna-se, Ele próprio, um permanente infrator da lei formal com o intuito de libertar pessoas que, embora formalmente livres, viviam como escravas da lei e, permanentemente, segregadas e excluídas do convívio social.
O nosso olhar,
portanto, inspirado em Jesus não pode ser o da formalidade legal (legalismo)pura
e simplesmente, ou da mera justiça distributiva, por exemplo, tão injusta e
cega, e sim, assumirmos o desafio de adotar a lógica e a metodologia da
equidade. Nela somos continuamente solicitados a olhar com humanidade e
sensibilidade as diferentes realidades, e a agir de acordo com as necessidades
específicas de cada um. Não existe nada de mais injusto do que tratar todos de
forma igual. Não há como negar mais apoio e mais compaixão àquele que vive mais
abandonado e mais desprotegido. O Natal não vem para consolidar o que repetimos
e celebramos automática e acriticamente, mas para nos libertar de modelos,
categorias, formulações que mantêm o nosso olhar e sentir presos e cativos. O
Natal de Jesus, como Ele, nos convida a superar os sentimentos de culpa por nos
sentir infratores de leis e preceitos humanos que só visam a manutenção e a
dominação de consciências e corpos. Sejamos infratores libertos e libertadores!
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