Muitos requerimentos de investigação, cartas de denúncia e de pedidos de intervenção e de segurança vêm sendo publicados, ultimamente, a respeito de mais uma onda de assassinatos tendo como alvo, de modo especial, indígenas Guajajara da Terra Arariboia, o segundo maior território indígena do Maranhão. Muitos se perguntam o que, de fato, está acontecendo na região, e porque estão ocorrendo tantos homicídios em tão breve espaço de tempo. Talvez o grande público esteja um tanto desatento com a realidade indígena nacional e local, e não lembre que desde há vários anos inúmeros indígenas Guajajara das Terras Canabrava e Arariboia são sistematicamente atropelados, espancados, ameaçados, explorados e assassinados, embora em alguns determinados momentos possa ter havido uma certa descontinuidade.
Analisando sem pretensões as três mortes de Guajajara e de um funcionário ligado a eles, e mais duas tentativas de assassinato no curto prazo de duas semanas, no eixo Grajaú-Arame-Amarante, - municípios em que incidem as terras indígenas, - há algo que chama a atenção. Paradoxalmente, esses homicídios e ameaças à integridade física dos indígenas parecem não seguir uma determinada lógica comum. A ação criminosa parece não se pautar pelo ‘princípio da seletividade’ em que são alvejadas, por exemplo, notórias lideranças indígenas que, supostamente, estariam a incomodar interesses locais. As vítimas não são líderes conhecidos pela mídia. São jovens, adultos, pais de famílias, gente comum, anônimos. Para os assassinos, essas vidas ceifadas parecem ter como única culpa o fato de serem, simplesmente, indígenas Guajajara! E, mesmo supondo que possa existir o movente da ‘vingança’ como justificativa radical de solucionar eventuais conflitos interpessoais, jamais se fez recurso à liquidação física pura e simples de um suposto rival com tamanha brutalidade e leviandade. Pelas informações que se possui até o presente momento é difícil identificar um ‘modus operandi’ comum nos diferentes homicídios ocorridos ao longo dessas semanas.
Uma coisa, contudo, parece saltar aos olhos de muitos observadores: nunca foi tão fácil matar um índio e não ser preso por causa disso. É verdade que o sistema policial regional nunca mostrou interesse em investigar com competência para descobrir e punir o assassinato de um indígena. Por outro lado, nunca como agora têm surgido circunstâncias sociais e políticas tragicamente propícias para que os ‘caçadores de índio’ intensificassem seus ataques pessoais e de grupo. Nunca como hoje esses ‘grupos velados’, aparentemente sem nome e sem identidade, se sentiram tão politicamente respaldados para levar a cabo seus intentos racistas, exterminadores e antiindígenas. Não se pode excluir a hipótese, também, de que esses homicídios são terrificantes sinalizações e verdadeiras intimidações dirigidas às lideranças indígenas locais que estão se opondo a toda tentativa de comercialização de madeira nobre, de possibilidade de investimentos do agronegócio em terra indígena e outras forma de ocupação ilegal do território. Uma espécie de brutal alerta para que as lideranças indígenas e os ‘guardiões da floresta’ recuem e se sintam coagidos a não mais praticar ações de defesa e de monitoramento.
A execução desses crimes de ódio racial e de intimidação deixam pistas que poderiam ser razoavelmente rastreadas. Contudo, a má vontade, as tácitas cumplicidades, as inconsistentes alegações de falta de incompetência jurídica, e a inexistência de fortes pressões locais e regionais sobre aqueles que têm o dever de investigar faz com que, após a comoção do momento, tudo volte à terrificante ‘normalidade’. Finalmente, poder-se-ia listar um conjunto de medidas a serem tomadas em diferentes níveis, - como, por exemplo, a federalização desses delitos, - ‘para que fatos como esses nunca mais voltem a se repetir’. Entretanto, sabemos quão árduo é o caminho que educa ao respeito do ‘outro’, e quão desafiadora é a trilha que nos leva a venerar a sacralidade dos corpos e dos solos, dos igarapés e das florestas encantadas. Talvez tenha chegado a hora de não mais reprimir indignação e raiva; de não mais se conformar com a publicação de alguma polida manifestação de repúdio e de solidariedade moral com tantas vítimas indígenas; de cessar, enfim, de redigir cartas-denúncia e abaixo-assinados dirigidos aos imutáveis ‘órgãos competentes’.
Talvez tenha chegado a hora de neutralizar de mil maneiras, com firmeza, os prepotentes e os arrogantes, os racistas e os preconceituosos. Ainda podemos reiniciar de forma original e ousada, novas e singelas formas de convivência, de acolhimento, de colaboração, e de produção com comunidades indígenas, com pessoas e diferentes grupos sociais que vivem no nosso mesmo espaço social. Talvez, nesses anos de trevas tenhamos nos esquecidos que essas pessoas-comunidades que interagem conosco de múltiplas formas continuam sendo irmãos, parceiros e cidadãos da nossa mesma e única ‘terra-pátria’!