Tradicionalmente sempre houve dentro da igreja a tendência em idealizar a ‘Família de Nazaré’. Apresentada frequentemente como modelo de vivência familiar, a família de Nazaré foi despida de toda concretude histórica. Foi, abusivamente, sacralizada, distanciando-a, assim, da nossa realidade comum, cotidiana e normal. A conseqüência disso foi a assunção de concepções e práticas históricas meramente moralistas e intimistas da família. O trecho evangélico de Lucas escolhido para ilustrar o comportamento da família nuclear que educou Jesus nos revela, ao contrário, as normais tensões e incompreensões que se dão numa família ‘normal’. Evidentemente, Lucas não devia possuir grandes informações sobre a infância de Jesus. Nem era seu interesse resgatar historicamente as relações familiares que marcaram a vida de Jesus na sua primeira infância.
Objetivo de Lucas era outro: mostrar aos seus interlocutores, leitores e discípulos que Jesus desde que se tornou ‘religiosamente adulto’ (aos 12 anos!) já tinha consciência da sua missão e reivindicou logo a sua autonomia perante formas de ‘condicionamentos e obrigações familiares’. Ao mesmo tempo queria mostrar que Jesus, ao cumprir essa missão, encontrou logo sinais de incompreensão dentro de sua própria família de sangue. Lucas, na verdade, projeta no passado (antecipa) as incompreensões que o Jesus adulto, já missionário do Pai, encontrou junto à sua família extensa. A prova de que o trecho evangélico hodierno não é um relato ‘histórico’ e sim uma catequese, é o fato que um casal ‘normal’ –e com maior razão, o casal de Nazaré – dificilmente teria se esquecido de procurar em Jerusalém o seu único filho dando fé que não estava como eles somente após um dia de viagem! Paradoxalmente voltam à capital e acham Jesus depois de 3 dias (número evidentemente simbólico) no templo!
Na realidade, Lucas descreve a prática de um Jesus já adulto, autônomo na sua missão, ocupado em levar adiante o seu projeto de evangelização ‘para além das preocupações estritamente familiares’. O trecho revela de forma explícita as tensões e os conflitos que Jesus teve para com a sua ‘família extensa’, a família biológica e de pertença religiosa em Nazaré da qual se separou por ter manifestado visões e práticas religiosas divergentes, encontrando nisso rejeição interna. A conseqüência histórica disso foi a decisão de Jesus de mudar residência: ir a Cafarnaum e conviver com os ‘impuros’ pescadores e mendigos da cidade. Isto fez com que Jesus fosse considerado pelos seus próprios parentes um ‘louco’.
Lucas, todavia, quer nos mostrar que Jesus já apontava a superação de uma concepção demasiadamente biológica ou étnica de ‘família’ ao definir como ‘sua mãe, irmãos, primos, etc. todos aqueles que escutam a palavra Dele e a põem em prática’! Jesus, sem rejeitar ou desconhecer a importância dos afetos familiares proporcionados por quem o havia educado e formado – é só constatar o papel insubstituível de Maria - aponta para uma prática familiar universalista: a missão do discípulo de Jesus é construir a grande família planetária, para além das relações de sangue, genéticas, nacionais, partidárias.... Para Jesus ‘amar o nosso próximo’ (ou seja, os nossos familiares e co-nacionais) como a nós mesmos’ significa estender infinitamente os limites do nosso amor e respeito amando também aqueles que têm compaixão dos ‘assaltados e feridos’ da vida - como o samaritano- e, principalmente, ‘amar os inimigos’!
Resgatar as concepções/práticas que Jesus tinha de sua própria família deveria nos ajudar a não cairmos na armadilha do fácil julgamento e condenação de quantos não são ‘devidamente casados’, ‘ de quantos não obedecem a seus pais’ (só por serem pais biológicos!), de ‘quantos divorciaram e construíram uma outra família, sem necessariamente rejeitar a primeira’....e assim por diante. Sem abrir mão de valores como a dedicação, o amor, as manifestações de carinho, os cuidados especiais e as proteções para com os membros de uma mesma família biológica (independentemente da sua estrutura cultural ou jurídica), Jesus nos propõe o desafio de irmos sempre mais além... e aceitar o desafio de construir a ‘grande família universal’. Talvez, justamente pelo fato de termos sido amados e protegidos desde a nossa infância pelos nossos pais de sangue tenhamos mais segurança em reproduzir e multiplicar laços de fraternidade, paternidade e maternidade sócio-afetiva para com todos aqueles ‘seres humanos’ que nunca fizeram a experiência de serem amados por um pai ou uma mãe ou irmãos biológicos!