Não há como falar em territórios indígenas ou em mudanças ambientais e desenvolvimento entre as sociedades indígenas no MA sem procurar entender as mudanças sócio-econômicas que se deram nesses últimos 20 dentro delas. Mudanças produzidas de fora para dentro. Programadas não pelas sociedades indígenas, mas por forças externas a elas. As sociedades indígenas que foram obrigados a viverem quase sempre acuados o tempo todo tiveram que reagir, se defender, resistir, e tentar revidar para não sucumbir Quase nunca tiveram a tranqüilidade, as condições, as oportunidades de pensar num projeto de vida próprio, autônomo, afirmativo, seja lá o que for: projeto de educação, de saúde, de fortalecimento da identidade, de sustentação.... Sempre foram obrigados a responder, a contra-atacar diante de ataques, pressões, ameaças, negligências oficiais...
O marco, o divisor de águas dessas mudanças, aqui no Maranhão, encontra sua origem na implementação do Projeto Grande Carajás no início dos anos 80. Não significou simplesmente uma ferrovia se adentrando em alguns territórios indígenas, ou beirando outros. A Ferrovia Carajás, desde então, vem significando para as sociedades indígenas no Maranhão essencialmente 2 coisas: - inclusive para as que não estavam diretamente atingidas (os Krikati, porém, tinham a Eletronorte...) -
1. Os territórios indígenas começam a ficar ao alcance físico-geográfico de qualquer grupo social e não somente das sociedades indígenas. De madeireiros a fazendeiro, de lavrador a criador de gado, de garimpeiro a usineiros todos começam a ter acesso ao patrimônio indígena sem encontrar maiores resistências. As terras indígenas deixam de ser territórios indígenas exclusivos e espaços de reprodução biológica e cultural para se tornarem quase um patrimônio público a ser repartido e usufruído. A terra-mãe (alguém fala ainda em terra-mãe?) outrora respeitada e adorada, com seus lugares sagrados alimentadores de mitos e histórias, aquela terra-mãe fonte de identidade renovada começa se tornar objeto de cobiça, de troca, de ganância, fonte de lucro para uns e para outros. O estado que vinha facilitando a implementação da Ferrovia e de tudo o que ela significava conhecia de antemão suas conseqüências e vislumbrou nisso a melhor oportunidade para tentar desmantelar ou bagunçar significativamente não somente a própria concepção indígena de terra-mãe, mas a própria estrutura social e política das sociedades indígenas. Implodiu, concretamente, a idéia e a prática de liderança indígena: muitos chefes e poucos líderes, muitos caciques e poucos índios para segui-los. O mesmo processo produziu o surgimento de elites indígenas abastadas, ricas, poderosas, em detrimento da grande maioria esquecida, faminta e desassistida. Decretou-se o fim de inúmeros “tabus” sexuais e alimentares, o desaparecimento quase completo da pajelança indígena....
2. A Ferrovia Carajás, vista aqui não somente como mero projeto econômico autoritário, mas também na sua dimensão simbólica, vem significando, desde a sua implantação, para várias sociedades indígenas a monetarização das relações sociais, ou seja, tudo devia ser calculado em dinheiro, em moeda viva. Tudo, até o imaterial, tem valor econômico, pode ser vendido ou comprado. Os 13 milhões de dólares que na época a Vale reservou, supostamente para criar infra-estruturas nas aldeias e demarcar áreas indígenas, na realidade, foram utilizados para seduzir e corromper funcionários e lideranças indígenas e minar, principalmente, o sistema indígena que estava baseado ainda na troca, na reciprocidade, na distribuição equânime. Os projetos agrícolas eram produzidos ignorando a lógica indígena e impostos ás comunidades indígenas serviram somente para mostrar à sociedade não indígena que os índios não sabem produzir de forma moderna e inoculando no imaginário indígena a idéia de que só com dinheiro na mão é possível fazer tudo. Os fracassos dos projetos agrícolas não serviram para repensar e criar novos modelos de produção indígena diferenciados, adequados ás suas aspirações e possibilidades. Ainda hoje a Vale, sem algum critério, repassa meio milhão de Reais por ano à FUNAI do MA para esses tipos de projetos. Cito aqui a Ferrovia como meio e como símbolo disso, mas é claro que o próprio Estado com a introdução de benefícios e aposentadorias expressos somente “em dinheiro” (quando se podia criar outras formas de benefícios!), de empregos remunerados, de bolsas disso e daquilo, dos projetos associativos, contribuiu para reforçar a prática monetarista das relações sociais e culturais. Aqui não trata de esconder o dinheiro aos índios ou privá-los de direitos. Trata-se de ter introduzido o “papel-moeda e o cartão magnético” nas relações sociais indígenas de forma abrupta, indiscriminada, sem critérios, de forma atordoante e, principalmente, sem ter concedido um tempo hábil para os índios re-significar “aquele papel” com o qual podem comprar TUDO o que quiserem.
Todas essas mudanças repercutem no modo de conceber o território indígena e no modo de administrá-lo. Fica claro que o Estado-Ibama da forma como está estruturado é incapaz, e sempre o será, de garantir a integridade dos territórios indígena até porque o próprio estado tem o rosto dos agressores e invasores desses territórios. As operações especiais oficiais, de caráter tópico, têm valor instantâneo, mas não surtem efeito a médio prazo. A economia dos povoados próximos dos territórios indígenas se sustenta ainda nas atividades ilegais de extração de madeira das terras indígenas... Fechar as serrarias de uma cidade como Buriticupu, por exemplo, significa parar e engessar a economia local. Nesse sentido, temos que repensar o modelo de desenvolvimento diferenciado e multiforme não somente para as sociedades indígenas, mas também para os não indígenas para que deixem de pressionar permanentemente os territórios indígenas. Ao mesmo tempo, proponho que a grana que é investida (desperdiçada!) nas mobilizações da Polícia Federal, Funai, Ibama, com fretes de carros e diárias polpudas que não surtem efeitos práticos, seja investida nas melhorias de caminhos-estradas internos aos territórios para permitir o deslocamento rápido e permanente de grupos de defesa e fiscalização indígena de caráter coletivo. Enquanto as sociedades indígenas não perceberem que elas e somente elas podem salvaguardar o que é delas (se ainda o consideram tal!) nada irá impedir que a sangria ambiental continue nos antigos sacrários indígenas no Maranhão. Um capítulo a parte mereceriam os "novos territórios urbanos indígenas" que estão nascendo nas cidades de Barra do Corda, Grajaú, Arame....