Para quantos têm dificuldades estruturais para contextualizar um acontecimento de grande envergadura ou apresentar o início de uma nova etapa histórica eis aqui um exemplo perfeito a ser seguido: ‘No ano quinze do império de Tibério César....’ (v.1).
Com isso Lucas nos diz, desde logo, que entramos definitivamente no campo da história, aquela verdadeira, que conta, escrita com ‘H’ maiúscula. Ou seja, inicia-se, agora, um novo ciclo histórico em que a história não é mais feita e escrita a partir do ‘Império’, e sim, escrita e feita a partir do ‘deserto’.
Um ‘deserto’ havia se tornado Israel sob Tibério César, Pilatos, Herodes, Filipe e os sumos sacerdotes Anás e Caifás. O deserto estava se espraiando pela alma de um povo cansado de esperar e lutar, reduzindo a sua capacidade de resistência. Um deserto havia se tornado a religião oficial dos ritos vazios e formais do templo, incapazes de motivar e devolver a esperança de um povo dominado e estéril, pois era incapaz de produzir frutos de justiça.
É o deserto dos esquecidos, dos invisíveis, dos que vivem longe da cidade-capital, dos lugares que contam, mas é também o ‘deserto’ de quantos sabem resistir às tentações de voltar novamente para o Egito da escravidão e da tribulação. De quantos fazem da memória das longas e duras caminhadas dos seus ancestrais pelas ásperas terras do deserto à procura da terra livre, prometida, rica em mel e leite, a fonte da sua esperança e resistência ativa.
Paradoxalmente, é a partir desse ‘deserto’ - que é muito mais do que um lugar geográfico, - que a esperança de reconstrução de um novo Israel deve ressurgir. João o Batista torna-se, historicamente, o seu profeta provocador e iniciador. Ao longo da bacia do Jordão, no rio da esperança que renasce ele prega um redirecionamento nacional de opções, atitudes e comportamentos sociais.
É a partir do ‘Jordão’ da água que revigora, que purifica, que mata a sede de justiça que a esterilidade do deserto pode virar fertilidade. É nessa perspectiva que o novo Israel terá que ‘se batizar’. É a partir desse binômio deserto - água (morte – vida; dependência - liberdade) que Israel deverá iniciar uma nova época de insurreição e ressurreição social e espiritual.
João se compreende a si mesmo como um legítimo continuador da pregação dos profetas clássicos do antigo Israel (Isaias, Amós, Jeremias...), mas diferentemente deles que exigiam mudanças somente dos príncipes e governantes, João é um profeta que exige mudanças radicais por parte de todos, indistintamente. Não se dirige exclusivamente a uma categoria de pessoas, e sim, a todos, para dizer que todos, afinal, somos responsáveis pelo deserto em que vivemos. Alguns porque o impõem com a força e a lei. E outros porque não têm a coragem de combatê-lo. Todos, portanto, têm que assumir o compromisso de transformar o deserto, a esterilidade, a morte que existe dentro deles em espaço habitado, acolhedor, grávido de esperanças renovadas, de vida nova e de liberdade.
Por isso, os montes terão que perder ‘seus cumes’, e os vales terão que perder ‘suas depressões e achatamentos. Alguns serão abaixados e outros elevados. Uma nova ordem deverá ser estabelecida. É nessa procura de ‘igualdade’, de mudança e inversão de opções de vida, de superação de dificuldades aparentemente intransponíveis, que a salvação (o caminho do Senhor) fará a sua irrupção e se manifestará.
João, longe de pregar uma vinda messiânica fatalista, impessoal e fanática nos convida a construir desde já, na história real feita de impotências e esterilidades (deserto), de contradições e desigualdades (montes e vales) a salvação que brota da água fértil do Jordão que corre pelos desertos da vida e os transforma. Da esperança frágil que não morre, mas que renasce sempre para continuar a fecundar o deserto a fim de que se torne ‘terra onde corre leite e mel’ para todos.
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