Existem gestos e acontecimentos que pela incidência simbólica – muito mais do que pelos seus efeitos práticos - acabam produzindo impactos mais significativos nas pessoas. Um sapato jogado por um jornalista iraquiano contra o ex-presidente Busch, por exemplo, numa coletiva, tem um impacto, a nível simbólico, muito maior do que um protesto público de mais de 10.000 pessoas numa praça. No nível do efeito prático ele se revela inconsistente. Com efeito, o ex-presidente sequer foi atingido, e mesmo sendo, não teria colocado em risco a incolumidade do alto dignitário. Aquele gesto, entretanto, nos deixou intrigados: o jornalista utilizou, dentro de sua cultura, o pior gesto que se podia reservar a um inimigo. A (pior)-melhor forma para manifestar-lhe desprezo, revolta e indignação por alguma ofensa grave sofrida só podia ser mediante “o arremesso” de um sapato.
Jesus no evangelho hodierno lança mão do mesmo recurso. Não tanto uma ação efetiva que visasse acabar definitivamente com uma determinada prática historicamente adquirida – a de vender e comprar objetos para o culto – e sim, um gesto que fosse expressão da inconsistência, da incoerência e da manipulação que eram exercidas pela instituição ‘templo/religião’. Alguns exegetas fazem notar que a ação de Jesus deve ter sido premeditada e bem planejada, pois conseguiu provocar bastante confusão e desordem e sair do templo sem ser preso. Isso mostraria que havia outras pessoas a lhe oferecer proteção, sem considerar que havia um elevado número de guardas no templo, principalmente em ocasião da páscoa. Em que pese a premeditação da ‘ação paramilitar’ de Jesus, o gesto deve ser lido dentro da visão de fundo que Jesus tinha a respeito da ‘instituição templo’.
O templo para Jesus não era mais a expressão do espaço do encontro com Javé, nem o sinal da Sua presença mediante a arca, ao contrário, os sacerdotes, - mediante o incentivo e o fortalecimento das normas de pureza e dos cultos e sacrifícios – estavam promovendo a mercantilização do sagrado e a dominação religiosa das pessoas. Eles haviam conseguido construir o monopólio da relação ‘legal’ entre Deus-homem através da manipulação simbólico-religiosa. Tudo isso em função do seu enriquecimento ilícito, da manutenção do nepotismo e do clientelismo. Na prática, a instituição templo estava promovendo uma verdadeira revitalização econômica na Judéia e no País como um todo, apesar da presença fiscal dos romanos. Tudo isto traia o passado religioso hebraico e negava a presença de Javé naquele espaço-instituição.
O templo havia deixado de ser espaço de acolhida das pessoas, espaço de comunhão das pessoas entre si e com Deus, espaço de reconhecimento de gratidão ao Deus da vida. Aqui residia o verdadeiro pecado da instituição templo: ser negador da dignidade-vida-consciência-identidade das pessoas. As pessoas não podiam mais se reconhecer no templo por ele não permitir que as pessoas reconhecessem a presença do Deus de seus antepassados no templo. A instituição deturpou de tal forma o templo que acabou deformando a própria identidade de Deus. As pessoas simples, ao não reconhecer ‘aquele Deus” que havia marchado com seus pais pelo deserto à procura de terra, estavam sendo machucadas e negadas em sua consciência, em sua fé, em sua identidade. Isto, para Jesus, precisava ser destruído, pois o “corpo-templo” das pessoa devia ser preservado.
O templo-instituição podia ser destruído, e isso era urgente a ser feito, para poder fazer ressuscitar aquela consciência-fé-dignidade coletiva que foi deformada e manipulada por uma classe sacerdotal manipuladora e inescrupulosa. Para que pudesse surgir um novo Israel, na nova realeza de Deus, devia ser respeitada a identidade-templo de todo israelita, de toda pessoa.
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