Voltei de mais uma rodada coordenando oficinas pedagógicas em algumas aldeias do povo Guajajara em Grajaú e Arame. Muitos professores acabavam de voltar de um curso de ‘formação continuada’ oferecido pelo Estado com recursos do Governo Federal. São tentativas, às vezes louváveis, às vezes patéticas, de mostrar serviço e de tirar do marasmo em que se encontra desde o seu nascimento a educação escolar indígena no Maranhão. Pode-se dizer, hoje, sem sombras de dúvida que nesse setor não existe impasse, existe uma clara falência institucional.
Tudo teria que ser recriado e reinventado ou tomar a decisão corajosa e necessária de fechar (literalmente!) as portas por alguns anos até se chegar a um consenso mínimo sobre alguns pressupostos. Uma pausa para um grande entendimento, um pacto social entre indígenas e estado. Na situação atual, o Estado do Maranhão finge que administra a questão da educação escolar indígena, e os professores indígenas e não, - que supostamente devem ‘dar aula’ - fingem que o estão fazendo. Nem um, nem outro parecem não perceber que estão alimentando e ampliando o vórtice da displicência civil, da irresponsabilidade social e da hipocrisia política.
Hoje o nosso Estado é considerado pela equipe do MEC, na questão da educação escolar indígena, inviável. É, de longe, na Federação, o Estado mais caótico e displicente. O próprio MEC só assegura o mínimo porque ele também, por sua vez, é cobrado. Afinal, onde estão os pontos de estrangulamento que estariam inviabilizando a educação escolar indígena no Estado? A seguir, coloco só alguns que considero centrais e determinantes, e cuja solução poderia se constituir num reinício de uma política educacional junto aos povos indígenas que assegure não somente o funcionamento formal, mas produza efetivamente o que um povo indígena espera de uma ‘educação formal’ que ele não criou....mas que no fundo deseja.
1. Não há como negar que a educação escolar indígena no Estado se deu de forma abrupta, vertical e por decreto. Não houve desde o início, por parte do Estado, formas de diálogo e/ou tentativas de conhecer as expectativas e os desejos que os povos indígenas esperavam das ‘escolas’ - genericamente entendidas - que se implantavam. Acostumados a receber e a engolir tudo o que vinha do alto os indígenas não tinham porque recusar...mais essa!Perguntamo-nos por que nunca se fez uma tentativa, embora parcial e circunstancial, de intuir o sentido que os indígenas teriam dado ás formas escolares que se pretendia implantar? Nem um estudo de impacto, nem um levantamento, nem uma produção antropológica sobre a realidade educacional que por decreto se estava iniciando!
2. Essas formas desrespeitosas de ‘invadir’ práticas e significados alheios, pois era isso que estava acontecendo, manifestam que o ranço colonialista se reproduz (ad intra) mediante ‘os colonizados de outrora’ (os administradores do estado nacional). O colonizado de outrora, vítima do império colonizador português, se torna, agora, colonizador, perpetuando em suas vítimas o conjunto de práticas e significações que o subjugavam, embora sob uma roupagem verbal e conceitual adequada aos tempos atuais do ‘politicamente correto’. Surge, assim, - dentro de uma violência simbólica sistêmica praticada pelo Estado, - os conceitos da educação escolar ‘diferenciada, específica, bilíngüe e intercultural’. São formas utilizadas, afinal, para amenizar e tornar mais apetecível às vítimas a violência simbólica embutida. Aqui não se trata de negar aos povos indígenas aquelas ferramentas que hoje são consideradas essenciais para a sua ‘sobrevivência política e para a sua plena realização étnica, ou seja, saber ler, escrever, produzir e sistematizar conhecimentos, mas favorecer e facilitar para que sejam ‘os indígenas’ a definir os modelos, a metodologia, os tempos e os conteúdos de seus próprios processos educacionais. Isto requer, sabidamente, dedicação e paciência histórica, o que não existe num estado colonial que tem pressa em implantar uma cidadania monocultural e achatada.
3. Na concepção e prática indígena em que tudo está interligado e interconectado, integrado de forma radical, a educação escolar indígena pensada e administrada pelo estado pode levar à radical desintegração, desconexão, fragmentação e ‘disciplinarização’ do saber. A escola tal como é concretizada pelo estado colonial nas aldeias indígenas exacerba sobremaneira o parcelamento das relações, do saber e dos significados, criando artificialmente duas realidades separadas: o da escola e o do cotidiano em que este não encontra continuidade na escola. Esta, no caso, deveria retomar e potencializar o cotidiano que é alimentado por sonhos, projetos, histórias, relações humanas, religiosas, sociais tensas e pacíficas ao mesmo tempo, conhecimento acumulado, embora não registrado sob categorias cristalizadas.
4. A introdução da educação formal assalariada (embora sempre com salários atrasados e defasados) nas aldeias produziu os mesmos efeitos que os produzidos pelas aposentadorias, o bolsa-família, a terceirização da assistência à saúde com envolvimento de indígenas, ou seja, uma corrida por postos de trabalho e cargos em diretorias de associações... Não que o dinheiro ou determinadas formas de organização não propriamente indígena devessem ser realidades permanentemente desconhecidas aos indígenas, mas a sua compulsiva inserção em formas organizativas hierarquizadas de um lado e a distribuição monetária com caráter fixo (mensal ou não), individual para determinadas pessoas que supostamente exercem certas funções, - ignorando os esquemas e os sistemas de organização familiar existentes entre os vários povos indígenas na hora de sua apropriação e distribuição interna, - associada, ao mesmo tempo, à total desconsideração do conjunto dos ‘sentidos’ indígenas acerca do dinheiro dos brancos fez com que o ‘dar aula’, por exemplo, se tornasse um mero detalhe. Ao passo que a luta por salários, concurso, dinheiro para transporte e merenda se tornam a verdadeira bandeira hoje na educação escolar indígena, pois o Estado é parte integral e alimentador do grande esquema!
5. As evidentes (aparentes) melhorias de alguns anos para cá na educação escolar indígena em termos de maior universalização do ensino entre os indígenas, do seu acesso, expansão das construções de prédios escolares (embora todos de péssima qualidade) etc. e, talvez, uma maior apropriação por parte de muitos indígenas do que são hoje os pilares do ‘funcionamento da sociedade’ não indígena, não fazem jus e não amenizam as carências/omissões existentes e o despreparo institucional com que o Estado lida com essa questão estratégica e conflituosa ao mesmo tempo.
Estamos em clima de Conferência Nacional da Educação Escolar Indígena. Ela nada irá acrescentar se alguns pressupostos e engodos não forem enfrentados e solucionados. Nada de mais sensato do que propor ao Estado do Maranhão que proporcione e crie as condições políticas para um grande ‘pacto para uma educação escolar indígena’ merecedora desse nome. Nesse grande entendimento mediado pelo Ministério Público Federal as partes terão que ‘abrir o jogo’ assumir compromissos e respeitá-los. Para chegar até lá, entretanto, é preciso dedicar tempo, estudo, pesquisa para conhecer e preparar o terreno para que os indígenas elaborem o seu próprio ‘projeto de vida’ e digam para que querem ou não uma determinada educação para seus filhos, e em vista de qual futuro. Tudo isso, todavia, parece não ser minimamente claro nem para um (estado) e nem para o outro (indígena)!