segunda-feira, 29 de março de 2021

Desmonte dos órgãos de fiscalização leva indígenas a realizarem autodemarcação de suas terras para tentar evitar genocídio completo, diz a antropóloga Luísa Pontes Molina

 Passaram-se mais de 32 anos desde que a Constituição Federal foi promulgada e 27 anos do prazo limite para a demarcação dos territórios indígenas, segundo previsão da Carta Magna. Se por um lado a sanha da atual gestão federal, especialmente manifesta na postura de Bolsonaro, do vice General Mourão e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em atacar os povos indígenas chegou a níveis obscenos, por outro, os governos anteriores abriram mão de avançar de forma consistente na pauta. “Não devemos pensar que Bolsonaro, Mourão ou Salles são figuras que subitamente apareceram no cenário do que costumo chamar de ‘guerra fundiária brasileira’, com toda a sede de explorar as terras indígenas até a última gota, enquanto destilam ódio contra essas populações. Eles não surgiram do nada no cenário político, assim como a orientação deles nessa guerra, e a aderência que encontra, regional e localmente, também não é à toa. Realmente não podemos reduzir o problema apenas à perversidade de Bolsonaro, entre outros aspectos isolados”, pontua a antropóloga e doutoranda Luísa Pontes Molina.

Com o desmonte dos órgãos de fiscalização, acelerado pelo atual governo, restou aos povos indígenas a proteção de suas terras de forma autônoma, o que traz riscos incalculáveis. “A realidade imposta aos povos indígenas é ter que resistir e garantir a proteção de suas terras de maneira autônoma. A resistência tem sido por meio de ações levadas a cabo pelos próprios indígenas para protegerem seus territórios: autodemarcações, retomadas de terras, vigilância contra invasões. São os indígenas que estão fazendo isso”, ressalta Molina.

“É importante entender que o Estado não ‘dá’ nenhuma terra indígena, ele reconhece a ocupação dos povos; tampouco a terra é propriedade dos indígenas, ela é de usufruto exclusivo desses povos, pois é propriedade da União”, explica a entrevistada. “As autodemarcações das terras indígenas são realizadas pelos próprios povos indígenas que tomam para si a iniciativa de demarcar os perímetros de seus territórios. Os indígenas fazem uma inversão no jogo, fazendo com que o Estado reconheça a terra indígena como figura administrativa”, complementa.


 

sábado, 27 de março de 2021

Governo Bolsonaro cria dificuldades para os índios se declararem ...índios!

 A Resolução 04 recentemente editada pelo governo Bolsonaro sob o argumento de “padronizar e dar segurança jurídica” ao processo de auto-declaração indígena, traz o verniz de ser uma forma de “proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população”. Na prática cria mais dificuldades ao reconhecimento e identificação das pessoas enquanto indígenas. Segundo analistas “essa normativa consolida o racismo institucional contra os povos indígenas ao propor critérios sobre uma auto-identificação que é, por direito, subjetiva, não se reduzindo aos estereótipos ou características fenotípicas, além de buscar cristalizar e segregar as identidades ditas ‘pré-colombianas’”. Na mesma semana o ministro do STF Roberto Barroso suspendeu a Resolução. A decisão ocorreu no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. A ação foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), partidos políticos e organizações da sociedade civil e entidades científicas, que por meio dela cobram medidas de combate à pandemia da covid-19 entre os povos indígenas. Barroso é o relator da ADPF.

Declaração e Programa de Ação de Durban

As contribuições a este item do Conselho de Direitos Humanos têm por objetivo acompanhar a implementação da Declaração e Programa de Ação de Durban. O documento nasce com o objetivo de listar diretrizes que possam orientar e amparar políticas públicas de combate ao racismo. A declaração é fruto da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em setembro de 2001, pela ONU, em Durban, na África do Sul. A Declaração e Programa de Ação de Durban tem sido um instrumento de combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância em todo o mundo. No Brasil tem sido fundamental na criação de políticas públicas, na definição de critérios de auto-declaração de cor/raça e na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, promulgado em 2010. A Declaração também dedica um de seus artigos, o 39º, aos povos indígenas. Nele reconhece que os indígenas têm sido vítimas de discriminação e “afirma que eles são livres e iguais em dignidade e direitos e não devem sofrer qualquer tipo de discriminação baseada, particularmente, em sua origem e identidade indígena”. Ainda argumenta se fazer necessário medidas constantes para superar a persistência do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias que os afetam. (Fonte: IHU)


O sentido da Semana Santa - Entrevista ao programa radiofônico 'Kairós'

 Em sua opinião qual é o sentido profundo da semana santa?

Evidente que cada pessoa constrói seu próprio sentido e cada pessoa tem o seu modo específico de vivenciar a semana santa. Contudo, há um sentido eclesial comum que não podemos ignorar. Um sentido que a igreja deseja que todos os seus fieis assumam em profundidade e me parece ser o seguinte: semana santa é muito mais que um período litúrgico que nos faz reviver os últimos acontecimentos da vida de Jesus e que nos prepara espiritualmente para a Páscoa. Semana santa é contemplar os crucificados de hoje, da nossa realidade, para fazer a experiência concreta de estar em profunda comunhão com eles. Mas não só: fazer a experiência de identificar, dar um nome às cruzes nas quais são crucificados milhões de seres humanos e, como consequência, rebelar-se, e destruir as cruzes do ódio, da intolerância, da negligência, da falta de compaixão, da falta de diálogo e de perdão. 

Gostaria que nos desse algumas pinceladas sobre o sentido específico da quinta feira e da sexta feira santa à luz da nossa realidade de pandemia, e de caos social e político que existe no nosso País

A quinta feira santa, desde o meu modo de ver, encerra a mensagem central de Jesus de Nazaré. O serviço incondicional aos necessitados e não a obediência à lei está na base da nova aliança selada por Jesus com toda a humanidade. No banquete da vida não existem exclusões, elitismos, preconceitos, mas até os traidores são convidados. Ao aceitar o convite e sentar-se à mesma mesa eles terão que lavar os pés dos demais convidados, deixando de lado ambições e desejos de poder. Aqui ocorre o compromisso que é central na vida de cada ser humano: não permitir que ninguém passe fome. Fome de pão, mas também fome de justiça. Todos assumem o compromisso de distribuir com equidade os bens da vida, materiais e imateriais. Muitas pessoas, na nossa realidade local, talvez nem participem da 'eucaristia sacramental e litúrgica', mas certamente vivenciarão esse acontecimento, histórica e realmente, fora do templo, ao oferecer cestas básicas e solidariedade a famílias carentes, a desempregados, a mães de família sem auxílio de todo tipo! 

Como não contemplar na sexta feira santa no Jesus torturado, condenado sem direito a defesa e martirizado na cruz os corpos de mais de 300.000 homens e mulheres do nosso País, mães e filhos martirizados não somente pela doença do Covid, mas também pela falta de estruturas sanitárias, leitos, falta de oxigênio, de médicos, de responsabilidade, de cuidado? Jesus não morreu vítima de uma fatalidade. Foi morto, assassinado. Aqui, também, muitas pessoas não morreram vítimas de uma doença fatal, por um azar. Elas são vítimas, sim, do descaso e da irresponsabilidade política, e da indiferença e da falta de compaixão. Na sexta contemplamos também a crueldade de supostos machos que matam e humilham suas companheiras, o abuso contra crianças, a exploração e a escravidão praticadas contra trabalhadores...Acho que a sexta feira santa nos desperta sobre o perverso poder que a morte ainda tem na humanidade. O discípulo/a de Jesus não pode se conformar com tanta violência. Não podemos, tampouco, imaginar que isso faz parte de um projeto divino. Ou, imaginar que seria algum tipo de castigo divino. Deus nunca quis a morte do seu filho, e nunca vai querer punir sequer aqueles filhos que cometem atrocidades. Quem quis e praticou a morte de Jesus foram as elites religiosas de Jerusalém aliadas aos poderes romanos locais. Essas elites têm nome e sobrenome. Nós também, hoje, temos o dever ético de dar os nomes dos ‘crucificadores’ para que sejam colocados em situação de não mais matar! 

O que significa, então, ressuscitar para nós, hoje?

É provar com gestos concretos de enfrentamento e de combate contra tudo o que conduz à morte, à violência e à truculência que os poderes mortíferos não têm a palavra final sobre a existência humana. Ressuscitar é provar através da nossa resistência que ninguém é tão forte para destruir as esperanças guardadas e alimentadas por pais de família, jovens, mulheres, pessoas escravizadas e torturadas. Ressuscitar é, também, a capacidade de manter vivas aquelas pessoas que foram ceifadas pela doença e pela violência.  É dizer e provar que elas nunca serão esquecidas. Que seus gestos, palavras e testemunhos jamais serão enterrados, mas que encontrarão em nós pessoas ousadas e corajosas para dar continuidade a tudo o que nos transmitiram. É dizer à pessoa amada que nos deixou que ela nunca morrerá! Que nunca será uma 'falecida'.


quinta-feira, 18 de março de 2021

O câncer político e social da América Latina e a metástase brasileira - Por Fabio Luís Barbosa dos Santos

 O professor Fabio Luís Barbosa dos Santos insiste que a questão vai além do binômio esquerda e direita, da volta de um ou derrota de outro, pois seja o progressismo de esquerda bem como a direita radical operam numa mesma lógica. “O progressismo é, na melhor das hipóteses, o braço esquerdo da ordem. E os Bolsonaros deste mundo são seu braço direito. O que está em jogo na disputa entre progressismo e direita são diferentes formas de lidar com a agudização das tensões no neoliberalismo”, explica. Por isso, seja no Brasil ou em outros países da América Latina, vê a retomada progressista apenas como essa “aspirina” contra a doença. Afinal, “durante a onda progressista, acreditou-se que o futuro era o Brasil petista, que exportava tecnologias de governo de populações empobrecidas para o mundo. Hoje está claro que o futuro era a para política colombiana, que exporta tecnologias de repressão para o próprio Brasil” e foi justamente isso que nos trouxe a esse estágio. Para Fabio Luís “enquanto o progressismo se propõe a gerir a crise, os bolsonarismos não se propõem a fazer gestão alguma: eles governam por meio da crise. Enquanto uns procuram o freio, outros pisam no acelerador. Mas ninguém questiona o trilho”. Ao longo da entrevista, embora trate muito da conjuntura brasileira, analisa a realidade de outros países e evidencia que essa é uma lógica presente na Argentina, no Equador e em outros lugares. Mas qual a saída? Seja de um lado ou de outro, para ele, é preciso encarar que “vivemos uma crise ecológica que coloca em risco a saúde do planeta, explicitada pela pandemia”. Além disso, de uma vez por todas, é preciso romper com o colonialismo sobre a América Latina, algo que entende não só sob o aspecto político ou econômico, mas como “um colonialismo da vida”, que se coaduna com as lógicas extrativistas do século XXI. “É preciso revolucionar a relação com a natureza. Isso exige se livrar da colonização da vida, pelo valor. Uma ecologia anticapitalista se torna, literalmente, questão de vida ou morte”, aponta. E provoca: “como sairemos deste câncer? A cura não se conhece. Será preciso imaginar e fazer o novo. Este novo terá que ser mais e não menos radical do que no passado.