Como apagar da nossa memória catequética imagens e conteúdos ligados a três personagens divinos representados por um ‘senhor de barba e cabelos brancos cumpridos’ dominando sobre os outros dois: um jovem de barba e cabelos cumpridos tendo uma coroa real na cabeça a segurar um globo, e uma pomba de asas abertas quase a abraçar os dois? Diziam-nos que era a Santíssima Trindade, pois era formada pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Acrescentavam os nossos dedicados catequistas que os três, embora sendo três ‘pessoas’ (inclusive a pomba!), eram, na realidade, um Deus somente. Mais tarde, na teologia dogmática, com professores mais sofisticados, nos instruíam para compreender que o Filho Jesus, - o único do qual possuímos dados históricos, - procede do Pai, possui a sua mesma substância, é gerado, mas não criado... Quanto ao Espírito Santo, também Ele Deus, procede do Pai e do Filho, e que como os dois é ‘adorado e glorificado’....
Evidentemente não estou fazendo gracinhas a respeito de tudo isso. Queria somente enfatizar como é um tanto complicado e como não é nada didático apresentar dessa forma a ‘ícone/realidade’ da Santíssima Trindade. E mais, como é difícil se identificar com aquilo que ela (a Trindade) poderia manifestar no nosso cotidiano. Lembro que quando questionávamos o sentido e a lógica de ‘três pessoas e um só Deus’ respondiam-nos que isso era um mistério, e que diante dele só cabia aceitar e contemplar...não compreender!
É inegável que nós queremos sim, compreender, pelo menos lá onde é possível. E sem negar a dimensão de fé e mistério que toda realidade possui. Saber, por exemplo, que muitas dessas formulações que tentam explicar a relação Pai-Filho-Espírito Santo são frutos de concílios e disputas teológicas que têm como pano de fundo disputas por influências políticas territoriais, patrocínios e pressões imperiais para controlar, mediante símbolos e instituições religiosas, mentes, culturas e relações sociais. Além disso, para complicar, ao expressar ‘verdades de fé’ utilizavam-se categorias e conceitos filosóficos próprios da cultura hegemônica da época. Isto tornava uma determinada formulação teológica um pouco mais compreensível para aquela cultura, mas não para as demais...inclusive para as nossas, hoje!
De lá para cá continuamos a professar o mesmo ‘credo’, com a mesma linguagem conceitual. Ninguém se atreve a fazer uma hermenêutica e/ou uma reinterpretação e readequação daquelas fórmulas, imaginando que ao fazer isto estaria não somente ‘ferindo’ o ‘dogma trinitário’ já consagrado e inquestionável, mas poderia ‘atacar’ também a ‘imagem-essência’ do próprio Deus que, diga-se de passagem, ‘é o totalmente Outro’, ‘Aquele que não se deixa a conhecer’, ''cujo nome sequer pode ser pronunciado....'
Celebrar a Santíssima Trindade significa, para mim, celebrar a integração entre o divino e o humano, superando toda tentativa de separação entre as duas dimensões. O divino é tal porque profundamente humano e vice-versa. Os humanos, de quem Jesus de Nazaré foi a expressão máxima e mais perfeita, são ‘o espelho de Deus’. Embora imperfeitos, não deixam de manifestar a grandeza e a humanidade de um Ser que está dentro e no meio de nós. Não se trata de dar um rosto ou uma essência clara e distinta a um Ser que por sua natureza não se deixa a conhecer, e que não se deixa enjaular nas nossas categorias humanas.
Trata-se de compreender e, sobretudo, de vivenciar a comunhão que deve existir entre os seres vivos criados e criadores, sacramentos/sinais do sopro/espírito que gera vida, e que aponta para uma comunhão mais ampla, infinita, como são infinitos os braços acolhedores de um Deus que não possui limites.
Ferir, machucar, humilhar e matar, por exemplo, os humanos e as suas condições de vida, - a terra, as águas, o ar, os seres vivos em geral, - estaríamos ameaçando o ‘pneuma/espírito’ de Deus que continua dando vida àqueles que têm o poder de manifestá-Lo!