segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Tradicionalistas pós modernos!



Os “tradicionalistas” são modernistas. Ou, melhor, plenamente pós-modernos: uma condição marcada pela superação das grandes narrativas e pelo próprio consenso sobre a existência de uma cultura. O comentário é de Iacopo Scaramuzzi, vaticanista italiano, em artigo publicado na revista Jesus, de fevereiro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A liturgia, como se sabe, desperta sentimentos veementes, senso de pertencimento, ciúmes. Experiência totalizante, espiritual e física ao mesmo tempo, ela toca as cordas da identidade, a tal ponto que alguns a perceberem como uma dimensão inegociável. “Sabe qual é a diferença entre um liturgista e um terrorista?”, perguntou há algum tempo o primaz anglicano Justin Welby ao Papa Francisco: “Você pode negociar com o terrorista...”. Bergoglio riu com gosto, sabendo o quanto a piada era verdadeira.

Reverter a decisão de Bento XVI de liberalizar o missal antigo trouxe a ele algumas das críticas mais ferozes ao seu pontificado. Não é de se admirar que, em tempos de mudanças epocais, haja quem olhe para o passado agarrando-se a ele como um náufrago aos destroços de um navio, que em um mundo desestruturado a identidade monolítica seja uma miragem. No entanto, o paradoxo intrínseco chama a atenção. Porque os “tradicionalistas” irados com a Traditionis custodes sustentam que defendem a tradição, precisamente, mas contestando um papa e um Concílio, como subversivos quaisquer.

Eles avaliam a própria consciência como superior à norma, como qualquer anarquista individualista. Eles promovem uma cultura da identidade que não tem nada a invejar aos estudiosos dos estudos culturais das universidades estadunidenses mais liberais. São, em suma, modernistas. Ou, melhor, plenamente pós-modernos: uma condição marcada pela superação das grandes narrativas e pelo próprio consenso sobre a existência de uma cultura.

É típico das sociedades secularizadas, nas quais até a religião, como bem observou o islamólogo Olivier Roy, é “desculturada”, um conteúdo prêt-à-porter descontextualizado e incandescente a ser usado em um mosaico que não tem mais um desenho unívoco. Em que a Tradição, com T maiúsculo, obviamente, é um dos retalhos do patchwork.

A história julgará a Igreja com severidade pelo seu tratamento às pessoas LGBTQ. Artigo de Daniel Horan

 A Igreja tem vergonha e remorso legítimos por algumas coisas que a instituição fez, opiniões que adotou e ensinamentos que ministrou ao longo dos séculos. Isso inclui as Cruzadas e a sua islamofobia adjacente, a justificação da escravidão, a cumplicidade no colonialismo, a proibição da liberdade religiosa, a imagem e o tratamento das mulheres, e a sua história de antissemitismo, entre outros. Ao longo do tempo, passamos a reconhecer que essas atitudes e comportamentos são indefensáveis. E eu acredito que, com o tempo, a história também julgará a discriminação e o tratamento dado às pessoas LGBTQ por parte da Igreja e de muitos de seus membros como igualmente repreensíveis.

Além do desenvolvimento do ensino sobre a liberdade religiosa, lembro-me de outra situação do século XVI, a do frade dominicano Bartolomé de las Casas e da sua defesa da dignidade e do valor inerentes aos povos originários do Hemisfério Ocidental, contra uma argumento teológico e civil predominante que rejeitava os direitos das comunidades indígenas na época da colonização espanhola do chamado “Novo Mundo”. A lógica colonial da época, moldada por uma antropologia aristotélico-tomista defendida por Sepúlveda e outros, sustentava a hipótese de Aristóteles de que certos povos são “escravos naturais” e que, na realidade, seria do seu interesse serem escravizados, por causa da sua suposta inferioridade inerente. Muitos milhares de indivíduos foram abusados e assassinados como resultado disso, tanto em nome da Coroa quanto em nome de Cristo.

Representando a clara visão minoritária da época, Las Casas rejeitava a premissa dos “escravos naturais” e a inferioridade inerente. Ao contrário de Sepúlveda, que nunca havia visitado o “Novo Mundo”, Las Casas falava a partir da experiência vivida e com conhecimento da realidade das comunidades cuja identidade, valor e direitos estavam sendo debatidos na Europa. Para muitas pessoas, especialmente as lideranças civis e religiosas na Espanha, o argumento era meramente teórico. Mas Las Casas entendia por experiência própria o que os defensores dos maus tratos aos povos nativos não podiam imaginar: aquelas mulheres e homens indígenas, cujas vidas e modos pareciam estranhos e “incivilizados” aos colonizadores e aos teólogos continentais, eram inerentemente bons, merecedores de igual dignidade e respeito, e deviam ser reconhecidos como filhos de Deus. Os maus-tratos, a escravidão e o assassinato contra eles não podiam ser justificados e eram pecaminosos. Séculos depois, com a clareza moral e histórica que vem com o tempo, nenhum cristão poderia justificar a posição de Sepúlveda e da Igreja da sua época. Menciono esse caso histórico não porque eu deseje fazer uma falsa equivalência entre a escravidão, os maus-tratos e o assassinatos dos povos indígenas no século XVI e a discriminação e o tratamento a indivíduos LGBTQ hoje.

No entanto, acredito que há pelo menos três pontos dignos de nota para o nosso tempo e para este caso contemporâneo. Primeiro, o ensino da Igreja se desenvolve e, de fato, muda. Isso não ocorre com frequência, mas o ensino mudou e deve mudar quando percebemos que a remota possibilidade de erro em um ensino não infalível é descoberta. Em segundo lugar, pode ser difícil, no atual momento histórico do debate, entender qual resposta está correta. Devemos resistir a manter o status quo simplesmente porque “sempre foi assim”. É bem possível que a forma como tem sido esteja correta e deva ser mantida, mas também é muito provável que haja algo seriamente errado que precise mudar. Mas a única maneira de sabermos a resposta certa nesse caso é nos engajando em pesquisas teológicas e em diálogos que levem a sério as experiências dos indivíduos LGBTQ de uma maneira análoga à seriedade com que Las Casas levou as experiências dos indígenas americanos. Enquanto isso, todas as pessoas devem ser libertadas da discriminação com base na orientação sexual ou de gênero nas instituições católicas e nas comunidades religiosas. Em terceiro lugar, há uma longa e crescente lista de mulheres e homens que foram demitidos de instituições católicas por causa de seu status ou relacionamentos LGBTQ. Embora possa ser difícil para algumas pessoas verem isso agora, especialmente aquelas em posições de poder e autoridade eclesiásticos, acredito que a história julgará a Igreja com severidade pelo modo como suas instituições e lideranças trataram os indivíduos LGBTQ.

Não apenas a história julgará o tratamento passado e atual da igreja em relação às pessoas LGBTQ, mas, mais importante, Deus também está julgando a Igreja.


 

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

A máquina do mundo (pós-Drummond), 2 - por Romério Rômulo

 

E como eu não coubesse na montanha

de tanto entardecer aqui no alto

que sobra em reticências de navio


E como eu não soubesse de um braço

que no desvio da vida me coubesse

em tão mortais canções sem voz e pátria


E como tudo aqui só renascesse

nuns rios podres e sem águas rasas

eu pude me rever sem preconceitos.


Olhei meu antro, me calei de medo

como em quinhões de pedra eu me comesse

em cada gomo e me arrebentasse


Sobraram duras missões em minhas mãos

cobraram ouros que paguei sem medo

e me retive sempre em olhar pra nada.


Romério Rômulo


terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

O golpe que o Bozo está preparando, com ou sem exército - Por Luís Nassif

 Reportagem da BBC Brasil, mostrou um aumento de 33% na importação de armas em 2021, em relação a 2020. Não apenas isso. A importação de revólveres e pistolas aumentou 12% – 119.147 contra 105.912 de 2020. Já fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras tiveram aumento de 574%: 8.160 armas contra 1.211 de 2020.

O Exército – a quem caberia o controle dos armamentos – respondeu à reportagem não ter estudos sobre as causas do aumento. E garantiu que vem fazendo o rastreio e controle de armas e munições, “de acordo com a legislação”. Ora, Bolsonaro mudou a legislação – em iniciativa sancionada pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro -, praticamente acabando com o rastreamento. Significa que se, amanhã, algum soldado ou policial for assassinato por um miliciano, não haverá condições de saber por onde entraram as munições. A importação de armas e munições deveria ser controlada pelo Comando Logístico do Exército Brasileiro, através da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. Teoricamente, deveria envolver procedimentos antes do embarque  (emissão do Certificado Internacional de Importação (CII). Depois, a conferência física da mercadoria e, finalmente o desembaraço, a emissão da Guia de Tráfego, para o material ser transportado até o armazém do importador. E o Exército nada sabe e nada diz. 

Se o Exército quiser mais informações, poderá consultar uma ferramenta tecnológica inédita: o Google. Veria, por exemplo, que um traficante de armas, chamado de Bala 40, valeu-se de registros de colecionador para adquirir armas e munições à maior facção criminosa do Rio de Janeiro. Desde o primeiro mês do governo Bolsonaro, o GGN vem denunciando a montagem dessas milícias armadas – e que, certamente, serão ameaças reais no período eleitoral, especialmente entre as eleições e a posse, se Bolsonaro for derrotado.