Historicamente os setores hegemônicos (hierarquia, magistério e teologia formal) da igreja católica construíram um arcabouço teológico e místico para que seus adeptos contemplassem a ‘imagem-símbolo’ do crucifixo como a expressão da entrega gratuita, livre, amorosa, sacrifical de Jesus em vista da salvação do mundo. Ao contemplar o crucificado Jesus, as pessoas seriam motivadas a se identificarem com aquelas nobres virtudes. Isso permitiria no cotidiano da sua existência encarar e suportar com admirável conformação e resignação tudo o que representa morte, sofrimento, dor, negação de vida. Ao mesmo tempo, essa espiritualidade da cruz ajudava a tornar natural no imaginário religioso das pessoas a própria crucifixão. Ou seja, esta seria uma ação a ser quase ‘imitada’ pois iria possibilitar purificação, oblação e sacrifício expiador. Congela-se, dessa forma, o ato da crucifixão em si e se induz à sua aceitação e conformação.
Não se trata aqui de emitir um julgamento de valor sobre o itinerário formativo-religioso percorrido pelos setores predominantes da igreja e imposto aos seus seguidores. Trata-se de constatar atitudes e posturas religiosas, e tomar ato de suas conseqüências no plano ético e comportamental. Não há como reconhecer, todavia, a gritante distorção e deturpação do gesto histórico e simbólico do crucificado Jesus. De fato, na nossa formação religiosa, a contemplação do crucificado não nos remete imediatamente a identificar nele uma vítima de um crime, de um homicídio, o resultado de uma sentença arbitrária de morte, um abuso institucional. Nunca fomos educados a ver por trás daquele crucifixo os crucificadores, os autores do crime.
Ao encarar a cruz como algo ‘natural’, e o caminho de Jesus ao calvário como uma escolha-decisão soberana Dele, livre, espontânea - e não como imposição arbitrária de ‘outros’, como um abuso, como coação sobre uma vontade/consciência que aspirava à plena integridade física – banaliza-se o crucifixo e a morte violenta, premeditada. Ao mesmo tempo, tal atitude, supostamente, desresponsabiliza a pessoa em procurar identificar os autores do crime e exigir justiça e reparação. Há uma outra conseqüência imediata dessa distorção religiosa: as vítimas são entregues ao seu próprio destino. O que lhes resta é se identificarem com o ‘conformado’ crucificado, perdoando os agressores criminosos e continuando a serem ‘condenados’ ao abandono social e à impunidade institucional.
Ao contrário, o evangelho hodierno de João quer ajudar todas as vítimas ‘crucificadas’ a se identificarem (crerem) não com um Jesus ‘conformado’ que se entrega ‘livremente à morte’ - como se esta não lhe tivesse sido imposta, - mas com um Jesus que grita, exige, interpela e reivindica de Deus justiça, proximidade e intervenção (‘meu Deus porque me abandonaste?”). Quem assumir tal atitude “não vai ser condenado” ao desespero, à humilhação, à insegurança, ao medo, mas “terá vida plena” e renovada esperança. Com efeito, mesmo na dor, no sofrimento, na cruz pode vislumbrar a sua (da cruz) superação, o seu fim, as suas causas e os autores criminosos! Ao passo que quantos não crerem (não se identificarem) na possibilidade de o crucificado inconformado ter sucesso em suas reivindicações por justiça, respeito pela sua integridade, segurança e punição dos responsáveis da sua ‘crucificação’, eles “já estão condenados” ao medo, ao desespero, à humilhação, à falta de perspectivas.
Somente aqueles que agirem como o inconformado-iluminado Jesus é que poderão ‘desmascarar’ os senhores das trevas, pois estes não querem se expor, preferem esconder suas más ações para não serem descobertos, responsabilizados e punidos. Que os crucificados tenham a coragem-fé de apontar os seus crucificadores!
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