Festa do Coração de Jesus. Preferi tirar o ‘sagrado’ que é posto na frente do ‘coração’, e pôr o 'sangrado', pois dessa forma pode ser algo mais próximo do nosso modo de sentir, hoje. Não é fácil, contudo, se identificar com a festa hodierna que a liturgia nos propõe. O ‘sagrado coração de Jesus’ cheira demais a devoção piedosa e menos a espiritualidade. A primeira (devoção) se baseia num pronunciar repetitivo de fórmulas e preces estereotipadas para ‘obter graças e favores divinos’; já a segunda (espiritualidade) se alimenta das fontes bíblicas e delas encontra motivações profundas para nortear ações, escolhas e opções de vida.
Para os hebreus, e o Oriente em geral, o coração simboliza a ‘consciência e/ou a sabedoria’ que está presente na pessoa. Já o inconsciente, para os hebreus, reside nos rins! Daí se pode perceber que a festa não tem, a princípio, raízes bíblicas, pois a adoção do símbolo do coração como amor já é tardia e típica do Ocidente. Em que pese tudo isso, temos a oportunidade de reinterpretar e atualizar não somente a simbologia manifestada mediante o ‘coração de Jesus’, mas também a própria espiritualidade que dela encontra as suas raízes.
Nesse sentido, o evangelho de hoje (Jo.19,31-37), selecionado oportunamente pela igreja, nos dá algumas pistas de reflexão extremamente atuais. O evangelista João, num estilo dramático, mas profundamente plástico e simbólico, relata como os soldados romanos, após quebrarem as pernas de Jesus já crucificado, enfiaram uma lança no seu peito e dele jorrou ‘sangue e água’. Para João é o ápice da doação gratuita e 'consciente' de Jesus. É um Jesus ‘sangrado’, sugado até o extremo, até o final. Para o escritor e teólogo João, o homicídio de Jesus parece coroar, de forma coerente, o seu itinerário de vida. Jesus se doou de forma tão intensa, dispendiosa e profunda aos outros, e foi tão exigido e ‘sugado’ em suas energias psicofísicas pelas pessoas que inclusive no momento final de sua existência foram-lhe extraídos os últimos resíduos de vida (sangue e água).
João, entretanto, não vê nesse gesto mais um ‘abuso’ praticado pelos soldados e sim, o último gesto gratuito, consciente e coerente de Jesus: ele continua doando, do alto da cruz, mesmo após a sua morte, sangue e água às pessoas, ou seja, a VIDA, a motivação para esperar e viver! Um amor ilimitado para com os seres humanos, inclusive, para com os seus crucificadores. A única coisa que lhe havia sobrado após a sua morte biológica, ou seja, alguns ‘resíduos líquidos’ - mas que simbolizam a energia vital que corre nas veias (sangue e água) dos vivos - foi oferecida de forma soberana ao mundo. É o último gesto profético do pregador de Nazaré: aos que querem aniquilá-lo e destruir os últimos vestígios de vida Ele continua fazendo brotar do seu corpo mais vida. Mesmo morto continua se oferecendo livremente ao mundo para este continue tendo ‘sangue e água’ para VIVER!
Só de um coração assim podia sair perdão, reconciliação, gratuidade, tolerância, e amor sem fim. Jesus, porém, não foi o único! Hoje podemos contemplar inúmeros crucificados e crucificadas da vida, sugados, espremidos e sangrados até às últimas, mas mesmo assim eles/as continuam oferecendo vida a quem produz morte, semeando perdão a quem só conhece intolerância e vingança, propondo diálogo e paz a quantos fazem da violência e da prepotência o sentido de sua vida. Hoje é a festa de todas aquelas pessoas que nos lembrarm com sua vida que ela (a vida) continua teimando em 'existir', apesar da violência, da guerra, do ódio e da morte!
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