sexta-feira, 16 de abril de 2010

OITO ANOS DE POLÍTICA INDIGENISTA DO GOVERNO LULA: UM BALANÇO

O governo Lula está chegando ao seu ocaso. Em que pesem os altos índices de popularidade, - não totalmente imerecidos, – cabe-nos fazer um breve balanço da sua política indigenista. A proximidade da semana dos povos indígenas nos impele a olharmos com firmeza a quanto foi decidido e feito ao longo desses quase oito anos de administração federal. Não cabe, nesse contexto, fazer uma retrospectiva dos principais acontecimentos que marcaram a relação estado-Povos indígenas e sim, tentar destrinchar o seu sentido e fazer emergir causas e conseqüências de omissões, opções administrativas e descasos oficiais que chegam às raias do crime político para com povos que ainda sofrem uma grave fragilidade social.

Questão indígena é estratégica, mas não prioritária. Melhor levar em banho-maria!

Um primeiro ponto que salta aos olhos para quem vem acompanhando, embora superficialmente, a questão indígena no Brasil nesses últimos oito anos, é a ausência de um eixo político norteador, inovador e aglutinador da política indigenista federal como um todo. Em outras palavras, na questão da macro-política indigenista, o governo Lula não disse a que veio, alimentou a fragmentação e não deixou uma marca significativa. Não se diferenciou dos governos anteriores. O atual governo manteve, substancialmente, a rotina administrativa, sem brilho e sem ousadia. A questão indígena não entrou a fazer parte da pauta governamental.

O governo Lula não soube ou não quis chamar para si a coordenação/supervisão das inúmeras ações, competências, diretrizes, planejamentos que dizem respeito à questão indígena. Não se está advogando aqui uma centralização governamental e sim, fazer jus à prerrogativa que o governo federal possui em consultar, fiscalizar, coordenar, impulsionar, determinar e propor, em diálogo com os povos indígenas e outras instituições, ações políticas que venham a reconhecer efetiva e definitivamente o papel cidadão (direitos e deveres) de sociedades culturalmente diferenciadas.

Inúmeros sintomas indicam que o governo Lula não quis enfrentar nem direta, nem indiretamente os interesses relacionados ao agro-negócio, à mono-cultura, à crescente privatização do patrimônio florestal e da biodiversidade, aos grandes projetos de infra-estrutura que criam impactos sobre os territórios de pertença imemorial indígena. Contentou-s em fazer ‘manutenção ordinária’ sem assumir e cumprir com as determinações constitucionais de demarcar as terras indígenas faltantes, elevando os níveis de qualidade na saúde e educação, e oferecendo condições de autonomia ampla a todos os cidadãos e cidadãs indígenas do País. Em outras palavras, o governo federal nesses anos apequenou-se, curvando-se às pressões e às chantagens de quantos tratam os territórios indígenas no Brasil como espaços sempre abertos e desregulados de oportunidades econômicas ilimitadas. Diferentemente dos seus colegas presidentes da Bolívia e do Equador, na questão indígena, Lula amarelou.

Demarcação de terras indígenas não é urgente. Regularizar só quando não tem jeito!

Um segundo ponto que consideramos essencial numa avaliação de uma política indigenista é, justamente, o item demarcação/homologação de terras indígenas imemoriais. O atual governo manteve uma mediocridade espantosa. Apesar da formalização da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), a mais emblemática, da Terra Indígena Awá-Guajá (MA), e de outras terras menos polêmicas, o governo Lula não avançou no imperativo constitucional de demarcar no prazo de cinco anos, a partir da promulgação da Constituição (1988) todas as terras indígenas da União. Mais de 50% das terras, comprovadamente indígenas, continuam sem identificação, demarcação e/ou homologação. Nesse ponto, o governo Lula não passará à história!

Além dos motivos acima listados, o governo Lula, na questão fundiária, se deixou enlaçar pela onipresença do judiciário federal e pelas forças armadas (exército). O primeiro chamando para si a palavra final, inclusive sobre ‘questões fechadas’ e, - de forma despótica, - determinando ‘condições estruturantes’ para a ‘utilização’ dos territórios indígenas (veja Raposa Serra do Sol). O segundo, os militares, reeditando antigos falsos temores e síndromes de supostas e fantasmagóricas forças militares estrangeiras a invadirem o território nacional via ‘terras indígenas de fronteira’.

A conjunção dessas forças, mesmo que não em conluio direto entre si, associadas à postura omissa e indiferente do governo federal e à leniência dos setores mais combativos do congresso nacional, tem causado entraves jurídicos e atrasos irresponsáveis nos processos demarcatórios.

Cabe ressaltar que, no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a homologação presidencial saiu após pressões permanentes da sociedade nacional e internacional com a participação constante e teimosa de setores indígenas, e não pela iniciativa espontânea do governo a quem cabia o dever constitucional de fazê-lo. É legítimo se perguntar se, ao diminuir a simpatia e a pressão internacional e indígena, com relação à questão indígena nacional, o governo sentirá ainda a pressão das determinações constitucionais para regularizar e proteger todas as terras indígenas do País....

Consultar os povos indígenas? Um mero detalhe!

Um terceiro ponto, entre os muitos que poderíamos colocar na avaliação do governo Lula, e que está relacionado ao anterior é o tratamento que ele reservou àquelas comunidades indígenas situadas em territórios impactados pela construção de grandes projetos de infra-estrutura. Referimo-nos, por exemplo, à construção das usinas hidrelétricas Belo Monte, no Xingu, PA, Estreito, MA, e de muitas outras previstas no território nacional, e que produzem transformações deletérias sobre várias comunidades indígenas e os seus territórios. O governo tem agido com força e determinação avassaladoras, ignorando quase por completo as populações locais e os impactos ambientais e sociais.

Tem agido como se naqueles territórios houvesse um ‘vácuo social, étnico e ambiental’ a ser preenchido somente por...’crescimento acelerado’. O que mais chama a atenção desse governo, - que tem alardeado a participação popular como a sua palavra de ordem, - é a ausência da participação substantiva dos diretos interessados, cidadãos e cidadãs, povos e movimentos sociais.

Formalmente, o governo parece cumprir com determinadas disposições legais, mas na prática, de forma maquiavélica, lança mão de subterfúgios e estratagemas para que não se efetive a consulta, o estudo sério dos impactos, as alternativas possíveis, as condicionantes, etc. Nesses casos específicos, o governo brasileiro não respeitou a disposição 169 da OIT (assinada pelo País) que estabelece consulta ampla e prévia aos povos indígenas quando impactados por algum tipo de decisão governamental.

Reforma administrativa da FUNAI: mudar para que fique como está!

Um último ponto a ser destacado foi a ‘tentativa’ de reforma administrativa da FUNAI. O governo serviu num prato já pronto o decreto que determinava as mudanças administrativas substanciais no órgão indigenista oficial. De forma astuciosa, o governo deixava a entender que, afinal, ele estava se antecipando e indo de encontro a algo almejado por muitos setores ligados à questão indígena. Ele o fez, todavia, à sua própria maneira. De fato, em que pese a dificuldade de determinar as formas e os níveis da representação indígena nacional, o governo federal não consultou previamente os povos indígenas sobre algo que lhes dizia respeito, desacatando mais uma vez a convenção 169 da OIT.

Enfraqueceu na estrutura administrativa do órgão aqueles setores que tinham ainda uma certa autonomia política e poder de fogo como o era a diretoria de assuntos fundiários. Tentou moldar e transformar antigas administrações regionais e os postos indígenas em ‘postos avançados’ para facilitar as ações governamentais no seu frenesi de ‘crescimento’, apostando na sua irreversibilidade também nos territórios indígenas, independentemente das modalidades a serem adotadas. Finalmente, em nome da ‘participação/parceria’ com a sociedade civil oferece brechas e oportunidades ‘financeiras’ para aquelas ONGs indigenistas que, tradicionalmente, têm sido benevolentes com as políticas governamentais.

Algumas projeções

Seja a confirmação de um governo petista bem como uma eventual reedição de administração tucana no próximo pleito, não se vislumbram mudanças substantivas na futura política indigenista. Haverá intervenção só naquelas circunstâncias que entrarão em colisão com a ‘segurança e os interesses nacionais’, considerados tais pelo próprio governo. A regularização de terras indígenas, bem como extrusões de invasores e outros não responderá a um cronograma ou e a um orçamento previamente fixados, mas será subordinada pontual e sistematicamente a interesses estaduais, regionais e municipais. Com certeza as operações espalhafatosas da Polícia Federal em terras indígenas continuarão, mas sem produzirem os efeitos desejados dada a inconsistência dos sistemas de vigilância e fiscalização existentes. Por outro lado, não será a atual configuração do STF (Supremo Tribunal Federal) a exigir ou a determinar a salvaguarda sistemática dos territórios indígenas da União!

O projeto que cria o Estatuto dos Povos Indígenas que tramita no Congresso Nacional há quase 20 anos é bem provável que acolá permaneça por vários anos ainda, independentemente da futura composição parlamentar. Ao governo federal, seja qual for, não interessa se ‘amarrar’ a disposições legais que poderiam inibir e coibir a facilitação de ações, projetos, intervenções, etc. utilizando os territórios indígenas e o seu patrimônio como moeda de troca política com Estados e grandes empreiteiros. Continuará valendo a palavra do judiciário e dos interesses dos mais fortes!

Tudo indica que o futuro governo dará continuidade à normal administração promovendo e melhorando, talvez, alguns mecanismos de assistência, concedendo pontualmente pequenas formas de autonomia no campo da assistência à saúde indígena e educação escolar, principalmente. É improvável que o governo promova uma autêntica ’revolução étnica de caráter sócio-cultural’ investindo maciçamente na autodeterminação dos povos indígenas, e concedendo instrumentais para que isso ocorra. Continuará como tem feito até agora, a ‘negociar’ individualmente (povo a povo) eventuais concessões locais em troca de apoio ou, pelo menos, de ‘não-belicosidade’, intensificando, assim, os conflitos inter-étnicos segundo a moda imperial romana ‘divide et impera’! (divida e impere!)

Futuramente, poderão até diminuir as formas de truculência e de violência, de caráter individual, geradas diretamente pelo estado ou pelos aparatos policiais estaduais contra indígenas. Entretanto, a tendência é que aumente a violência gerada por atores sociais civis e pelos próprios indígenas contra outros indígenas. Os primeiros, ao pressionarem os territórios indígenas e suas populações em busca de mais espaço ‘produtivo’ e novas negociatas e oportunidades, produzirão violência mais intensa e conflitos sempre mais vastos. O estado, através de seus aparatos, vem se demonstrando incapaz em controlar ou inibir formas sempre mais extensas de conflitos nas ‘regiões indígenas’. Os segundos, os indígenas, ao afrouxarem a coesão interna e ao não delimitarem/inibirem as formas de disputas e negociação individual ou de grupo com os não indígenas, acabarão dando vida a novas formas de tensão e conflitos internos que desgastarão a força moral que, substancialmente, ainda possuem. Provavelmente, assistiremos nos próximos anos a um verdadeiro paradoxo: o estado que formalmente se apresentará mais democrático e tolerante para com as populações indígenas, continuará alimentando e ampliando com sua omissão premeditada e com seus sonhos de propulsor do ‘crescimento nacional’ novos e inéditos conflitos na sua base social e econômica.

Caberá aos povos indígenas que não possuem nem congresso próprio, nem representação política formal, intensificar as suas pressões e mobilizações, mas canalizando projetos e interesses, atualmente pulverizados, num eixo político comum, sobre o qual haja um consenso mínimo, sob pena de serem considerados e tratados pelo estado como meros movimentos sociais comuns. O conceito político de povo/nação seria totalmente esvaziado, e eles, - como os demais ‘movimentos sociais’ nacionais - serão criminalizados se fizerem oposição, ou serão ‘beneficiados’ se aceitarem ser cooptados e se submeterem pacificamente ao governo de turno. A eles a ‘árdua sentença’!

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