É sabido que os Tupinambá e muitas outras etnias em diferentes continentes desse planeta praticaram a antropofagia. Eram vulgarmente chamados de canibais. Os nossos Tupinambá não necessitavam certamente de carne humana para se alimentarem, considerada a riqueza de caça existente em suas matas. Era uma antropofagia cultual. Ingeriam a carne/corpo do ‘inimigo’ mais valente e corajoso que havia sido preso durante uma batalha. O intuito era incorporar e se apropriar simbolicamente de seus valores e qualidades. O próprio ‘preso’ sabia disso, e dificilmente tentava fugir do seu cativeiro que, em geral, era um espaço acolhedor e cercado de muitas atenções. Afinal, a ‘futura vítima’ devia ser bem tratada, pois não era um ser comum, mas era um ‘alguém a ser imitado e seguido’.
Os cristãos católicos vêm adotando há cerca de 2.000 anos a ‘comunhão’ com o seu Fundador mediante a ingestão de pão devidamente consagrado numa liturgia eucarística. Não se trata evidentemente de antropofagia. Existe, contudo, a mesma convicção de que ao ingerir o pão consagrado estariam incorporando, simbolicamente, os valores, os ensinamentos, o projeto de vida, as opções de Jesus de Nazaré.
É crença comum que ‘naquele pão’, consagrado por um presbítero, estaria ‘realmente presente’ o próprio Jesus, atribuindo a essa expressão quase que um poder ‘histórico’. Ou seja, enfatiza-se sobremaneira a palavra-conceito ‘real’ quase que para significar que o próprio Jesus histórico (a pessoa histórica de Jesus) estaria naquele pão-corpo. O presbítero, e somente ele, mediante um ‘poder específico’ e através de uma fórmula devidamente pronunciada estaria ‘operando uma transformação’ quase que material de tornar ‘presente’, naquele momento, o Jesus histórico. E isso é impossível e irreal!
Esquece-se que o pão consagrado é um ‘significante’, ou seja, um ‘sinal/sacramento/semeion’, que aponta para um ‘significado’ maior, nesse caso específico, a prática ético-humana de Jesus de Nazaré. É essa que tem que ser ‘incorporada/ingerida’ simbólica e historicamente.
Mas o ‘Corpus Christi’ que hoje celebramos aponta também para outras dimensões historicamente pouco valorizadas pela tradição católica: o corpo e não somente a ‘alma’ deve ser objeto do nosso respeito e veneração. Os corpos veiculam, embora de forma imperfeita, a imagem e a sacralidade do Criador. A ênfase que se tem dado à salvação da ‘alma’ em detrimento da ‘salvação do corpo’ tem gerado distorções e perversidades teológicas e humanas.
‘Adorar’ o corpo de Cristo não significa simplesmente ‘adorar uma hóstia’ colocada num vistoso e dourado ostensório, mas significa reconhecer que toda pessoa corpórea/hóstia real é espaço que acolhe e manifesta a presença ‘do Espírito’ do Criador. Os corpos humanos são ‘o templo do Espírito’. Profaná-los, violentá-los e torturá-los significa profanar o ‘espírito’ que não vive separado de um ’corpo’. Toda vez que vemos corpos dilacerados e deformados deveríamos nos sentir escandalizados e indignados e motivados a promover atos de ‘desagravo’, pois aí sim, concreta e historicamente, ‘as hóstias humanas’ sacramentos do Pai, são profanadas e negadas’!
Finalmente, reconhecer a presença simbólico-real de Cristo no pão significa tornar-se instrumento de superação da fome e de toda exclusão aos bens da vida. Significa, afinal, nós mesmos sermos ‘pão/hóstia’ que alimenta, sustenta, e gera vida.
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