Conheci Eusébio Ka’apor numa manhã de segunda feira em 1984. Não lembro o mês. Fazia pouco mais de um ano que me encontrava na cidade de Santa Luzia do Paruá. Ainda não era município. O povoado situado no quilômetro 114 da BR 316 pertencia à época ao município de Turiaçu. Naquela manhã o técnico de enfermagem de Ximborendá, aldeia de Eusébio, passou para irmos juntos à aldeia. Com ele estavam outros três índios, um deles o adolescente Eusébio. Subimos num caminhão madeireiro até a localidade chamada Lajes, depois do Centro do Martinho. Tínhamos pouco menos de uma légua a percorrer, a pé, por uma floresta verdejante, com árvores enormes, até chegar á aldeia. Eu levava uma mochila, e os demais quase nada. Só havia um galão de óleo diesel para o gerador de energia, que em sistema de rodízio passava de mão em mão, a cada 300 metros. Chamou logo a minha atenção o fato que todos nós nos revezávamos no transporte do galão bastante pesado, menos o nosso amigo Eusébio. Brincando perguntei ao técnico de enfermagem, em voz baixa, por que ele não ajudava. Ele me respondeu que não podia, pois acabava de nascer o primeiro filho dele e estava de resguardo. Não podia trabalhar, nem levantar pesos. O mesmo aconteceu no dia seguinte quando eu estava rachando lenha para o nosso fogão e lá estava ele me olhando. Com uma pitada de malícia perguntei a um imóvel Eusébio: ‘Fala a verdade, não pode mesmo me ajudar a rachar essa lenha? E o que iria acontecer se você fizer esse pequeno e leve trabalho?’ Eusébio com toda tranqüilidade e timidez me respondeu: ‘O meu filho poderia adoecer e até morrer’. Eusébio, contudo, tinha sido prometido esposo a uma jovem que ele ainda não podia casar, por ser muito nova.
Só depois de um ano, quando ela teve as primeiras menstruações e rasparam a sua cabeça, Eusébio a levou consigo. Começou a formar a sua família com uma esposa dedicada, inteligente e participativa, o que não era muito comum à época. Conheci naqueles dias de permanência na aldeia os pais de Eusébio, principalmente o pai, o grande cacique e pajé Zequinha. Pessoa afável, alegre e grande conversador, próprio de um cacique Ka’apor de verdade. Só um pai assim para educar e preparar o filho para ser cacique. Embora reservado, de pouca fala, Eusébio sempre foi muito estimado por ser uma pessoa sempre presente na aldeia. Sem nunca tirava o corpo fora, nem se omitia de suas responsabilidades. Santos não existem, bem sabemos. Ele também teve suas contradições, é verdade, mas o bonito numa trajetória de vida é estar sempre aberto a ouvir e a acolher as críticas e os alertas que as pessoas nos dirigem. Ele teve a grandeza de ter percebido, em tempo, o estrago que a venda da madeira estava fazendo para si e para os demais parentes, e de ter sabido resgatar ‘o autêntico Ka’apor’ (Ka’apor te) que sempre esteve dentro dele e do seu povo. A história dele começou a ser reescrita a partir desse momento. Fazia mais de dois anos que não o via, mas o acompanhava através das informações de amigos. O espírito do pai Zequinha que havia voltado a viver nele de forma inédita motivando-o para a luta, mais acirrada e mais perigosa, veio agora para chamá-lo, definitivamente, para estar com ele. Mas sem abandonar os ‘moradores da mata’ (Ka’a-por) para que ao manter viva a mãe terra e a floresta não percam jamais a identidade e a alegria de viver.