sábado, 28 de março de 2009

5º domingo de quaresma: saber 'morrer' para poder viver, ou seja, a lição do grão de trigo (Jo.12,20-33)

Até alguns anos atrás os estudiosos da mente humana qualificavam ‘inteligente’ uma pessoa que possuía capacidade de especular, calcular e racionalizar. É, genericamente falando, a chamada inteligência racional. Hoje, parece haver consenso que o grande desafio da pessoa é possuir a inteligência emocional, sem excluir a outra, a racional. A inteligência emocional se caracteriza, em primeiro lugar, pela capacidade que a pessoa tem em saber lidar com conflitos, tensões, frustrações, decepções e pressões de todo tipo.
Saber lidar com isso não significa ser imune a sentimentos de angústia, escuridão e sofrimento interior que delas, naturalmente, derivam. É, ao contrário, possuir a capacidade e a habilidade em saber encarar e integrar a ‘provação emocional’ sem fugir e sem reprimir. Ver nisso não algo escandaloso, e sim uma dimensão essencial que faz parte do processo de crescimento/maturidade do ser humano. Observa-se como está crescendo hoje em dia, de forma assustadora a adoção e o uso de drogas por parte de um número sempre maior de pessoas como meio de amenizar ou ludibriar o sentimento de angústia que experimentam ao saber que devem tomar decisões, optar e escolher, ser pressionados ou manter níveis de trabalho estressante. Tal atitude não deixa de ser uma fuga-refúgio que não ajuda não somente a cultivar a inteligência emocional exigida para tais situações, mas deixa de ‘viver a vida’ real com suas alegrias e dores.
Alguém se perguntará qual o sentido dessas reflexões preliminares à luz do evangelho desse domingo. Pois bem, Jesus nos oferece, através do relato de João, uma prova cabal da sua inteligência emocional (o que poderia ser mero psicologismo!) ladeada, entretanto, da sua capacidade de manter clareza, firmeza e coerência quanto a um plano-projeto previamente fixado. É interessante observar que tudo inicia a partir de um desejo-curiosidade de alguns gregos em ‘ver-conhecer’ Jesus. Estes usam como intermediários Filipe e André. A resposta de Jesus parece inicialmente incompreensível, pois não responde direta e explicitamente ao que lhe foi solicitado. Jesus, diferentemente do esperado, apresenta uma comparação descrevendo o processo de germinação do ‘grão de trigo’. Isso, contudo, é a nossa chave de leitura.
De forma indireta Jesus nos diz que para vê-lo e conhecê-lo teremos que fazer a mesma experiência que o grão de trigo faz para ser germinativo e produtivo. Realmente o trigo ilustra coerentemente o que Jesus quer nos dizer. O trigo nas terras e climas temperados é semeado em outono (mês de outubro). Terá que passar cinco meses debaixo da terra fria e escura até esperar a primavera para poder brotar e amadurecer. É assustador imaginar como uma semente possa permanecer tanto tempo debaixo da terra, sobreviver a geadas e frio e germinar depois de tão longo período. Parece até que o poder germinativo do trigo seja forjado justamente no frio e na escuridão da terra! Para quem lida com agricultura, meias palavras bastam. Tudo aparece claro!
Difícil, entretanto, é aceitar a mensagem e a prática que a comparação aponta. Jesus, com efeito, nos diz que é na nossa capacidade de enfrentar a escuridão da vida, a frieza da indiferença humana, no enfrentamento da morte interior, na sensação de solidão e abandono que podemos germinar para uma vida nova. Ao contrário, quantos acham que poderão ‘salvar a própria vida’, se sentir bem e serem felizes ao não enfrentar as experiências que provocam sofrimento, dor, angústia interior, conflito, mas delas fugir e se refugiar em falsas seguranças, irão perder ‘ a própria vida’. Ou seja, irão deixar de ser germinativos, de ter poder de dar vida a algo novo. Numa sociedade que faz tudo para não sentir dor, sofrimento e angústia, achando que pode criar situações artificiais de bem-estar permanente não está educando os seus membros a possuírem a inteligência necessária para compreender que a vida tem que ser enfrentada e ‘vivida’ justamente a partir de suas contradições. É dentro delas que forja o seu poder germinativo. É nelas que nos 'conhecemos' e somos conhecidos!
Jesus não exaltou a cruz, a morte, o sofrimento. Ele também ficou ‘perturbado e angustiado’ diante da perspectiva do conflito, da morte física, mas não pediu que o Pai o livrasse de algo que Ele mesmo considerava inevitável para poder testemunhar coerência e fidelidade não a princípios, e sim, a pessoas. O Pai, de fato, não o livrou, mas lhe deu a força interior para enfrentar o que todo humano terá que enfrentar. Deu-lhe a ‘inteligência emocional’ para encarar a sua morte sem desespero e sem fugas artificiais.

Igreja católica do Maranhão ao lado dos povos indígenas

Barra do Corda, Maranhão. Um encontro que pode ser definido histórico para a igreja católica desse Estado. Ao longo dos dias 24-25 de março, 4 dos 5 bispos em cujas jurisdições contam com a presença indígena (Grajaú, Zé Doca, Imperatriz, Viana e Carolina) e mais 30 pessoas, entre leigos, padres e religiosos, se reuniram para colocar as bases para uma futura ‘pastoral indigenista’. Uma decisão esta, tomada pelo conjunto dos bispos do Maranhão ainda no mês de janeiro, diante da necessidade de marcar presença maciça e formal junto aos povos indígenas desse Estado.
Constatava-se, com efeito, que não havia ainda na igreja local uma pastoral de conjunto a respeito, embora em quase todas as dioceses com presença indígena já existam ações voltadas para tanto. Os desafios, os conflitos, as indefinições fundiárias, a exploração madeireira em terras indígenas, o avanço do agro-hidro-negócio e problemas de toda ordem impõem á igreja um esforço conjunto para encontrar metodologias, metas, recursos humanos e estratégias ser parceira e sinal de vida para os povos originários desse Estado. Se é verdade que um trabalho junto aos povos indígenas exige preparação específica e conhecimento mínimo de suas culturas, é também verdade que a linguagem da solidariedade, do respeito, do reconhecimento da alteridade é algo possível, compreensível e realizável por todos.
A consciência da complexidade da realidade indígena, acoplada a preconceitos e racismos difusos e a formas de intolerância inaceitáveis não pode fazer desistir a igreja de sua missão de ser voz profética e sinal de contradição na sociedade como um todo. Este foi um primeiro passo formal que a igreja vem dando e que terá continuidade. Ao proceder dessa forma a igreja retoma com altivez e responsabilidade as posturas ousadas e inesquecíveis de Pe. Antônio Vieira e de outros profetas da liberdade dos povos indígenas no Maranhão.

domingo, 22 de março de 2009

4º domingo de quaresma. Contemplar o crucificado 'inconformado' para desmascarar os crucificadores (Jo.3,14-21)

Historicamente os setores hegemônicos (hierarquia, magistério e teologia formal) da igreja católica construíram um arcabouço teológico e místico para que seus adeptos contemplassem a ‘imagem-símbolo’ do crucifixo como a expressão da entrega gratuita, livre, amorosa, sacrifical de Jesus em vista da salvação do mundo. Ao contemplar o crucificado Jesus, as pessoas seriam motivadas a se identificarem com aquelas nobres virtudes. Isso permitiria no cotidiano da sua existência encarar e suportar com admirável conformação e resignação tudo o que representa morte, sofrimento, dor, negação de vida. Ao mesmo tempo, essa espiritualidade da cruz ajudava a tornar natural no imaginário religioso das pessoas a própria crucifixão. Ou seja, esta seria uma ação a ser quase ‘imitada’ pois iria possibilitar purificação, oblação e sacrifício expiador. Congela-se, dessa forma, o ato da crucifixão em si e se induz à sua aceitação e conformação.
Não se trata aqui de emitir um julgamento de valor sobre o itinerário formativo-religioso percorrido pelos setores predominantes da igreja e imposto aos seus seguidores. Trata-se de constatar atitudes e posturas religiosas, e tomar ato de suas conseqüências no plano ético e comportamental. Não há como reconhecer, todavia, a gritante distorção e deturpação do gesto histórico e simbólico do crucificado Jesus. De fato, na nossa formação religiosa, a contemplação do crucificado não nos remete imediatamente a identificar nele uma vítima de um crime, de um homicídio, o resultado de uma sentença arbitrária de morte, um abuso institucional. Nunca fomos educados a ver por trás daquele crucifixo os crucificadores, os autores do crime.
Ao encarar a cruz como algo ‘natural’, e o caminho de Jesus ao calvário como uma escolha-decisão soberana Dele, livre, espontânea - e não como imposição arbitrária de ‘outros’, como um abuso, como coação sobre uma vontade/consciência que aspirava à plena integridade física – banaliza-se o crucifixo e a morte violenta, premeditada. Ao mesmo tempo, tal atitude, supostamente, desresponsabiliza a pessoa em procurar identificar os autores do crime e exigir justiça e reparação. Há uma outra conseqüência imediata dessa distorção religiosa: as vítimas são entregues ao seu próprio destino. O que lhes resta é se identificarem com o ‘conformado’ crucificado, perdoando os agressores criminosos e continuando a serem ‘condenados’ ao abandono social e à impunidade institucional.
Ao contrário, o evangelho hodierno de João quer ajudar todas as vítimas ‘crucificadas’ a se identificarem (crerem) não com um Jesus ‘conformado’ que se entrega ‘livremente à morte’ - como se esta não lhe tivesse sido imposta, - mas com um Jesus que grita, exige, interpela e reivindica de Deus justiça, proximidade e intervenção (‘meu Deus porque me abandonaste?”). Quem assumir tal atitude “não vai ser condenado” ao desespero, à humilhação, à insegurança, ao medo, mas “terá vida plena” e renovada esperança. Com efeito, mesmo na dor, no sofrimento, na cruz pode vislumbrar a sua (da cruz) superação, o seu fim, as suas causas e os autores criminosos! Ao passo que quantos não crerem (não se identificarem) na possibilidade de o crucificado inconformado ter sucesso em suas reivindicações por justiça, respeito pela sua integridade, segurança e punição dos responsáveis da sua ‘crucificação’, eles “já estão condenados” ao medo, ao desespero, à humilhação, à falta de perspectivas.
Somente aqueles que agirem como o inconformado-iluminado Jesus é que poderão ‘desmascarar’ os senhores das trevas, pois estes não querem se expor, preferem esconder suas más ações para não serem descobertos, responsabilizados e punidos. Que os crucificados tenham a coragem-fé de apontar os seus crucificadores!

sábado, 21 de março de 2009

Supremo confirma demarcação da terra Raposa Serra do Sol



Após 34 anos de luta dos povos indígenas e 4 dias de julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, ontem, 19 de março, a validade da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, questionada por senadores e pelo estado de Roraima e por arrozeiros que ocupam a terra. A retirada dos ocupantes ilegais será responsabilidade do judiciário, por meio do ministro-relator do caso, Carlos Ayres Britto.

Por 10 votos a 1, os ministros consideraram correto o procedimento administrativo que resultou, em 2005, na homologação de 1, 7 milhão de hectares como terra indígena, onde vivem cerca de 18 mil pessoas dos povos Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Patamona e Wapichana.

O único voto diferente foi o do ministro Marco Aurélio de Mello. No dia 10 de dezembro de 2008, na segunda sessão do julgamento, após oito ministros já terem votado pela manutenção da homologação, Mello pediu vista do processo. No dia 18 de março, quando o STF retomou o julgamento, Mello leu por cerca de sete horas seu repetitivo voto, permeado por longas citações a artigos de jornal. Em seguida, Celso de Mello votou pela manutenção da homologação. No dia 19, o ministro Gilmar Mendes também votou em favor da homologação da terra.

Após proclamado o resultado, os cerca de 30 indígenas que acompanharam o julgamento comemoraram a vitória na Praça dos Três Poderes. “Perdemos muitos parentes, que foram assassinados nesses anos de luta, mas hoje, eles estão aqui comemorando com a gente”, declarou emocionado a liderança Júlio Makuxi.

O resultado de ontem (19) cassou a decisão liminar que suspendeu a operação da Polícia Federal de extrusão dos ocupantes não-índios da terra, em abril de 2008. No entanto, a responsabilidade pela retirada dos invasores deixou de ser do Executivo e passou para o Judiciário, sob coordenação do TRF1 e do ministro Ayres Britto.

O ministro Ricardo Lewandoski lembrou repetidas vezes que o STF decidiu pela retirada imediata dos ocupantes e que a decisão do tribunal não pode ser tergiversada.

Condições
Ontem, além de decidir sobre a demarcação da terra Raposa Serra do Sol, os ministros do Supremo estabeleceram 19 condições para a demarcação de qualquer terra indígena no país. Na avaliação do Cimi, a normatização estabelecida pelo STF “deve ser entendida num contexto de cerceamento de direitos dos povos indígenas, das populações tradicionais, do campesinato e outras, em favor da expansão do interesse do capital privado no campo. Diante disso, o Cimi alerta sobre os riscos que a restrição de direitos pode acarretar, como o acirramento de conflitos em razão da legítima defesa da posse da terra pelos povos e comunidades indígenas.” (informe do CIMI Nº 857)

quinta-feira, 19 de março de 2009

TJ volta a julgar o caso Jorge Moreno: dois pesos, duas medidas. TJ do Maranhão: uma justiça que 'enxerga'

Ontem, 18 de março encontrava-me no plenário do Tribunal de Justiça do Maranhão. Participei na íntegra da sessão em que se julgava o “caso Jorge Moreno”, o ex-juiz da Comarca de Santa Quitéria afastado há mais de 2 anos após uma denúncia de fazer política partidária. Ouvi com atenção a leitura ‘filtrada’ e parcial do relator citando o que ele entendia que seriam os elementos essenciais desviantes merecedores de punição do magistrado. Após a leitura e iniciada a votação tomou a palavra o decano, o desembargador Bayma que como uma rajada de metralhadora, sem meios termos, afirmou que tal processo estava ocorrendo só porque o juiz Jorge Moreno é ‘pobre, inteligente, não vende sentenças, não tem costas quentes, etc.’. Votou contra o relator que pedia ‘aposentadoria compulsória’. O Sr. Rachid, inimigo histórico do juiz, justamente se sentiu impedido. Outros desembargadores e desembargadoras votaram antecipando o seu voto sendo que o desembargador Jamil havia já pedido vistas. O placar ficou em 6 a 6, segundo os meus cálculos.
Independentemente do caso que estava sendo julgado fiquei impressionado com aquela visão deslumbrante do plenário do TJ: uma verdadeira liturgia, um ritual alicerçado nos subjetivismos hermenêuticos do direito e das leis, nas desavenças políticas (obviamente não partidárias!?) dos desembargadores... Pensei como é frágil o fio que segura e garante a justiça dos homens. A mediação para isso é, naturalmente, sempre humana, parcial, condicionada, subjetiva, situada, embora se invoque a luz da ‘cega’ justiça e se apregoe que ‘a lei é igual para todos’. Os antigos romanos diziam: “dê-me o fato e lhe darei o direito”, mas em 2009 criamos os fatos e interpretamos o direito segundo interesses e conveniências políticas e econômicas!
No nosso caso concreto, uma desembargadora perguntou ao relator a qual partido o juiz Jorge Moreno pertencia. O relator se limitou a afirmar que não sabia, mas que num palanque, com ele, estava o deputado Dutra do PT! Meus Deus, isso é prova que o juiz estaria fazendo política partidária quando não existe nenhuma afirmação explícita do magistrado quanto as suas preferências partidárias? Sem falar na ausência de carteira de filiação a um determinado partido. O que dizer, então, daquele desembargador do TJ do Maranhão que vestiu e exibiu sem pudor algum a camiseta com a escrita ‘Eu sou vencedor’ quando o Lobão se elegeu governador do Estado? Parafraseando os antigos patrícios romanos: “Não preciso de fatos, dou-lhe o direito” ou, melhor ainda: ”Aos amigos os favores da lei, aos inimigos...os rigores!”

quarta-feira, 18 de março de 2009

Papa Bento, mais uma vez!

O papa Bento ontem viajou a África, mas durante a viagem, mais uma vez, reiterou a sua plena convicção de que os preservativos são inadequados para combater a AIDS. Foi logo polêmica a nível europeu, como não podia deixar de ser. Convenhamos: que os preservativos sejam a única arma para se contrapor ao avanço da Aids é claro que não são. Uma nova vacina, por exemplo, resolveria definitivamente, e sem ironias. Enquanto isso, e sem desprezar os apelos à fidelidade entre parceiros, à abstinência, etcetera e tal, parece bastante consolidado cientificamente o fato de que a única arma que os humanos possuem para não contrair uma doença fatal são justamente os preservativos (aqueles seguros!). Estudei moral matrimonial e sexual, continuo acompanhando as novas reflexões a respeito e tenho dificuldade em entender em que consistiria o “ilícito moral” na utilização dos preservativos para quantos fizeram a opção de não serem castos. Francamente não achei. Cheguei à conclusão que o que preocupa alguns setores da igreja é o medo de que ao reconhecer a sua licitude (a utilização dos preservativos) estariam, indiretamente, incentivando à prática das relações sexuais. No passado se apelava ao fato de que os preservativos eram um meio artificial (não natural) de evitar filhos, desconhecendo que também os meios naturais visavam ao mesmo fim... Setores da igreja acham que ao declarar lícita a utilização dos preservativos se configuraria numa espécie de “liberou” geral da igreja. Ao passo que poderia ser o reconhecimento que queremos preservar com zelo e amor o que o Criador gerou: o ser humano,” a sua integridade física e moral”. Manifestação da sua presença vital no cosmos!

domingo, 15 de março de 2009

III domingo de quaresma: destruir o templo da manipulação para preservar a dignidade-fé das pessoas.

Existem gestos e acontecimentos que pela incidência simbólica – muito mais do que pelos seus efeitos práticos - acabam produzindo impactos mais significativos nas pessoas. Um sapato jogado por um jornalista iraquiano contra o ex-presidente Busch, por exemplo, numa coletiva, tem um impacto, a nível simbólico, muito maior do que um protesto público de mais de 10.000 pessoas numa praça. No nível do efeito prático ele se revela inconsistente. Com efeito, o ex-presidente sequer foi atingido, e mesmo sendo, não teria colocado em risco a incolumidade do alto dignitário. Aquele gesto, entretanto, nos deixou intrigados: o jornalista utilizou, dentro de sua cultura, o pior gesto que se podia reservar a um inimigo. A (pior)-melhor forma para manifestar-lhe desprezo, revolta e indignação por alguma ofensa grave sofrida só podia ser mediante “o arremesso” de um sapato.

Jesus no evangelho hodierno lança mão do mesmo recurso. Não tanto uma ação efetiva que visasse acabar definitivamente com uma determinada prática historicamente adquirida – a de vender e comprar objetos para o culto – e sim, um gesto que fosse expressão da inconsistência, da incoerência e da manipulação que eram exercidas pela instituição ‘templo/religião’. Alguns exegetas fazem notar que a ação de Jesus deve ter sido premeditada e bem planejada, pois conseguiu provocar bastante confusão e desordem e sair do templo sem ser preso. Isso mostraria que havia outras pessoas a lhe oferecer proteção, sem considerar que havia um elevado número de guardas no templo, principalmente em ocasião da páscoa. Em que pese a premeditação da ‘ação paramilitar’ de Jesus, o gesto deve ser lido dentro da visão de fundo que Jesus tinha a respeito da ‘instituição templo’.

O templo para Jesus não era mais a expressão do espaço do encontro com Javé, nem o sinal da Sua presença mediante a arca, ao contrário, os sacerdotes, - mediante o incentivo e o fortalecimento das normas de pureza e dos cultos e sacrifícios – estavam promovendo a mercantilização do sagrado e a dominação religiosa das pessoas. Eles haviam conseguido construir o monopólio da relação ‘legal’ entre Deus-homem através da manipulação simbólico-religiosa. Tudo isso em função do seu enriquecimento ilícito, da manutenção do nepotismo e do clientelismo. Na prática, a instituição templo estava promovendo uma verdadeira revitalização econômica na Judéia e no País como um todo, apesar da presença fiscal dos romanos. Tudo isto traia o passado religioso hebraico e negava a presença de Javé naquele espaço-instituição.
O templo havia deixado de ser espaço de acolhida das pessoas, espaço de comunhão das pessoas entre si e com Deus, espaço de reconhecimento de gratidão ao Deus da vida. Aqui residia o verdadeiro pecado da instituição templo: ser negador da dignidade-vida-consciência-identidade das pessoas. As pessoas não podiam mais se reconhecer no templo por ele não permitir que as pessoas reconhecessem a presença do Deus de seus antepassados no templo. A instituição deturpou de tal forma o templo que acabou deformando a própria identidade de Deus. As pessoas simples, ao não reconhecer ‘aquele Deus” que havia marchado com seus pais pelo deserto à procura de terra, estavam sendo machucadas e negadas em sua consciência, em sua fé, em sua identidade. Isto, para Jesus, precisava ser destruído, pois o “corpo-templo” das pessoa devia ser preservado.
O templo-instituição podia ser destruído, e isso era urgente a ser feito, para poder fazer ressuscitar aquela consciência-fé-dignidade coletiva que foi deformada e manipulada por uma classe sacerdotal manipuladora e inescrupulosa. Para que pudesse surgir um novo Israel, na nova realeza de Deus, devia ser respeitada a identidade-templo de todo israelita, de toda pessoa.

Morre Dom Paulo, ex-arcebispo de São Luis

Hoje, às 3,30, faleceu Dom Paulo Pontes, ex-arcebispo de São Luis por mais de 20 anos. Fazia quase um ano que ele vinha sofrendo graves problemas respiratórios. Ultimamente o seu quadro clínico piorou significativamente vindo a falecer. Dom Paulo, cearense legítimo, acabou assumindo a história, as contradições, os dramas e os sonhos desse povo do Maranhão. Procurou fazê-lo como pastor e como cidadão. De Dom Paulo pode-se falar muitas coisas, mas não se pode negar a sua determinação e a sua firmeza em defender o direito ao acesso à terra por parte dos numerosos camponeses deste Estado, e a condenação inequívoca dos numerosos abusos policiais cometidos contra eles na época do governo Lobão. Só isto bastaria para reconhecer o valor da sua passegem entre nós e lhe devotarmos eterna gratidão. Obrigado dom Paulo!

sábado, 7 de março de 2009

Transfiguração: compreender o sentido da história

O que pode parecer algo surpreendente e espetacular reservado a algumas poucas pessoas pode estar ao nosso alcance: a transfiguração de pessoas e realidades. Ou seja, a capacidade de conhecer e ver além do que vemos física e sensoriamente. Um conhecimento antecipado de pessoas e coisas. Se analisarmos o itinerário da nossa vida, podemos perceber que em determinados momentos fizemos a experiência concreta, histórica, de ter intuído o que determinados acontecimentos e/ou pessoas iriam significar para nós. Ou seja, perceber com uma clareza assustadora que tipo de impactos iriam produzir em nossa vida. Enfim, não uma distorção da realidade produzida pela mente, e sim um sentir diferente, único, revelador. Podemos chamar essa experiência profundamente humana de ‘trans-figuração’!
É a experiência que Jesus fez ao sentir/perceber intuitivamente que a sua escolha de anunciar a boa nova aos invisíveis e pequenos da sociedade e descortinar os mecanismos que os subjugavam iria produzir impactos fatais para a sua própria sobrevivência física. Ao mesmo tempo, porém, teve a percepção que a sua morte não seria em vão, mas teria dado vida algo novo, inédito (vestes brancas). Em suma, nada que não tenha sido fruto de uma profunda capacidade, por parte de Jesus, de compreender as relações humanas, os jogos e disputa de poder, as contradições e antagonismos sociais e econômicos.
O evangelista Marcos, exímio escritor e teólogo no-lo apresenta sob uma roupagem metafórica surpreendente: o alto monte, o branco luminoso de Jesus, as 3 tendas para dois personagens que representam a lei e o profetismo. É como se o evangelista nos dissesse que Jesus sentiu/previu que ao sintetizar e ao superar duas grandes dimensões da estrutura religiosa de Israel (a lei mosaica e o profetismo anti-monárquico de Elias) iria colher o reconhecimento formal de Deus (a nuvem e a voz), mas também a rejeição do povo de Israel. Essa ‘transfiguração’ da história, ou seja, essa possibilidade humana de ir além das meras aparências e fenômenos externos para colher o sentido profundo dos acontecimentos, permitiu a Jesus encarar com realismo, sem pavor e sem fanatismo, o desfecho assustador e fatal que o estava aguardando. Nas horas da angústia, da dúvida, da tentação, espera-se que estejamos atentos para captar as inúmeras sinalizações emitidas pela história/Deus para nos sentir confirmados em nossas opções ou para redirecionar rumos e fazer outras opções.

quarta-feira, 4 de março de 2009

TSE cassa o atual governador. "Toda infidelidade (flagrada) será punida!"

Assisti até o encerramento a sessão do TSE que julgava o caso do governador do Maranhão acusado de captação ilícita de sufrágio (compra de votos) e abuso de poder político e econômico, em ocasião de sua eleição em 2006. Eram 2,00 da manhã. Não perdi um lance. Tive a sensação de estar presenciando um momento histórico significativo da história desse Estado e do Brasil.
Comentava com amigos que o TSE devia provar o ‘envolvimento direto ou indireto, - no mínimo algumas provas claras da anuência explícita do governador nos casos denunciados de compra de votos, - caso contrário teria sido difícil decidir a respeito de sua cassação. Ao mesmo tempo, devia ficar claro que a máquina do governo na época, com José Reinaldo Tavares encabeçando, foi claramente colocada a disposição de uma candidatura específica e com a anuência do candidato posteriormente eleito.
Foi justamente isso que ficou claro, escancarado. Não foram os mais de 8 casos de supostas tentativas de captação ilícita de sufrágio (segundo muitos ministros não havia provas claras do envolvimento direto ou indireto do atual governador), e sim a escandalosa anuência do governador quanto à clara utilização do poder político do governador anterior à sua candidatura. Em outras palavras: foi a desfaçatez da utilização ‘pessoal’ de um cargo/poder público em favor de um cidadão/candidato que liquidou o atual governador. A relação: beneficente/beneficiado, ou seja, governador que deveria governar em favor de TODOS (exercício impessoal do cargo público), acima de toda preferência pessoal e beneficiado-candidato a governador, ficou mais que comprovada. Foi algo acintoso e revoltante.
Com certeza pode-se argüir que outros fizeram o mesmo. Na certa! Pode ser que o tenham feito de forma mais elegante ou que tenham contado com a omissão de seus adversários que não os denunciaram no momento oportuno. Se tais abusos ocorreram também com outros, pois então que se denuncie, se prove e se julgue até às últimas instâncias. Seja quem for. Afinal, temos que acabar com os inúmeros abusos e ilícitos que ainda maculam a jovem democracia eleitoral brasileira e principalmente a maranhense. Sempre se tem apostado na impunidade e nas delongas da justiça. Os sentenciados abusaram de sua autoconfiança na impunidade e na demora da justiça. Esta, entretanto, mais uma vez, demorou, mas chegou. Não sei se fez justiça, mas julgou e emitiu um sinal claro para todos os que desprezam princípios como a transparência e lisura eleitoral achando que podem ganhar pleitos só no tapetão.
No caso específico do Maranhão o “prato da vingança” do senhor José Reinaldo Tavares – que devia ser servido frio, conforme a tradição manda – foi servido ‘quente’, com muita paixão, com abuso de destempero e insensatez, prejudicando quem pretendia ajudar e beneficiando quem, supostamente, queria prejudicar.
Afinal, parafraseando o Nelson Rodrigues, “toda infidelidade (flagrada) será punida”!

segunda-feira, 2 de março de 2009

Lançamento da C.F. 2009 em São Luis: ocasião perdida?

Sábado 28 de fevereiro houve em São Luis o lançamento oficial da Campanha da Fraternidade promovida pela CNBB a nível nacional. Mais uma tentativa da igreja católica em contribuir para motivar e mobilizar não somente católicos, mas a sociedade inteira, contra a insegurança pública que toma de conta do País.
Notável a visão/compreensão da instituição quando nos lembra que “segurança pública” é algo que transcende a mera segurança física, a violência física, no caso. Ela entende segurança pública num sentido amplo e abrangente que incorpora a defesa da integridade física, moral, cultural, emocional da pessoa e da coletividade simultaneamente.
Ainda mais quando não identifica a superação da “insegurança pública” como algo meramente relacionado à responsabilidade/obrigatoriedade dos aparelhos do estado – polícia, judiciário, guardas municipais, etc. - e sim como um compromisso e responsabilidade de todos os cidadãos e cidadãs. Resgata assim, o sentido profundo do “ser público”.

Por causas dessas premissas e compreensões é que fiquei decepcionado com a solenidade que ocorreu neste sábado passado em São Luis. Ao fazer convite explícito e ao conceder a palavra ao governador, ao prefeito da cidade, à secretária estadual de ‘segurança pública’, à Procuradora do Estado - representantes oficiais dos aparelhos do estado, - os promotores da solenidade/celebração desqualificam simbólica e politicamente a compreensão/atuação segundo a qual “segurança pública é compromisso de TODOS”, pois remetem, contraditoriamente, mais uma vez, ao próprio estado. Se havia o intuito por parte dos promotores de envolver afewtiva e politicamente os órgãos de estado na questão da segurança pública não era durante uma celebração litúrgica o espaço mais adequado para fazê-lo e sim, em outras instâncias já previstas em lei.
Teria gostado de ouvir na celebração litúrgica o testemunho de grupos de famílias que a partir da realidade de seu bairro estão se organizando para combater e/ou amenizar os efeitos da fome, garantindo ‘segurança alimentar' para todos;
Teria gostado de ouvir o testemunho de trabalhadores nas indústrias e no comércio em suas lutas para diminuir os acidentes e as doenças contraídas no trabalho, ao tentar garantir ‘segurança no trabalho’ para todos.
Teria gostado de ouvir o testemunho de alguns quilombolas ou indígenas para dar o seu testemunho sobre o que significa habitar um território inseguro, invadido permanentemente por madeireiros, mineradoras e empresários da soja e do eucalipto, semeando insegurança não só territorial, mas cultural e física.
Teria gostado ouvir o testemunho de presos ou ex-presos para conhecer o que é reservado a tantos cidadãos que são presos injustamente, ou que já cumpriram a pena, mas a justiça os ignora; ou quando são interrogados como suspeitos em nossas delegacias na base de porradas e torturas; ou quando são tratados como animais brutos dentro das nossas masmorras ou, enfim, quando saem delas não encontram um cidadão disposto a lhes oferecer um gesto de confiança para voltar à sociedade e usufruir e construir segurança com outros cidadãos.
Pena. Nada disso eu vi!