sábado, 13 de fevereiro de 2010

AS BEM-AVENTURANÇAS: A APOSTA DE DEUS NOS INDIGENTES PARA MANIFESTAR A SUA " REALEZA", OU SEJA, O SEU MODO DE GOVERNAR A HUMANIDADE! (Lc.6, 17. 20-26)

Às vezes podemos nos sentir tomados por sentimentos de revolta ou de paz interior ao lermos as bem-aventuranças de Jesus segundo a versão de Lucas. Depende de qual contexto as lemos e meditamos. Depende dos interesses e projetos pessoais ou grupais que temos a salvaguardar ou a realizar. Depende, enfim, da nossa transparência interior em saber interpretar e incorporar com a maior fidelidade possível o ‘contexto social e teológico’ do próprio Jesus histórico (lá onde é possível!) e das comunidades de Lucas para quem ele escreve.
Podemos, de fato, nos indignar intimamente ao constatar que os pobres ainda hoje continuam de mãos vazias e que os que seqüestram bens e oportunidades continuam a tripudiar cinicamente. Podemos, ao mesmo tempo, nos refugiar numa falsa paz interior achando que ainda não chegou a hora de Deus para fazer justiça aos indigentes desse mundo. Podemos, enfim, achar que todos somos pobres, - nem que seja, espiritualmente - e que todos, afinal, somos destinatários das bem-aventuranças divinas! Isso nos consola e dá paz!

É evidente que Lucas está produzindo teologia e não crônica histórica ao relatar as ‘suas’ bem-aventuranças, mas isto não significa que ele esteja manipulando ou deformando uma realidade histórica concreta. Da mesma forma age Mateus em ‘suas’ bem-aventuranças que, a primeira vista, divergem significativamente das de Lucas.
De fato, para Mateus, Jesus proclama as bem-aventuranças sobre um monte, e Lucas numa planície. Mateus lista oito bem-aventuranças e Lucas somente quatro. O primeiro só cita bem-aventuranças, mas o segundo faz corresponder a cada uma dela uma maldição. O primeiro fala em ‘pobres em espírito’, já o segundo se dirige a ‘ vós, os pobres’, de forma direta e sem espiritualismos, o que é típico de Lucas.
O que nos interessa é que os dois estão fazendo emergir um dado histórico inequívoco: Jesus iniciou a sua força-tarefa missionária libertária por causa daqueles setores sociais mais excluídos da Palestina apostando neles para construir uma nova sociedade nacional e, principalmente, um novo jeito de ser humanidade, o que expressaria a realeza de Deus. Ou seja, através da sua opção e aposta nos indigentes da Palestina como atores históricos e não como meros comparsas sociais, o Galileu queria manifestar publicamente que o próprio Deus (nacional) teria feito a mesma escolha que Ele!
Ao longo dos séculos sempre houve tentativas de ‘universalizar’ os sujeitos das bem-aventuranças e ‘adocicar’ as maldições dirigidas aos geradores da pobreza, no intuito de enfraquecer o vigor profético daquelas proclamações. Isto persiste até hoje, inclusive dentro da própria igreja, que não foge aos condicionamentos e aos interesses corporativos.
Lucas, de forma persistente, parece nos lembrar que esta foi a opção racional do Jesus histórico, a respeito da qual não cabe dúvida. A aposta de Jesus, afinal, seria o fruto da sua leitura histórica da situação de desigualdade e injustiça que havia na Palestina. Com isso, para Jesus, os indigentes (em grego, ptokói) deviam assumir o processo histórico de construir e conduzir o novo jeito de ‘governar de Deus’ dando um ‘chega pra’ lá’ para aqueles que os humilham sistematicamente.
As assim chamadas maldições ‘ai de vós....’ aos ‘produtores de miséria social e econômica’ não são formas punitivas ou vingativas, de caráter justiceiro, mas um alerta e uma constatação de quanto já lhes vem acontecendo ao agirem daquela forma desumana. Ao mesmo tempo representam uma clara manifestação da definição do lugar social no qual Jesus se coloca para alavancar o seu projeto sócio-religioso.
Nesse sentido, as bem-aventuranças não se constituem como um ‘discurso ou sermão’ único, circunstancial, pronunciado por Jesus de forma pontual numa planície ou numa montanha, uma vez por todas, e sim, representa a síntese da trajetória metodológica e do público-alvo que escolheu globalmente ao longo da sua missão. Tampouco, são proclamas programáticos do que haverá de vir num futuro próximo ou remoto para uns ou para outros. Ao contrário, são um reconhecimento público do que já está ocorrendo, e é um claro incentivo dirigido aos que seguiam permanentemente Jesus em suas viagens pelas aldeias da Palestina: ‘os pobres, os indigentes’.
Afinal, eram os únicos que tinham interesse em mudar e acreditar que era possível construir e esperar algo diferente para eles. De alguma forma o itinerante mestre palestino estava dizendo àquela massa de gente desesperada e sem perspectivas que era possível recobrar esperança, que tinha força para mudar, que Deus estava do lado deles e não ‘dos outros’, e que uma nova realidade já havia iniciado e estava no meio deles. Era só comprovar!

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