sábado, 30 de março de 2024

RESSUSCITOU

Desdobra-se no céu

a rutilante aurora.

Alegre, exulta o mundo;

gemendo, o inferno chora.


Pois eis que o Rei, descido

à região da morte,

àqueles que o esperavam

conduz à nova sorte.


Por sob a pedra posto,

por guardas vigiado,

sepulta a própria morte

Jesus ressuscitado.


Da região da morte

cesse o clamor ingente:

'Ressuscitou!' exclama

o Anjo refulgente.


Jesus, perene Páscoa,

a todos alegrai-nos.

Nascidos para a vida,

da morte libertai-nos.


Louvor ao que da morte

ressuscitado vem,

ao Pai e ao Paráclito

eternamente. Amém.Desdobra-se no céu

a rutilante aurora.

Alegre, exulta o mundo;

gemendo, o inferno chora.


Pois eis que o Rei, descido

à região da morte,

àqueles que o esperavam

conduz à nova sorte.


Por sob a pedra posto,

por guardas vigiado,

sepulta a própria morte

Jesus ressuscitado.


Da região da morte

cesse o clamor ingente:

'Ressuscitou!' exclama

o Anjo refulgente.


Jesus, perene Páscoa,

a todos alegrai-nos.

Nascidos para a vida,

da morte libertai-nos.


Louvor ao que da morte

ressuscitado vem,

ao Pai e ao Paráclito

eternamente. Amém.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Quinta-feira santa - Uma estranha 'Páscoa': sem sacerdotes, usando uma mesa, fora do templo/igreja, com pão e sem cordeiro....

 Em geral na quinta-feira santa ao comentar a ‘ultima ceia’ costuma-se repetir e reproduzir conteúdos e informações adquiridas pela catequese tradicional e respaldadas pela teologia clássica. De tanto que são repetidas acabam se tornando um suprassumo um tanto mistificado de supostas ‘verdades históricas e teológicas inquestionáveis’. Daí a importância de recuperar, - lá onde é possível, - a informação histórica minimamente consensual, e de deduzir pelas práticas, costumes e tradições da época de Jesus uma narrativa verossímil......

1. João situa a última ceia no contexto da páscoa hebraica, fazendo-a coincidir. Isso é revelador, pois com isso ele quer nos dizer que a páscoa hebraica a partir daquele momento deve ser substituída pela 'Páscoa de Jesus'. É um claro abandono de uma prática centenária ou, dito de forma mais leve, um complemento essencial à 'velha páscoa'. Novo conteúdo, nova prática!

 3. João nos informa que no contexto da ceia pascal Jesus, a uma certa altura,  levantou, cingiu-se com uma toalha, colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, cumprindo, assim, a tarefa típica dos escravos. O que está por trás disso, e qual, afinal, o seu contexto? Não há nenhuma reprimenda de ordem moral! O pano de fundo era a recorrente e insidiosa disputa dentro do grupo de ‘quem seria o maior’. O que se encontra em outros contextos nos demais evangelhos, em João é encaixado no contexto de ‘ceia-banquete derradeiro’. Afinal, ao redor da mesma mesa, onde todos comem no mesmo prato, não há espaço para lugares e cargos de destaque. Está aí o surgimento de uma estrutura socioeclesial despida de qualquer anseio de caráter hierárquico. Nesse sentido, podemos compreender, então, o porquê da escolha do pão por parte de Jesus para assegurar a sua presença, e não do cordeiro, como a tradição mandava....

4. Jesus não celebra a Páscoa oferecendo o cordeiro sem mancha para ser comido! Para João, evidentemente, o próprio Jesus era o cordeiro. Mas isso é insuficiente para compreender essa escolha. Há uma motivação de fundo extremamente polêmica: os cordeiros sem defeitos e reconhecidos aptos para serem sacrificados - pelo menos no templo - provinham todos das criações do sumo sacerdote que detinha o seu monopólio, como sabe-se, hoje, pelos estudos historiográficos. Além disso, o cordeiro a ser consumido na ceia pascal na sua própria divisão e distribuição era uma fonte permanente de discriminação, pois os melhores e mais tenros pedaços eram reservados aos sacerdotes ou personalidades de destaque como previsto no antigo testamento. Jesus escolhe pão, algo carregado de densa simbologia e que sinaliza, de imediato, igualdade. Afinal, é a mesma qualidade e o mesmo sabor para todos os que dele se alimentam. O pão é mais um elemento que inibe a formação de estratificações, de vantagens e de privilégios numa possível e inaceitável estrutura hierárquica. Do ‘menor ao maior’ todos se alimentam do mesmo pão! Todos somos servidores, indistintamente, mesmo que o serviço a ser realizado seja qualitativamente diferente. Jamais poderá se sentir superior ao outro! Traição, portanto, é renunciar ao serviço e ambicionar poder e privilégios! Traição é acumular o pão e deixar de distribui-lo. 

5. Outro elemento que frequentemente é ignorado é de que o ‘evento ceia’ transcorre não seguindo o ritmo típico de um rito, mas o ritmo de uma ‘atividade doméstico-familiar’. A ceia não se dá num templo, supostamente o lugar sagrado propício para agradar e louvar Deus e, além disso, coordenado por uma elite sacerdotal especializada, mas numa casa particular. Uma casa, inclusive, anônima, talvez para sinalizar que pode-se ‘celebrar, consagrar, servir, partilhar’ na casa de qualquer um de nós, ou seja, de todos! 

6. O grupo de Jesus não se dispõe ao redor de um altar, - espaço próprio para executar o sacrifício liturgicamente adequado, - mas numa mesa, no lugar próprio da comunhão e da partilha existencial fraterna e familiar.  Nesse sentido Jesus passa o limite que separa o sagrado do profano. A Páscoa de Jesus irrompe no cotidiano e se torna ação transformadora permanente e não rito litúrgico pontual num espaço supostamente adequado. Acabou a época dos sacrifícios e oblações e se inaugura a época do pão repartido, para todos e de forma igualitária e fraterna, sem exclusões e sem condições.

7. Outro elemento que é sistematicamente ‘distorcido’ no seu ‘significado’ é o cálice de vinho’. João que apresenta Jesus como o novo Moisés o diferencia, substantivamente, do grande legislador. Moisés aspergiu com o sangue do cordeiro o povo, Jesus oferece o vinho da alegria, do amor fiel e radical. O vinho que os noivos tomavam, solenemente, no dia do casamento-aliança era a demonstração irrefutável do seu recíproco compromisso de se amar até o fim, até o derramamento de seu sangue para preservar a vida do amado/a. A nova aliança em Jesus não se dá a partir da obediência a leis e normas ‘sacerdotais’, - como ocorria no antigo testamento, mas é alicerçada no amor recíproco, no cuidado ao outro/a. É um amor tão grande que a pessoa se dispõe a derramar o próprio sangue para que o outro, o amado/a, viva! É a instituição do martírio, do testemunho radical.

A última ceia nos diz em claras letras que o discípulo de Jesus não pode ser um mero freguês ritualista, cumpridor de preceitos litúrgicos, e sim um ‘ativista eucarístico’, o tempo todo, em todos os espaços, e em todas as circunstâncias. Isso possa ajudar aqueles defensores empedernidos e cultores doentios da lisura/pureza litúrgico-ritual: a mudança de uma palavra por um seu sinônimo, nas ‘palavras da consagração’, por exemplo, não invalida o sacramento, nem nulifica a graça, porque eucaristia é uma ação transformadora continuada, permanente, pautada pelo amor que alimenta, serve e protege pessoas dentro e fora do rito!


quarta-feira, 27 de março de 2024

JUDAS ISCARIOTES, TRAIDOR OU TRAÍDO? Uma hipótese.

Uma premissa se faz necessária, a saber: a narrativa da paixão e morte de Jesus é estritamente teológica e catequética. Não há como tomá-la como base fidedigna para dados e informações históricas. Por outro lado, não podemos, tampouco, descartar integralmente tudo o que acolá é descrito e narrado. Em outras palavras, mesmo não tendo garantia cientifica da exatidão dos acontecimentos, dos ditos e fatos narrados nos quatro evangelhos é possível colher, ‘grosso modo’ o clima de fundo e o entrelaçar-se de conspirações, armadilhas, subterfúgios e traições que marcaram os últimos dias de Jesus. Um aparte merece ser reservado, hoje, - a partir da leitura do evangelho proposta pela liturgia (Mt. 26,14-25), - ao papel do apóstolo Judas Iscariotes. Muito se tem escrito e especulado sobre o movente da sua suposta traição ao Mestre de Nazaré. Proponho, com muita liberdade e sem pretensões de cientificidade histórica a minha humilde interpretação, a partir do que ocorre no nosso cotidiano de humanos... 

Ouso acreditar que o apóstolo Judas, traiu Jesus por ter sido, no fundo, ludibriado e traído por Ele. Jesus escolheu Judas para fazer parte do seu grupo porque certamente viu qualidades dignas de um apóstolo-seguidor do Seu grupo e da Sua causa. Judas não era uma pessoa anônima e sem expressão. Não há como duvidar que os dois devessem ter tido a possibilidade de se conhecer bastante, e trocar ideias sobre o presente e o futuro da nação Israel e o que poderia ser feito a respeito. Não temos porque duvidar quanto à clareza fundamental da exposição de motivos e de objetivos por parte de Jesus e que iriam nortear as ações do grupo do Rabi. Tampouco, não temos motivos para duvidar da capacidade de compreender e aceitar o todo por parte de Judas. Algo deve ter se quebrado na relação entre os dois ao longo da breve convivência...

    Conhecendo, embora superficialmente, as origens e as expectativas ocultas de Judas Iscariotes, - um proativo zeloso (zelota) da integridade e da soberania de Israel, pelo que sabemos – ele deve ter intuído, progressivamente, o evidente distanciamento de Jesus em adotar, claramente, a estratégia de confronto direto, radical e armado contra os romanos, principalmente, que Judas imaginava, desejava e esperava. Poderíamos dizer que Judas se decepcionou com Jesus por Ele ter se desviado do seu original objetivo que era ‘reconstruir o novo Israel’ e implementar ‘a governança de Deus’, e não a dos romanos. Judas alimentou dentro de si, - mesmo sem ter tido, sinais evidentes para confirmá-lo, - expectativas sociopolíticas que não foram atendidas pelo Mestre. A decepção psicológica que cria um forte sentimento de frustração ocorre quando idealizamos, sobremaneira, o outro. Quando, de forma acrítica, o colocamos num pedestal alto demais, esquecendo-nos que o outro também é humano, falho, frágil e que pode fazer escolhas que, para nós, parecem incompreensíveis, mas que, não por isso, se tornam ilegítimas. É difícil comprovar tal hipótese, mas me parece não totalmente descabida. É só analisar o nosso comportamento no nosso cotidiano, nas nossas relações interpessoais onde de forma consciente ou inconsciente projetamos no outro expectativas, qualidades, sonhos que, fundamentalmente são nossos, e não dele! Sem falar no fato de que numa relação nunca é uma pessoa só que muda, ou seja, o outro pode ter mudado demais em relação àquilo que aparentava ou afirmava inicialmente, mas certamente, nós também, na convivência acabamos ‘forçando a barra’ para que o outro se encaixe nos nossos esquemas e categorias. 

E, como muitas vezes ocorre numa relação amorosa um tanto neurótica, quando um grande amor se sente traído desponta o desejo insano de ‘destruí-lo’. Judas, certamente, amou e admirou, sobremaneira, Jesus, a ponto de querer destruí-lo quando teve a percepção subjetiva de que o Rabi havia distorcido tudo e se desviado do seu projeto original de ‘instaurar um novo reinado’ que, tragicamente, naqueles dias, em Jerusalém, já estava fadado ao fracasso. 


VIENI FUORI, ADESSO!

 VIENI FUORI DA UN SEPOLCRO-VITA.....

....dove non c’é piú luce e troppo stretti e tenui sono gli spiragli per contemplare il bagliore delle stelle altrui;

....dove le lacrime salate del tuo sconosciuto dolore ti innondano e affogano la tua superstite speranza in un indecifrabile malore;

....dove il disgustoso odore di necrosi che invade le tue narine corrompe e consuma ogni ambizione e mania di apoteosi;

...dove non ci son piú sorrisi, né sussurri, e nemmeno affetti di amici e di famigliari che fan sognare e amar, diletti;

...dove la neurosi recalcitrante dei guerrafondai di destra e di sinistra non risparmia, incalzante, neppure bambini e giardini ripieni di gelsomini;

...dove ‘dio’ é invano idolatrato, e da despoti dell’ordine e da imprenditori della fede é sacrilegamente manipolato;

VIENI FUORI, adesso, perché oltre al tuo esistono altri sepolcri aspettando che compassivi umani rotolino la pietra e liberino il nuovo uomo e la nuova donna che lá vivono come prigionieri desumani.

VIENI FUORI, adesso, finché puoi, e esci dall’oblio del tuo sepolcro perché né l’ombra dei cipressi e né il pianto dei depressi tornerá meno duro il sonno della morte che ti viene incontro.

                     RINASCI, E FÁ RINASCERE! 


sábado, 23 de março de 2024

SEMANA SANTA - CRUCIFICADORES E CRUCIFICADOS

Queiramos ou não no nosso dia a dia atuamos como intolerantes e cruéis crucificadores de pessoas. E, simultaneamente, podemos fazer a experiência de sermos ou sentirmos que nós mesmos somos crucificados, quando somos vítimas do ódio e da brutalidade alheia. Este aparente paradoxo o carregamos dentro de nós, como um fardo pesado e quase maldito de culturas milenares que reproduzimos e alimentamos.  Como se fosse algo inato, próprio da natureza biológica hominídea. Às vezes, parece que a nossa capacidade de controlar e dominar impulsos destrutivos, e de analisar e disciplinar comportamentos e decisões, nos ofereça a ilusão de superar esse binômio crucificador-crucificado, mas, afinal, mais uma vez, constatamos que nossas recaídas se tornam sempre mais frequentes. Acabamos, no fim, aceitando essa contradição existencial aparentemente estruturante do nosso ser social. 

    A Semana Santa que estamos a iniciar parece reproduzir ‘ad infinitum’ e, até, fortalecer a visão-prática binária crucificador-crucificado. No entanto, ela deveria, na realidade, nos oferecer uma visão-prática diametralmente oposta. A dinâmica das celebrações e os conteúdos próprios previstos nas celebrações, longe de conformar as pessoas em acolher quase que fatalmente a indissociável coexistência na mesma e única pessoa de um ser crucificador e de um ser crucificado, nos convida, ao contrário, a desvendar e a desmascarar quem são, hoje, de fato, os verdadeiros crucificadores com capacidade de produzir, estender e multiplicar morte, sofrimento, dor, destruição em grande escala. Não se trata, portanto, de negar que dentro da mesma pessoa existem obvias contradições, e uma inegável coexistência entre energias positivas e outras negativas, mas de identificar, isso sim, quem adquiriu força e poder de grande porte para canalizar energias destrutivas e cooptar mais pessoas para serem soldados subalternos a serviço da morte, da intolerância, do ódio como um verdadeiro ideal de vida, ou uma espécie de filosofia-espiritualidade que motiva e desperta para o ativismo espiritual destruidor, maléfico, crucificador de vidas. Concretamente, a semana santa deveria nos tornar mais perspicazes em identificar e combater os Pilatos, os Herodes, o Sinédrio, e setores da massa alienada e sedenta de sangue. Diante dos terríveis extremismos e polarizações inegáveis dentro da própria igreja, não há mais espaço para celebrar a semana santa de forma intimista e devocional. Com efeito, há no seu seio grupos de batizados que fazem verdadeiras cruzadas para ‘crucificar’ aqueles que já não chamam de irmãos ou amigos, e sim de hereges, comunistas, cismáticos heterodoxos. São aqueles falsos seguidores de Jesus que não aceitam o Crucificado derrotado e humilhado de Nazaré que praticava, compreensão, tolerância, compaixão. Eles são verdadeiros soldados de um exército que está permanentemente pronto a deflagrar verdadeiras batalhas espirituais em nome de um projeto político conservador e violento em que a reencarnação de Pilatos, Herodes, sumos sacerdotes e extremistas da massa alienada entraram em suas mentes e corações, dominando e manipulando. Não há como não ver neles, hoje, a ação assassina dos crucificadores de ontem. 

Não há mais como contemplar no Crucificado inerme, solitário, abandonado de ontem os crucificados de hoje espalhados pelos cinco continentes. Muitos deles, mesmo perseguidos e caluniados teimam em construir e tecer pequenas e aparentemente frágeis redes de resistência e solidariedade. São dignos continuadores da inconformidade daquelas poucas mulheres que teimavam ir ao sepulcro, acreditando que, um dia, aquele lugar de morte, sem o cadáver do crucificado, iria emanar uma luz e uma esperança jamais imaginada! Continuemos a ser ‘pacíficos combatentes’. de uma ‘causa vencida’!


sexta-feira, 22 de março de 2024

Crescimento da dengue está relacionado com desmatamento e crise climática, diz estudo da Fiocruz

A incidência cada vez maior da dengue em áreas onde antes a doença era incomum está diretamente relacionada com as constantes ondas de calor causadas pelas mudanças climáticas e a ocupação humana crescente de áreas recém-desmatadas. Essa é a conclusão de um novo estudo por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e divulgado na semana passada na revista Scientific Reports. O estudo utilizou técnicas de mineração de dados para identificar indicadores climáticos e demográficos que pudessem explicar o crescimento do número de casos de dengue nas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil. De acordo com a análise, a ocorrência de anomalias de temperatura por período prolongado, em especial ondas de calor, associado com a urbanização e o crescimento populacional de áreas antes ocupadas por vegetação, seriam os principais fatores que resultaram no aumento da incidência da doença entre 2014 e 2020.

“No interior do Paraná, Goiás, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul, o aumento de temperaturas está se tornando quase permanente. A gente tinha cinco dias de anomalia de calor, agora são 20, 30 dias de calor acima da média ao longo do verão. Isso dispara o processo de transmissão da dengue, tanto por causa do mosquito [Aedes aegypti] quanto pela circulação de pessoas”, explicou Christovam Barcellos, pesquisador da Fiocruz e um dos autores do estudo. Além do calor acima da média, o avanço do desmatamento, principalmente no Cerrado, vem favorecendo a proliferação da dengue no Centro-Oeste brasileiro. “Nessas regiões que estão sofrendo com altas de temperatura, também temos visto um desmatamento muito acelerado. E dentro do Cerrado, há as cidades que já têm ilhas de calor, áreas de subúrbio ou periferias com péssimas condições de saneamento, tornando mais difícil combater o mosquito”, afirmou Barcellos. Folha e O Globo deram mais informações sobre o estudo.(IHU)


Câmara derruba proteção a campos naturais e expõe 48 mi de hectares a desmate

Nesta quarta-feira (20), a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, por 38 votos a 18, o substitutivo ao PL 364/2019, que elimina a proteção ambiental da vegetação nativa nas chamadas “áreas não florestais” em todo o país. O projeto – de autoria do ruralista Alceu Moreira (MDB-RS) e relatado pelo também ruralista Lucas Redecker (PSDB-RS) – expõe campos nativos em todos os biomas brasileiros à conversão para expansão agrícola. Cerca de 48 milhões de hectares dessas áreas em todo o país – uma extensão maior que o Paraguai – ficarão sujeitos ao trator. Como o projeto tramitou em caráter terminativo, deve ser encaminhado diretamente ao plenário do Senado. O texto só será apreciado no plenário da Câmara caso um recurso seja aprovado pela maioria dos deputados que votaram pela sua aprovação – ou seja, a chance é baixa.

A bancada ruralista argumentou, durante a votação, que o projeto não teria “qualquer relação com desmatamento” e que “nenhuma árvore seria derrubada”. Segundo os representantes da Frente Parlamentar Agropecuária e seus aliados, o projeto se destinaria apenas a “flexibilizar” as áreas de proteção ambiental para permitir a expansão agropecuária nos chamados campos de altitude da Mata Atlântica. O texto, no entanto, prevê que as áreas caracterizadas como não florestais em todo o país possam ser exploradas sem restrições, mesmo que guardem vegetação nativa. O único critério restritivo é que tenham sido utilizadas para plantio até julho de 2008. O projeto original retirava a proteção os campos de altitude, que representam menos de 5% da área total da Mata Atlântica, da lei que protege o bioma, e criava novas regras de proteção. O substitutivo apresentado altera a legislação ambiental brasileira e coloca todas as áreas de campos nativos na fogueira.

“O PL 364/2019 é a maior das boiadas contra todos os biomas brasileiros. Libera o desmatamento em todo o país para defender interesses privados. E com o falso argumento de que nenhuma árvore será derrubada, ignora a importância dos campos nativos e das formações não florestais que abrangem 50,6 milhões de hectares no Brasil [considerando, além dos campos nativos, áreas não florestais como as alagadas e de restinga]. É um ataque grave contra as agendas do clima, da água e da biodiversidade. Um atentado contra os nossos patrimônios naturais que recoloca o Brasil na contramão do mundo”, afirmou Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica. Segundo nota técnica da organização, considerando apenas campos nativos o projeto desprotege 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% dos Pampas (6,3 milhões de hectares), 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares) e quase 15 milhões de hectares na Amazônia. Somando-se os 5,4 milhões de hectares expostos na Mata Atlântica, o total de campos nativos vulneráveis ao desmatamento chegaria a 48 milhões de hectares. (IHU)


quarta-feira, 20 de março de 2024

Memórias e reflexões - Relações do regime militar com os povos indígenas e a igreja missionária no Brasil - I PARTE

Introdução

O artigo que nos foi proposto é, evidentemente, amplo e bastante complexo. Não nos cabe nesse contexto, reproduzir o que outros já disseram a respeito. Com efeito, existe farta literatura, documentação, ensaios, pesquisas e artigos específicos abordando diferentes dimensões e variados enfoques sobre a relação entre os povos indígenas no Brasil e a ditadura militar pós 64, e a contribuição da igreja missionária naquele período. Talvez seja mais interessante oferecer o meu testemunho pessoal, do que vi, li e ouvi, embora, - quando da minha chegada ao Brasil, - não tivesse feito ainda a escolha formal de me dedicar à causa indígena, algo que aconteceu um pouco mais tarde, em 1983. 

Afinal, eu cheguei a esse País em novembro de 1979 quando a política de ‘abertura lenta e progressiva’ por parte do governo do então presidente João Batista Figueiredo, o último general militar, havia sido iniciada, timidamente, alguns anos antes pelo seu ideólogo mais renomado, o chefe do gabinete da casa civil, general Golbery do Couto e Silva. Não podemos ignorar, também, que, mesmo com a chegada da democracia formal e a devolução do poder político-administrativo federal aos civis da ‘Nova República’, em 1985, a ‘política indigenista’ oficial permaneceu praticamente inalterada até a Constituição de 1988 e, mesmo após a sua publicação, não se pode ignorar as reiteradas e graves contradições que têm acompanhado até hoje a relação entre os povos indígenas e os diferentes governos que se sucederam. Sem falar que uma mudança formal de sistema de governo não significa automática e imediatamente uma mudança metodológica, relacional e de consciência por parte dos diferentes atores sociais. 

Nesse sentido queria deixar claro que não existe em mim a preocupação de ‘comprovar histórica e bibliograficamente’ o que colocarei aqui como uma simples ‘memória e testemunho’ do que direta e indiretamente tenho presenciado nesse tema espinhoso ao longo desses anos. Considero importante perceber que, afinal, o que está em jogo não é a mera interpretação ou análise de uma página sombria de um passado não tão distante e sim, rever, hoje, a nossa postura ética e política perante povos culturalmente diferenciados que, embora existindo e persistindo numa democracia, supostamente, madura, continuam a sofrer discriminação, invisibilidade e atentados de toda ordem. A nossa atenção e vigilância não podem arrefecer, pois, ‘golpes’ contra eles e contra seus parceiros são planejados a toda hora não somente por saudosistas golpistas, mas também por aqueles que se autodenominam ‘democratas’!

PRIMEIRA PARTE

Não podemos imaginar que os militares que assumiram o poder em 64 e implantaram um regime autoritário-ditatorial tivessem herdado uma política indigenista profundamente respeitosa dos direitos indígenas e que, consequentemente, houvesse necessidade de a refundar integralmente. A política indigenista oficial já se encontrava bastante deteriorada de forma que os novos governantes militares acharam que era o momento histórico propício para apagar de um lado os resquícios de um determinado indigenismo tradicional, positivista, inspirado no Marechal Cândido Rondon que, - mesmo de forma contraditória, defendia a ‘existência e a alteridade’ dos povos indígenas, - e, do outro lado, promover outros modelos de indigenismo, mas, agora,  sob a lógica do ‘neodesenvolvimentismo autoritário’. Uma nova e aguerrida empreitada econômica que não deixava de fora nenhum pedacinho do imenso território nacional com seus inúmeros e ainda desconhecidos recursos naturais. No meu modo de ver, aqui reside a primeira característica do regime militar pós-golpe com relação ao seu trato sociopolítico com os povos indígenas. Lembro-me com bastante nitidez já nos primeiros meses em São Paulo, já escolástico, através de leituras de jornais e revistas especializadas como era ainda muito forte a ideia de que a ‘Amazônia’ era um território sem gente, um ‘vácuo demográfico’, e que era estrategicamente urgente e importante para o ‘gigante adormecido’ integrar também e, talvez, sobretudo, aquela importante região tão rica em água doce, madeira, minérios, e biomas de todo tipo. No nosso trabalho pastoral no Parque Santa Madalena lembro-me que conheci pessoas ligadas à compra e venda de madeira nobre para a construção civil e para a exportação. Na época, os irmãos de um catequista me diziam que a madeira da loja da família provinha de uma longínqua cidade do Maranhão, Imperatriz, totalmente desconhecida por mim. Vim a descobrir mais tarde que a extração daquela madeira nobre se situava na Reserva biológica do Gurupi e nas terras ainda não demarcadas  dos povos Awá-Guajá, Ka’apor e Tembé. 

Desenvolver, crescer, investir, exportar havia se tornado uma febre nacional; afinal, a lógica econômica subjacente naquela época era aquela ditada e propagandeada pelo poderoso ministro da Fazenda, Delfim Neto, segundo a qual era preciso, primeiramente, ‘deixar o bolo crescer’ para, somente depois, reparti-lo entre todos. Ficava patente, desde logo, que não seria por causa de ‘insignificantes grupinhos de índios sentados sobre jazidas de minério estratégico’ que o País iria se deter na sua vocação de ‘gigante econômico’. Infelizmente, já no começo dos anos 80 o bolo não vinha crescendo conforme o esperado e, pior, dava claros sinais de que já havia sido apropriado só por alguns. O fato é que a década de 80 no Brasil foi considerada desde um ponto de vista econômico uma ‘década perdida’. 

É nessa nova aposta governamental de integrar o País, crescer, preencher vácuos demográficos, investir na abertura de novas rodovias, hidrelétricas e outras pérolas mais, sem algum debate nacional e sem algum tipo de preocupação com eventuais impactos sobre as populações indígenas propositalmente ‘ignoradas e invisibilizadas’ que aparecem as primeiras denúncias de massacres, abusos, violência, extermínio, deportações e internações de indígenas e de comunidades inteiras. No início dos anos 80, já estando eu a trabalhar com os índios Ka’apor e Awá, conheci o famoso antropólogo e, à época, consultor do BID, Shelton Davis, autor do livro ‘As vítimas do milagre’. No seu livro-documento relata não somente a lógica, os impactos dos grandes empreendimentos econômicos promovidos pelo regime militar, na Amazônia, (rodovia Transamazônica em 1970) e quem realmente se beneficiou, mas também suas vítimas, expondo os casos terrificantes das atrocidades cometidas contra os povos indígenas, principalmente, os Waimiri-Atroari. 

O relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amazonas identificou nomes de mais de 2 mil indivíduos do povo Waimiri-Atroari assassinados, entre 1972 e 1977, na ocasião da abertura da rodovia BR174, que conecta Manaus a Boa Vista. Tudo isso veio à tona em 1968 com a divulgação dos resultados das investigações feitas pelo procurador Jair de Figueiredo Correia, documento que ficou conhecido como Relatório Figueiredo. A Comissão Nacional da Verdade, em 2014, apontou a inclusão de dez etnias indígenas entre as vítimas das violações de direitos humanos no regime militar. Segundo o relatório, de 1964 a 1985, 8.350 indígenas foram mortos em massacres, roubo de terras, remoções forçadas dos territórios, prisões, torturas e maus-tratos. Todas essas denúncias ultrapassaram as fronteiras brasileiras por meio da ação de ativistas, acadêmicos, jornalistas, exilados, missionários, entre outros, tornando-se um dos grandes desafios para o governo militar. Como consequência disso a junta militar extinguiu o antigo órgão indigenista, o SPI (Serviço Proteção Indígena) e criou a Funai em 1967. Um novo nome para limpar a sua ficha junto à comunidade internacional que o pressionava, mas deixando, afinal, as mesmas práticas anteriores onde o indígena, no fundo, continuava sendo bestializado e visto como ‘não gente, preguiçoso, bárbaro, improdutivo e um permanente estorvo ao crescimento econômico e civilizacional’. Esta desumanização perseguia, inclusive, populações como a cabocla, considerada meio indígena. 

Lembro-me outra característica que chamava a minha atenção no final da década de 70 e era a onipresença da ‘Doutrina de Segurança Nacional’ que permeava todo o tecido social e político do Brasil. Inclusive, naquele período conjuntural, estavam sendo deflagradas as primeiras grandes greves dos metalúrgicos do ABC, tendo Lula como líder.  Quando foi determinada a prisão da diretoria do Sindicato de São Bernardo e Santo André a motivação foi ‘grave atentado à segurança nacional’. Isto valia com maior razão na problemática que envolvia a relação com os povos indígenas, principalmente por 2 grandes motivos:

 1. A militarização das faixas de fronteira. A presença difusa de numerosas populações indígenas, embora não populosas, espalhadas ao longo de 6.500 km. de fronteira, sem infraestruturas, presença militar ostensiva, numa região nevrálgica como a região Norte, - considerada fundamental para assegurar a soberania nacional, - exigia uma maior e mais maciça presença do estado. O Projeto Calha Norte que foi criado em 1985 pelo governo Sarney veio a dar continuidade e a consagrar essa mesma preocupação de caráter mais militar, de ocupação dessa imensa e variada faixa fronteiriça, inclusive contratando números indígenas para fazer parte das forças armadas locais. Todo esse processo de militarização em nome da salvaguarda da soberania provocou não poucos problemas para aquelas populações. Houve, na época, muitas denúncias de casos de agressão e violência sexual contra mulheres indígenas por parte de militares, entre outras. 

2. O pavor patológico do regime de que os povos indígenas se transformassem em ‘nações indígenas’. Pela lógica da segurança nacional havia também o medo de que essas etnias poderiam, um dia se transformar em ‘nações indígenas’, reivindicando independência ou sendo berço acolhedor de quem reivindicasse desligamento político da única grande nação brasileira. Não se pode esquecer que a segurança era o eixo central que sustentava a legitimidade do regime de “democracia autoritária”, imposta pelos militares com a conivência das elites econômicas em 1964. Os generais brasileiros entendiam o mundo, em geral, e o Brasil em particular, como um conflito ideológico que introduzia o país numa guerra cotidiana. Nestes lugares, o índio, passou a formar parte daqueles grupos populacionais que, potencialmente, podiam apoiar seus antagonistas ideológicos. Lembro bem que ainda no início dos anos 80 o próprio CIMI era, habitualmente, investigado como um foco de ‘comunismo de especial perigo’, mas também eram considerados como tais e, portanto, vigiados, muitos pesquisadores e periodistas, inclusive alguns servidores da FUNAI que apoiaram abertamente o livre direito de reunião das lideranças indígenas.

3. Uma terceira característica que se evidenciava à época, que continua extremamente atual e que acende ainda hoje um debate acalorado quando não agressivo, - embora superada desde um ponto de vista do direito formal, - é a questão bastante ampla e complexa que diz respeito à perspectiva de o indígena poder vir a ser ‘assimilado/integrado’ à sociedade nacional como ‘um qualquer entre seus pares’. Nesse sentido,  diluído culturalmente e sem identidade definida, ele perderia o direito de ocupar e usufruir ‘das terras extensas que ele mesmo não sabe explorar direito’ e, ainda, se ‘sentir política e moralmente obrigado a congelar a sua cultura’ mesmo diante das mudanças radicais que têm ocorrido. Quando iniciei a trabalhar no CIMI era muito forte a ideia de ‘emancipar os índios’ e serem ‘integrados à sociedade nacional’ onde a palavra integração não indicava um auspicável diálogo pluricultural com o outro e sim, uma clara tentativa de assmilação/absorção à ‘civilização nacional’ esvaziando sua identidade, história e cultura específicas. 

A questão da emancipação havia sido proposta pelo ministro do Interior Rangel Reis, em 1978, e foi ressurgida pelo presidente da FUNAI, Nobre da Veiga, em 1981. Nesta iniciativa que pretendia fechar a questão indígena definitivamente, podem-se achar características comuns ao conflito, assim como à ideologia dominante no Estado e na elite brasileira. O medo que havia nas terras indígenas nas faixas fronteiriças com outros países ou as pressões para que toda discussão sobre terras indígenas passasse por um Conselho Nacional de Segurança, criaram a imagem do índio como uma permanente ameaça à segurança nacional, que dificilmente conseguia esconder certos interesses e pressões dos diferentes grupos econômicos e de poder, e sua projeção sobre as terras indígenas. 

Ao se consumar esse plano de assimilação/emancipação o estado sentir-se-ia livre para não ter que implementar políticas especificas e, principalmente, o dever de assegurar territórios adequados como habitat étnico-cultural. Abriria, assim, as portas para novos processos de exploração e, para garantir a existência indígena, o estado doaria aos índios ‘lotes familiares de terra como um qualquer anônimo camponês da região’. O regime militar tentou de toda forma implementar tudo isso tendo o claro apoio daquele extenso exército de lavradores expulsos de suas terras, outros manipulados e utilizados por fazendeiros para abrir pastagens, ou por madeireiros, garimpeiros e empresas mineradoras que acreditavam firmemente no lema ‘muita terra para pouco índio’. Seja o estado, bem como esses setores da sociedade, embora por diferentes motivos, se juntavam para combater a existência/permanência das populações indígenas que, afinal, todos eles os viam como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento, ao passo que, eles também, poderiam participar para fazer crescer o bolo, desde que abrissem mão de seus imensos territórios e da ‘conservação de arcaicos costumes que jamais os transformariam em cidadãos úteis e produtivos para a nação’. Não é difícil compreender a atualidade de tal pensamento aos nossos dias, principalmente quando aparecem presidentes da República que em nome de um renovado desenvolvimento e de inéditas oportunidades, supostamente ‘para todos’, estimula inúmeras lideranças indígenas a se transformarem ‘ipso facto’ em potenciais empresários da soja ou micro-empresários no agronegócio, mas dentro de suas próprias terras indígenas e em parceria com o capital privado...

Uma última característica relacionada à anterior e que revela a concepção que o regime militar possuia com relação aos indígenas nos aparece de forma clara quando da criação da FUNAI, e que revela um subjacente racismo e um profundo pessimismo quanto ao valor intrínseco das populações indígenas. A FUNAI de que já acenamos, anteriormente, foi criada sob a premissa do relacionamento desigual entre o indígena e o Estado. A instituição tratou o indígena, oficialmente, como um ser passivo e primitivo, um incapaz  que tinha que depender da tutela estatal não só para sobreviver, mas também para se desenvolver “corretamente”. Esta institucionalização do ‘racismo governamental’ respondia, de certa forma, ao racismo difuso que se aninhava na alma do Brasil. A legislação da qual nasceu a FUNAI (Lei nº 5.371, 5 de dezembro 1967) constatava essa situação ao estabelecer uma dominação prática e legislativa sobre o índio, que não dava a ele o direito de negociar ou se opor. Por isso, pode-se comprovar porque a FUNAI teve um caráter policial e arbitral entre os povos nativos. Não só com eles, mas também na regulação e na permissão de entradas e saídas de missionários, pesquisadores, antropólogos. Só lembrar, por exemplo, que até poucos anos atrás um missionário estrangeiro que vinha trabalhar ao Brasil para obter o visto tinha que declarar que não iria trabalhar entre as comunidades indígenas. Este marco jurídico da FUNAI foi ratificado e ampliado na sua concepção racista e de dominação com o Estatuto do Índio de 1973 que manteve um respeito aparente à normativa internacional antirracista e de apoio aos povos indígenas, mas que escondia os mecanismos necessários para continuar com as lógicas tradicionais de dominação. “O índio para a FUNAI – disse o presidente da Instituição Bandeira de Mello  em maio de 1971 – é um ser humano, filho de Deus e digno de todo respeito, estimulo e dedicação. A ele deverão ser dados todos os implementos morais, econômicos e sociais para que dentro de prazo flexível ele possa integrar-se ao mundo civilizado”. Esta visão e prática melhorou bastante a partir dos anos 90, pelo menos formalmente, para voltar de forma escrachada no deletério governo Bolsonaro em que os Coordenadores Regionais da Funai eram todos militares que comungavam ainda da arcaica e inconstitucional visão do índio como selvagem a ser assimilado à comunidade nacional e, possivelmente como empreendedor e parceiro subalterno de negócios com empresas particulares. 

Terrificante nessa relação entre Regime militar e populações indígenas é que os militares não somente permitiram e apoiaram aqueles indivíduos e/ou empresas nacionais e multinacionais desejosas de assaltar territórios e patrimônios indígenas construindo infraestruturas e legislando em favor desses notórios assaltantes, mas participou diretamente nas espoliações formais, através de claros atos de corrupção, manipulação, extorsão de seus funcionários públicos, nas diferentes administrações federais espalhadas no território nacional. Portanto, não foi somente cúmplice, mas autor de crimes! Não há de se estranhar, também, como ao longo do período da ditadura, e mesmo após ela, ninguém de quem cometeu comprovadamente graves crimes contra os indígenas foi punido. No máximo, houve exoneração de seus cargos. Além disso, diga-se que, apesar do enorme volume de denúncias contra o regime e as pressões exercidas por instituições nacionais e governos internacionais, não impediram que o regime militar apressasse uma espécie de conciliação histórica com as populações indígenas. Ele seguiu bastante imperturbável o seu plano de execução de grandes projetos e apoiando práticas ilícitas de pesquisa e garimpagem de todo tipo em terras indígenas, sem se importar, excessivamente, de seus impactos ambientais e sociais. Atrevo-me, até, a dizer que essa herança maldita feita de relações assimétricas, racistas, desiguais, o assim chamado ‘entulho autoritário do regime militar’ vem permeando, embora com algumas variações, os vários governos que se sucederam ao longo desses 60 anos, independentemente de seus espectros político-ideológicos, de direita ou de esquerda. Basta lembrar, por exemplo, que a Constituição Federal de 1988 que prevê a demarcação definitiva de todas as terras indígenas do Brasil no prazo de 5 anos, até hoje não foi cumprida por nenhum governo dito democrático. E, na atual conjuntura parlamentar, extremamente desfavorável aos povos indígenas, ressuscitam-se delírios jurídicos como o marco temporal para que de um lado não se demarque ‘um milímetro a mais de terra indígena’ daquela que era reconhecida em 1988, e do outro, se permita que empresas e facções continuem a assaltar um rico patrimônio que, afinal, é de propriedade da União, sendo que aos indígenas só cabe o seu usufruto.


Memórias e reflexões - Relações do regime militar com os povos indígenas e a igreja missionária no Brasil - II PARTE

 II Parte

Nessa segunda parte gostaria de resgatar e sistematizar, por grandes linhas, a partir das minhas memórias iniciais, o árduo, corajoso e profético trabalho pastoral de várias pessoas e setores da igreja missionária junto aos povos indígenas durante o regime militar. Em 1983, encontrando-me já no Maranhão e recém ingressado no pequeno grupo de missionários do CIMI, então formado pelos Regionais do Maranhão e Goiás, tive a sorte de conhecer o Padre Antônio Iasi, um dos fundadores do CIMI (Conselho Indigenista Missionário, fundado em 1972 como órgão anexo à CNBB). Convidado ao Maranhão pelo então coordenador regional, o saudoso Padre Carlo Ubbiali, o padre Iasi permaneceu conosco algumas semanas, período suficiente para extrairmos do seu vasto conhecimento da realidade social nacional, - no que tange a questão indígena e a atuação da igreja católica, - inúmeras informações e testemunhos de vida, principalmente na década de chumbo, a década de 70. Sem falar, da riqueza de experiência de vida do próprio padre Carlos com quem passei a trabalhar junto ao longo de quase 20 anos, e que havia chegado ao Maranhão no início dos anos 70. O próprio padre Carlos narrava que havia tido conhecimento direto do que significava ser ‘igreja dos pobres’ naqueles anos, no interior do Maranhão, onde os conflitos por terra eclodiam de forma sempre mais violenta. E onde a onipresente Polícia Federal possuía inúmeros informantes. É bom que se diga que até a metade da década de 80 ainda era possível, no nosso interior maranhense, receber algumas ‘estranhas visitas’ de supostos ‘perseguidos políticos’ que pediam hospedagem ou apoio a ‘padres com fama de subversivos’ para viajar para fora do País ou se esconder, supostamente para fugir da perseguição política do governo militar. Após uma breve entrevista não era difícil desmascará-los e perceber que não passavam de incautos informantes da Polícia Federal que ainda tinha uma atuação relevante na identificação e no fichamento de missionários ‘subversivos’ como a ‘os repressores’ amavam definir aqueles católicos que se colocavam ao lado de indígenas e lavradores para apoiar e defender seus direitos básicos. 

O meu período de ‘noviciado formativo’ para poder trabalhar, posteriormente, na pastoral indigenista, via CIMI, se deu a partir de textos, subsídios e pessoas que tinham suas raízes fincadas numa opção/postura já claramente assumida por um setor significativo da igreja católica, de inequivocável identificação com ‘os mais pobres’ da sociedade, e entre eles, os indígenas do Brasil. Aos dias atuais utilizar essa linguagem em certos ambientes de igreja parece algo arcaico e profundamente démodé, contudo, perante o atual cenário em que vivemos de uma sociedade e igreja extremamente polarizadas, e intrinsecamente divididas entre direita vs. esquerda, tradição/conservadorismo vs. profecia/comunhão com os esquecidos da sociedade, é imprescindível que tenhamos uma definição pastoral sem ambiguidades como ‘alguns setores da igreja missionária indigenista’ tinham sob o regime militar. Passaria, sem delongas, portanto, a colocar algumas características que, subjetivamente, me parecem melhor retratar a relação da igreja missionária, ou de alguns setores dela, com os povos indígenas e, obviamente, tendo como pano de fundo a atuação do regime militar, que é o objeto do nosso artigo/testemunho.

1. Pode parecer óbvio, mas é bom lembrar que a igreja católica através de suas mais variegadas manifestações (congregações, ordens religiosas, pastorais sociais, leigos, dioceses, etc.) sempre tem atuado junto às populações indígenas, na maioria das vezes de forma desarticulada, desconexa, e sem um plano-projeto comum. Cada ator religioso atuava de acordo com a sua visão/carisma, com meios e objetivos próprios. Naturalmente, essa pluralidade de presenças revelava também oposições e contradições, mesmo tendo uma origem e uma denominação comum. Algumas dessas presenças missionárias atuavam junto à população indígena no sentido de tentar conquistar e colonizar suas almas e mentes e direcioná-la para a verdadeira religião; outras para ‘civilizá-la e humanizá-la; outras, ainda, para ‘purificá-la de práticas bárbaras quando não demoníacas; outras, enfim, para conhecê-la e com ela conviver, respeitar e valorizar, etc. Muitas práticas, hoje inaceitáveis, eram, na época,  assumidas como normais e naturais: o sistema de internatos de indígenas, formas de disciplinas e punições, doutrinação forçada ou induzida mediante presentes, sistemas de favorecimentos para ‘os índios convertidos’, demonização de festas e práticas culturais, etc. 

         A minha impressão é que a coincidência histórica da realização do Concílio Vaticano II (1962-1965) e do golpe militar (1964) acabou despertando a igreja para uma nova e progressiva tomada de consciência a respeito da sua missão entre os povos indígenas. De um lado a constatação de inúmeras presenças pastorais, cada uma agindo por conta própria e, em alguns casos, de forma quase que antagônica em relação a outras, - dentro da mesma igreja, - e, do outro lado, o aparecimento inegável de desafios comuns: o avanço das frentes agropastoris de conquista e ocupação, e de colonização que alcançavam os lugares mais isolados e recônditos do território nacional, provocando contatos violentos com novas etnias, disseminando doenças, esbulho, morte. Tudo isso fez emergir, paulatinamente, dentro de muitos atores missionários da igreja católica a necessidade de ter um denominador/pastoral comum ou, pelo menos, um sentir comum, um incipiente desejo de trocar ideias e experiências com outros missionários de outras regiões. 

Talvez, a consciência já madura, ou a necessidade premente de encontrar saídas comuns a problemas comuns tenha ajudado vários setores dessa igreja missionária a perceber que havia ameaças reais e imediatas à própria sobrevivência física e moral dos povos indígenas, bem maiores e mais graves do que certas práticas culturais que, equivocadamente, eles consideravam diabólicas. Lembro o testemunho de vários colegas missionários que imbuídos de um ‘espírito romântico e idílico’ e ainda exageradamente preocupados com sofisticadas modalidades de enculturação vinham ignorando o que estava se tramando contra o seu próprio povo indígena com que conviviam. Diante de informações e de denúncias de abusos, violência e invasões de vários tipos eles começaram a se questionar, e a rever radicalmente o sentido da sua presença com aquele determinado povo. Se a nova ideia de ‘evangelização’ vinda do Concílio juntamente com a consciência de que Deus lança suas ‘sementes’ também entre várias culturas e religiões ajudou a igreja a se reposicionar de forma mais humilde, acolhedora e sempre na escuta, o eclodir de formas novas de violência e atentados à vida de inteiras populações contribuiu, simultaneamente, a fazer com que a igreja repensasse a sua metodologia missionária não somente junto aos povos indígenas, mas também junto a um governo que estava se tornando, definitivamente, um inimigo da vida de povos que faziam parte do seu mesmo território. Diante de tudo isso não cabia mais a clássica preocupação de ‘converter índio’, mas de ‘salvar gente’ de um inferno histórico e real que tinha rosto e nome. Em suma, em lugar de ‘doutrinar’, ‘evangelizar’! Ser, como Jesus de Nazaré, ‘boa notícia’ para quantos estavam a fazer a experiência real de ouvir e sentir os efeitos de ‘más notícias’!


2.  Ao ingressar no CIMI, no início de 1983 ficou claro que, embora estivéssemos vinculados à CNBB, tínhamos bastante autonomia. Isso permitia que fossemos mais ágeis em verificar determinadas situações e fazer determinadas denúncias, sem precisarmos de permissão prévia de bispos ou de coordenadores nacionais. Ao mesmo tempo, o fato de estarmos ligados à CNBB nos dava um respaldo que outras entidades, à época, não possuíam. Não há como resgatar os primeiros passos de uma nova consciência e atuação da igreja junto aos indígenas sem mencionar as influências exercidas pelo documento ‘I’Yucá Piram’ (tirado do título de um poema de Gonçalves Dias ‘O índio, aquele que deve morrer), lançado em 1973 pelos primeiros fundadores do Cimi (Egídio, Antônio Iasi, e com a presença dos saudosos Dom Pedro Casaldaliga e Dom Tomás Balduíno). Esse documento fazia uma crítica contundente à política desenvolvimentista do regime militar que não aceitava que os índios resistissem e detivessem o avanço da construção de estradas e rodovias que incidiam diretamente em vários territórios indígenas. O documento que fazia denúncias claras e contextualizadas de violências e massacres contra várias etnias, identificando os diretos responsáveis numa época de censura e repressão, despertou múltiplas reações em todos os setores da sociedade, do governo militar e da própria igreja. Um fato ficou patente: aquela igreja que atuava calada, isolada, um tanto desconectada com o mundo e, às vezes, cúmplice indireta dos governos de turno, estava fadada a desaparecer. Assim se pensava à época! O documento deixava claro que o regime militar estava conivente com vários casos de genocídios e isso exigia justiça e um novo trato na relação com a população indígena. 

   Outra observação que gostaria de salientar é que desde o comecinho da atuação no nosso regional tínhamos uma constante articulação com a imprensa local. Fiquei percebendo, mais tarde, que foi justamente essa relação privilegiada com alguns jornalistas, que permitiu que muitos ilícitos cometidos em terras indígenas fossem publicados, produzindo muitas reações positivas e pressões favoráveis aos povos indígenas. Ainda hoje podemos constatar que o impacto, por exemplo, de um homicídio ou de uma violência contra um indígena repercute de uma forma bem diferente que violências cometidas contra pessoas de outras camadas da sociedade. Isto porque, graças à imprensa e à defesa intransigente e corajosa de alguns setores da igreja o indígena havia adquirido uma ‘força moral pública’ que outras vítimas sociais ainda não tinham. Tudo isso permitiu que a sociedade em geral, bem como outros setores da igreja pudessem perceber a gravidade de certas situações, contribuindo, assim, na formação de grupos de pressão, entidades de apoio, comissões indigenistas da sociedade civil e acadêmicas apoiando os direitos indígenas e se opondo, cada um do seu jeito, ao regime militar e a seus aliados, agora, notoriamente, racista e anti-indígena. Naturalmente, essa exposição pública despertou indignações e raivas em muitos ‘denunciados’ que reagiam quase sempre de forma violenta. Não há como negar que muitos missionários, religiosos e leigos, nessa igreja missionária ao lado dos povos indígenas fizeram a experiência angustiante da insegurança, das ameaças, dos atentados e, alguns, do martírio (Pe. João Bosco Bournier, Ir. Vicente Cañas, Pe. Ezequiele Ramin, só para citar alguns)

     Eu que tive a sorte de presenciar as primeiras greves do ABC e suas repercussões junto ao regime, – como já disse, - e, ao mesmo tempo, as denúncias ainda muito fortes de genocídio endereçadas ao governo militar, atrevo-me a dizer que estas últimas foram mais determinantes para apressar a ‘gradual abertura’ e subsequente queda do regime golpista do que as primeiras (as greves). A repercussão internacional causada pelas denúncias de violência e massacre contra indígenas foi mais determinante do que o movimento grevista, inclusive porque o ‘milagre econômico’ no início dos anos 80 já não passava de um ‘truque mágico’ ostensivamente desmascarado. Queria finalizar esse ponto reiterando como a pressão internacional e nacional e, ao mesmo tempo, a necessidade sempre mais premente de o regime mostrar ao mundo a sua boa vontade em amenizar o seu estilo truculento e autoritário, e sinalizando a gradual e prometida abertura política, contribuiu para que, por exemplo, muitas terras indígenas, inclusive no Maranhão, fossem demarcadas e homologadas, justamente entre 1979-1983 (60% do total). Pude constatar com os meus próprios olhos, no início de 1983, a mudança radical positiva dos Ka’apor no Alto Turiaçu, assim que lhes foi entregue, totalmente legalizado, o seu território originário!

3. Queria finalizar esse terceiro e último ponto colocando alguns eixos centrais norteadores da ação missionária daquela parte de igreja que aderiu ao Concílio e que se ‘deixou converter’ pelos povos indígenas, principalmente naquele contexto de ‘ânimos acirrados, de perseguição latente, de caça ao índio, de subversão’ e outras oposições e conflitualidades tão comuns à época. 

Um dos primeiros elementos que aprendemos, à época, ao nos aproximar titubeantes ao complexo e exaltante mundo dos povos indígenas foi a centralidade do sentido/significado do território indígena, ou seja, assegurar o direito a um espaço físico, étnico-cultural, existencial e, - porque não, - sagrado, para que um determinado povo se reproduza plenamente como tal, em todas as suas dimensões. Se, inicialmente, achávamos que era só uma questão técnica, de dimensões e tamanhos geográficos, aos poucos, mergulhando no sentir indígena, descobríamos que era uma questão bem mais profunda e radical. A questão não era ‘quanta terra’ devia ser reservada ou protegida, mas ‘qual terra’, entrevendo que ‘aquela terra específica’, carregada de sentidos e sacralidade, era determinante para a sua identidade única, diferenciada e própria. Decididamente, descobríamos que estávamos numa outra frequência de onda e, ao ver a relação que os indígenas reservavam àquela que outrora era chamada por muitos de ‘mãe terra’ entendíamos, aos poucos, o sentido de sua resistência e de suas implacáveis reações contra aqueles que queriam ocupá-la e destruí-la. Paradoxalmente, na época do regime eram os territórios indígenas que deviam ser reduzidos e/ou disponibilizados para que a ‘nação’ como um todo pudesse se beneficiar, e não as extensas fazendas acumuladas graças às grilagens e manipulações cartoriais. Certamente, alguém poderá lembrar que não precisamos voltar a esse passado para comprovar que aos nossos dias permanece ainda inalterada a relação com os territórios indígenas por parte do estado nacional. Não há como se espantar se existe, após 60 anos, presidentes da República que ignoram cinicamente a Constituição e prometem (aqui sim, cumprindo) não demarcar ‘um milímetro sequer’ das terras indígenas que ainda não estão demarcadas! 

A ampla e desafiadora luta pela ‘terra sem males’ e por ‘novos céus e novas terras’ exerciam no ideário missionário uma força mobilizadora e motivacional tão forte que foi percebida também pelos próprios indígenas. O conhecimento progressivo por parte de muitos povos de como se davam os mecanismos legais de ‘identificação, demarcação, homologação, etc.’ de um determinado território despertava, simultaneamente, o interesse em se organizar e capacitar para encontrar novas formas para defendê-lo e protegê-lo, sem esperar pelos organismos e instituições prepostos para tanto. No nosso caso, no Maranhão, concretamente, o início da década de 80 foi marcada por inúmeras assembleias Inter-étnicas promovidas pelo Regional, juntando etnias que até poucos anos antes eram inimigas históricas. Nesse sentido a luta coletiva por terra, sem interferir na identidade específica de cada grupo, contribuiu não somente para fortalecer uma causa específica comum, o direito à terra, mas deu origem àquilo que, posteriormente, se tornou o ‘movimento indígena’ nas suas mais diferentes modalidades. Acredito ser este, hoje, o principal legado que nos foi deixado pela ação missionária da época na luta pela terra junto aos povos indígenas.

Um segundo e último eixo que gostaria de ressaltar, e que tem marcado profundamente a nossa metodologia missionária, - e que volta e meia era reafirmado quando da escolha de prioridades e planos trienais, - dizia respeito à autonomia/autodeterminação dos povos indígenas. Num regime autoritário de caráter paternalista e assistencialista onde o ‘grande pai’ – o governo militar, através da FUNAI, - tutelava radicalmente cada índio e todos os índios, sem consultar e sem envolver, - porque o considerava ingênuo, imaturo, incapaz, - era imprescindível reafirmar e promover a plena autonomia e capacidade de cada povo de se autogerir. A mera afirmação do princípio de autonomia não diz muito sobre a complexidade e o conjunto de consequências práticas e metodológicas que dele derivam. Era, e é, concretamente, o reconhecimento que cada povo tem plena maturidade, legitimidade e autonomia para dizer e decidir o que lhe parecia essencial em todas as suas dimensões: educação indígena, assistência à saúde de acordo com as suas concepções e práticas culturais, liberdade e respeito para escolher suas formas de organização, pleno respeito na hora de um povo introduzir determinadas mudanças culturais. Compreender que, como igreja, somos parceiros fraternos e não tutores dos índios ou indutores de processos e decisões que cabem somente a eles, não tem sido algo fácil de absorver. Acredito que é fundamental ainda hoje radicalizar esse princípio da autodeterminação, principalmente quando o próprio estado através de seus governos de direita ou de esquerda que seja, tem se demonstrado incapaz de dialogar e negociar de forma madura e respeitosa com os indígenas, principalmente quando quer impor obras de grande impacto ambiental e social em seus territórios, supostamente para o bem da nação. Aceitar e se adequar ao ritmo diferenciado e próprio, e à compreensão gradual que os vários povos possuem sobre determinadas realidades é um aprendizado permanente que requer paciência e confiança recíproca. Não há como esconder como, ainda hoje, existem dentro da igreja missionária indigenista inúmeras tentativas de falar em nome dos índios, de ser seu porta-voz, e de induzi-los, sorrateiramente, a fazer determinadas escolhas que, supostamente, são as mais certas. Isto manifesta ainda um velado sentimento de superioridade e racista, ranço tipicamente autoritário. Acredito, enfim, que esse princípio de respeito pela plena autonomia dos povos indígenas representa um desafio pedagógico e metodológico central e de extrema atualidade, em vista do futuro das nossas relações com os povos indígenas, não só como igreja, ou sociedade civil, mas também com relação ao próprio governo, relações essas que deveriam ser sempre mais simétricas e respeitosas.

Conclusão

Percebo que pode ter ficado na sombra o aparentemente exitoso caminhar indígena durante esses sessentas curtos-longos anos, embora não fosse o nosso foco central. Emitir julgamentos e/ou esboçar análises, por exemplo, sobre as atuais relações entre os povos indígenas e o estado-governo federal no momento presente nos levaria longe e, talvez, incorreríamos no perigo de cometer possíveis injustiças analíticas. Melhor deixar decantar, talvez esperar para ver onde vai o possível encanto do momento, e acompanhar com simpatia e com certo temor o caminho que o conjunto dos povos indígenas e cada um deles, são chamados a construir conosco, com respeito e ousadia, mesmo que no meio a possíveis contradições. A mó de conclusão queria só chamar a atenção de que a complexa e contraditória relação entre o regime militar-povos indígenas-igreja nos anos de chumbo, não diz respeito somente a determinadas atuações políticas de governantes da época, mas diz respeito, essencialmente, ao modelo de estado que o nosso País tem construído ao longo dos anos. Radicalizando, poderíamos afirmar que com ou sem o papel histórico do regime militar nascido em 64, o estado brasileiro por sua ‘própria natureza’ desde a sua fundação, tem tratado os indígenas, - salvo algumas variações históricas, de caráter não sistêmico - de forma assimétrica, e fundamentalmente autoritária e paternalista. Embora louvável o espaço político-administrativo que aqui e acolá algum governo transitório ‘concede’ a diferentes grupos e lideranças indígenas, estamos ainda longe de ver um estado equânime, pluricultural, que se reconhece, de fato, como pluriétnico e plurilinguístico, profundamente democrático no sentido mais radical do termo. Quando o PIB, a balança comercial, a bolsa de valores, as exportações, o agronegócio e as fontes energéticas fósseis falam mais alto do que outras emergências sociais e humanas é sinal que o estado brasileiro continua mantendo o mesmo DNA que possuía 60 anos atrás! Ou, melhor, dito, nos seus primórdios, na Colônia!


sábado, 16 de março de 2024

Tragédia Yanomami. “Sobrevivemos, gritamos, mas as crianças não resistiram”. Entrevista com Junior Hekurari, liderança Yanomami

 Qual a situação do território Yanomami nesse momento?

O governo Bolsonaro, o próprio ex-presidente, incentivou muito o ódio contra a população indígena. Ele próprio falava que não ia demarcar nenhum centímetro das terras indígenas. Ele incentivou invadir as terras que já estavam demarcadas, por isso nós estamos até agora sofrendo, estamos pagando esse incentivo que o próprio presidente fez com as pessoas que tem mais poder econômico para invadir as terras indígenas. Então esse resultado está chegando, principalmente nas comunidades. É um sofrimento muito grande, mas resistimos, lutamos e não desistimos. O governo Bolsonaro barbarizou, cortou as instituições que protegiam os povos indígenas, ‘lavou as mãos’, principalmente a Funai, direitos humanos e outras instituições que eram importantes para defender os direitos fundamentais. Então ele infelizmente trancou essas portas para não enxergar esse problema que a gente estava enfrentando nas terras indígenas.

Em 2019, sofremos invasão. Entraram mais de 25 mil garimpeiros que envenenaram até nascentes dos rios. Hoje estamos sem água potável. A natureza trazia água potável, porque nós dependemos da floresta e a floresta foi destruída. O povo Yanomami morreu de contaminação por mercúrio, pela contaminação da água. Quanto tu toma água contaminada é questão de horas para morrer, porque a diarreia para desidratar é questão de horas.

Quem mais sofreu com a invasão do território?

Quem sofreu mais são as pessoas mais vulneráveis, como crianças e idosos. Somos muito fortes, o Yanomami foi preparado para enfrentar os problemas de natureza. Sobrevivemos, gritamos, mas as crianças não resistiram, os idosos, mulheres não resistiram. Perdemos muitas vidas, choramos por elas. A gente está lutando para não acontecer mais.

Qual o resultado das ações do governo federal até agora?

O governo atual está trabalhando muito, mas está longe de resolver porque a situação que o Bolsonaro deixou na terra Yanomami, para consertar, está longe. Apesar da vontade política do atual governo de resolver o problema, o que é preciso fazer para que os Yanomamis tenham uma solução definitiva pra essa tragédia?

Hoje é o Ibama que atua mais, através do comando da ministra Marina Silva, é o Ibama que expulsou muitos garimpeiros, enfrentou garimpeiros armados atirando contra o pessoal do Ibama. Mas mesmo assim eles não desistiram, lutaram e expulsaram muitos garimpeiros. Só que a invasão é muito ampla, a Terra Indígena Yanomami é muito grande, de difícil acesso. São dois rios principais onde o Ibama fez a instalação de corrente, mas mesmo assim os garimpeiros atacaram a base do Ibama e cortaram todas as correntes.

Eles têm um armamento muito forte, então quem pode enfrentar esses homens armados que estão destruindo a Terra Indígena Yanomami são as forças do Exército. Eles têm mais tecnologia, mais armamentos e mais homens preparados para enfrentar aquelas pessoas. É isso que pedimos. Assim que expulsar os garimpeiros, a gente quer reestruturar o atendimento e instalar bases de proteção estratégicas nas comunidades. Nosso desejo, nosso sonho, é proteger e retomar a Terra Indígena Yanomami.

"A gente tem certeza absoluta que o governo anterior escondeu muito as informações (...). Acreditamos que morreram mais de 1200 crianças por ano"– Junior Hekurari


5º domingo de quaresma - Seguir-servir Jesus na doação radical para ser grão de trigo com grande poder germinativo!

Ver alguém, para a linguagem bíblica, é sempre um conhecer alguém. Conhecer é sempre um mergulhar no mundo do outro. É um conviver intimamente com ele. No entanto, ao nos aproximar de alguém sempre carregamos uma mistura de expectativas e de preconceitos. Hoje a nossa aproximação ao outro está profundamente viciada, contaminada. O outro é visto, muitas vezes, como um potencial inimigo e rival. Outras vezes é por nós, ingenuamente, idealizado e idolatrado. Diante do desejo de alguns discípulos de cultura grega de conhecer Jesus, o Mestre não tem medo de se expor e de se revelar por aquilo que é. Jesus não se apresenta como um dos muitos heróis imortais da deslumbrante cultura grega, mas como um 'filho do homem' frágil, quase impotente, 'demasiadamente humano'. Um Jesus consciente de que o 'esplendor e a glória,' de verdade, passam pelo serviço anônimo, solitário, e pela doação radical de si próprio. O discípulo que quer servir-seguir Jesus mediante o sucesso, a fama, o reconhecimento público perde a chance de viver em plenitude, e de dar sentido à sua existência. Chegou a hora e é agora em que todo servidor-seguidor de Jesus o poderá conhecer de verdade ao se colocar, concretamente, a serviço da vida plena de milhões de irmãos e irmãs que continuam sendo vítimas dos potentes gloriosos e dos infames famosos desse mundo! Quem não compreende isso continuará sendo um grão de trigo sem poder germinativo!

terça-feira, 12 de março de 2024

Carta de repúdio: Justiça que nega direito de sepultamento a cacique Kamakã é a mesma que deixa Vale impune

As organizações, redes, pastorais e comissões abaixo subscritas vêm, através desta carta, manifestar sua profunda indignação com a decisão da Justiça Federal da 6ª Região, de Belo Horizonte, em favor da empresa Vale S/A, que proíbe a Retomada Kamakã Mongoió em Brumadinho (Córrego Areias), de semear o corpo do cacique Merong Kamakã Mongoió no território sagrado da comunidade.

A Justiça Federal alega que não foi formulado um pedido para que o sepultamento fosse realizado no território, sendo que este consta como objeto de reintegração de posse. A Justiça Federal autoriza ainda o auxílio de forças da Polícia Federal e Polícia Militar para impedir que seja realizado o sepultamento. No entanto, é preciso lembrar que o processo de retomada da comunidade Kamakã Mongoió acontece há cerca de três anos, resistindo contra as violentas investidas da outra parte do processo, a mineradora Vale S/A. Por isso, essa decisão viola o direito dos povos indígenas, assegurado na Constituição Federal, de sepultar seus membros no próprio território, conforme seus usos, costumes e tradições. Previsto para acontecer de maneira respeitosa e pacífica, o ritual indígena foi realizado restritamente entre a comunidade na madrugada desta quarta-feira, 6 de março, uma vez que a intimação que proibia o sepultamento só foi entregue por volta de 9h da manhã. No momento da entrega, lideranças indígenas, parlamentares e representantes de movimentos sociais prestavam apoio à Retomada Kamakã Mongoió. Enquanto a Vale tenta fugir de sua responsabilização pelo crime que atingiu a Bacia do Rio Paraopeba, soterrou vidas e causou danos ambientais irreversíveis, a Justiça permite que outras violações de direitos aconteçam

Não por acaso, tramita a partir de hoje também na Justiça Federal da 6ª Região de Belo Horizonte, o reinício do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente da Vale S/A, Fábio Schvartsman, denunciado por homicídio doloso duplamente qualificado no processo que julga a responsabilidade pelas 272 mortes causadas pelo rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, ocorrido no ano de 2019 em Brumadinho. Enquanto a Vale tenta fugir de sua responsabilização pelo crime que atingiu a Bacia do Rio Paraopeba, soterrou vidas e causou danos ambientais irreversíveis, a Justiça permite que outras violações de direitos aconteçam. Na manhã do dia 6 de março, após a intensa mobilização em homenagem ao cacique e depois do oficial de justiça já ter intimado a comunidade indígena, a Vale reconheceu ao Judiciário que a decisão já tinha perdido seu objeto, embora não tenha justificado até então os motivos pelos quais quis impedir o plantio da liderança em seu território. O homicídio do cacique Merong Kamakã Mongoió segue em investigação. Ao receber as homenagens e ser semeado em seu território, Merong torna-se sinal de resistência e apelo à justiça.

6 de março de 2024

Rede Igrejas e Mineração de Minas Gerais

Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

seguem mais assinaturas.....

Roraima está pegando fogo: drama para milhares de indígenas do Estado

 Roraima, o Estado mais ao norte do Brasil, bateu recorde histórico de focos de calor em fevereiro, com 2057 registros. No mesmo mês, o Rio Branco, seu principal abastecedor de água potável, chegou ao nível negativo de -0,15m. Enquanto os não indígenas seguem a rotina na capital Boa Vista - coberta por fumaça desde meados de fevereiro - os Yanomami, Macuxi, Wapichana e povos de outras etnias vêem suas casas e roças serem destruídas por incêndios e, em quatro municípios, comunidades indígenas têm à disposição para beber água que mais parece lama. Para a Defesa Civil, a situação deve se estender por cerca de mais 60 dias, quando há a previsão do inverno começar no estado. Durante os próximos dois meses, a densidade de fumaça deve aumentar, assim como a quantidade de focos de calor e incêndios, que na avaliação do Corpo de Bombeiros são causados em 100% dos casos pela ação humana. “A certeza que temos é que Roraima está queimando, Roraima está pegando fogo”, diz Edinho Batista, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, sobre a situação do Estado que enfrenta uma severa estiagem intensificada pelo fenômeno El Niño, conforme relatório da Defesa Civil. “Sabemos que 90% da população depende da água do Rio Branco e sabemos que essas pessoas precisam olhar para isso como uma consequência dos impactos da soja, do garimpo e grandes empreendimentos. Quando Edinho foi entrevistado, em 27 de fevereiro, relatou que cerca de 50 mil indígenas que vivem em comunidades estavam sem água potável porque 50 poços artesianos já haviam secado. No entanto, ele deixou o alerta de que até, a publicação desta reportagem, o número aumentaria. Para estas pessoas terem acesso a água é preciso caminhar 5km e até escolas indígenas ficaram desabastecidas. “Não queremos revoltar as pessoas, mas sensibilizar sobre qualidade de vida que não se dá só no mundo material, mas também no espiritual. É preciso entender que a água, as plantas, os animais e as pessoas são importantes e a vida não pode ser colocada abaixo do mercado. O capitalismo influencia as pessoas a se contentarem com que recebem e não com o que têm e ficará para o futuro”, refletiu o coordenador do CIR. Em quatro municípios, há comunidades indígenas bebendo água sem tratamento que pode ser comparada à lama, conforme o Diretor Executivo de Proteção e Defesa Civil, Coronel Cleudiomar Ferreira. Ele afirma que existe um esforço das prefeituras na distribuição de água, mas que não há garantia de que haja tratamento adequado, apenas que é menos prejudicial que a água suja de pequenos riachos.

Todos os 51 bairros da capital de Roraima estão tomados por fumaça, fuligem e cheiro de queimado há mais de uma semana. Boa Vista também é o 9º município com mais focos de calor em todo o Brasil neste ano. Outras oito cidades do estado integram o top 10, conforme o monitoramento do Programa Queimadas do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). (ISA)

sábado, 9 de março de 2024

4º Domingo de Quaresma - Lutar até à morte....para que todos tenham vida plena!

Um famoso filósofo  existencialista francês dizia que 'amar alguém é dizer a ele:você nunca morrerá'! E nós poderíamos acrescentar: 'e para que você não morra eu estou disposto a morrer por ti'! Expressão máxima de amor é não permitir que a pessoa amada seja morta, mesmo que isto custe a nossa própria vida. É o que Jesus de Nazaré fez. Ele foi ao encontro da sua morte não porque Deus queria o seu sacrifício, mas porque a sua incansável dedicação aos esmagados pela doença, pela lei e pela truculência o levou até às últimas consequências. Jesus havia entendido que se Deus Pai que é 'amor sem fim' estivesse em seu lugar teria feito o mesmo. Jesus não tinha dúvida que em Deus não cabe castigo, vingança e condenação, mas só vida em plenitude (eterna). Contudo, é preciso crer nisso, ou seja, amar e proteger o não amado e o desprotegido, lutar para lhe garantir vida plena, saber morrer por ele. Isso torna a vida do discípulo uma luz continua que desmascara os produtores de trevas, os alimentadores do ódio e do desprezo aos pequenos. Estes já têm o que merecem: se autoexcluem por si só!

sexta-feira, 8 de março de 2024

Breve análise de conjuntura da atual política indigenista e papel da igreja missionária

Fazer uma análise de conjuntura, mesmo que superficialmente, exige sempre não somente um volume de informações de qualidade, confiáveis, uma discreta cautela, mas também a clara identificação do ponto de vista a partir do qual se quer analisar. Ou seja, o seu lugar social escolhido para olhar-analisar o todo. O nosso ponto de vista tenta incorporar anseios e aspirações de diferentes etnias que manifestam e alimentam expectativas e mudanças radicais em suas diferentes realidades. Será, portanto, um ponto de vista parcial, delimitado, mas não por isso menos legítimo de quem reside em Brasília, por exemplo, e ocupa um cargo numa repartição pública responsável por políticas indigenistas...Dito isso, gostaria de salientar algumas sombras que pairam sobre o novo governo Lula ou 'omissões simbólicas' que vêm deixando bastante amargo em boca para quem almejava algo mais alvissareiro...

Talvez um dos pontos negativos do atual governo com relação à política indigenista tenha sido o de não ter sinalizado desde o início, de forma enfática, embora simbólica, para que veio. É bem verdade que herdou um fardo carregado de atraso, de omissão, de falta de orçamento, de descaso generalizado, de militarização da FUNAI e de desmantelamento de infraestruturas, mas poderia ter aproveitado, por exemplo, da crise humanitária na Terra Yanomami, em Roraima, - revelada bem no início de janeiro de 2023 - para deixar claro quais ações norteadoras o novo governo iria seguir. Infelizmente, limitou-se a uma intervenção militar pontual (exército e Polícia Federal) contra garimpeiros e outros invasores que, embora explorada pela mídia, não se tem se transformado numa renovada política de proteção e de assistência sanitária permanente, pelo menos para aquele povo indígena já duramente provado e agredido. Basta dizer que no primeiro ano do governo Lula foram verificadas 363 mortes de Yanomami. O número representa um aumento de 20 óbitos em relação a 2022, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No governo anterior os dados eram descaradamente  subnotificados.

Outra sinalização de enorme poder simbólico que o novo governo poderia ter lançado foi a que diz respeito às demarcações de terras indígenas. Ou seja, deveria ter deixado claro como, posteriormente, tentou fazer mediante a recente mensagem que o governo enviou em fevereiro passado ao congresso, que iria sim, retomar de forma decidida, firme e consistente o que a Constituição determina: a legalização definitiva de todas as terras indígenas que deveriam ter sido demarcadas no prazo de 5 (cinco) a partir da promulgação da Constituição de 1988. Infelizmente, ao longo de todo o ano de 2023 limitou-se a homologar (reconhecimento final formal) somente 08 (Oito) Terras Indígenas, e a identificar 03 (três). Assim, o Brasil sai de um jejum de cinco anos sem demarcações, - incluindo parcialmente o governo Temer, - chegando ao total de 511 Terras Indígenas com processos de demarcação finalizados. Contudo, ainda faltam 255 Terras Indígenas com seu processo de demarcação já iniciado e ainda não finalizado. A retomada da política indigenista oficial e dos processos de demarcação no governo Lula se dá, tragicamente, numa conjuntura desfavorável para os povos indígenas já que as ofensivas aos direitos indígenas se fortaleceram no Legislativo e no Judiciário, onde se multiplicam propostas legislativas anti-indígenas e teses jurídicas como a do "Marco Temporal". Esta última tese rejeitada pelo STF foi proposta e aprovada no Senado, criando insegurança jurídica e um engodo de não fácil solução. 

Uma série de pressões do Congresso sobre o Executivo  vêm impactando esse cenário, a começar pela pasta que ficaria responsável pela declaração das Terras Indígenas. Abrigada inicialmente no recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI) - cuja ministra é uma indígena Guajajara do nosso Estado, Sônia Guajajara, - essa atribuição voltou ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJ), sob a responsabilidade do então ministro Flávio Dino. O senador Dino, que assumiu em fevereiro de 2024 uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF), atravessou seu mandato como ministro sem reconhecer a posse permanente indígena de  nenhuma Terra Indígena e deixou para Ricardo Lewandowski, seu sucessor, ao menos 23 portarias prontas para assinatura. 

Um último ponto que vale a pena ser frisado é de que, se de um lado é extremamente positivo o fato de o governo Lula ter criado um ministério específico para os povos indígenas (MPI) e ter colocados indígenas em cargos estratégicos (FUNAI- Fundação Nacional dos Povos Indígenas, SESAI – Secretaria Especial Saúde Indígena, etc.), do outro lado, ao não garantir um orçamento adequado e ao não outorgar plena autonomia de ação, cria as condições reais de ‘jogar aos leões’ lideranças indígenas de renome e ‘queimar’ a experiência pioneira iniciada. Nesse sentido, muitas lideranças indígenas que tentaram dar um 'desconto' nesse primeiro ano de governo e tiveram a paciência histórica de garantir confiança esperam que, a  partir desse ano de 2024 o governo Lula seja mais proativo e ousado. Que se concentre, essencialmente, na defesa permanente dos territórios já demarcados evitando todo tipo de invasão e esbulho; que tome iniciativas claras para que se reconheçam formalmente os territórios indígenas ainda não identificados; e, enfim, que se planejem ações bem estruturadas para despejar e expulsar quantos os têm ocupado ilegalmente ao longo desse anos. Simultaneamente, espera-se que se invista sempre mais, e de forma mais consistente e qualificada no atendimento à saúde indígena, prevenindo e combatendo doenças e encarando a luta contra a desnutrição com ações globais, estruturantes e permanentes. 

Não podemos, enfim, deixar de ignorar que ao lado de uma ‘política indigenista’ há, também, e sempre, uma ‘política indígena’ – aquela que é realizada pelos próprios povos indígenas, - que não é badalada pela mídia, mas que assume sempre mais proporções significativas. Através de inúmeras iniciativas de fiscalização territorial (ex. os guardiões da floresta tão presentes e incisivos no Maranhão) e múltiplas medidas político-pedagógicas os próprios povos indígenas, seja em nível regional que nacional, se articulam e intervêm, autônoma e internamente, para proteger, denunciar, pressionar e expulsar aqueles  invasores (garimpeiros, fazendeiros, sojicultores) que se apossaram de enormes fatias de terras indígenas, inclusive graças a determinadas portarias assinadas no governo anterior que lhes dá esse poder!  

No que se refere ao papel da igreja missionária na atual conjuntura é importante frisar os seguintes pontos: 

a. A igreja deveria reconhecer, de fato, a plena autonomia e maturidade dos povos indígenas sem querer ser sua ‘porta-voz’, sem ‘falar por eles’ ou sem ‘se substituir a eles’. É preciso, isso sim, fazer com que os povos aos quais a igreja é chamada a servir sintam que ela é uma aliada fiel, parceira, ‘amiga’ de todas as horas, mas que, afinal, devem ser eles mesmos os protagonistas na condução das políticas públicas com foco na sua realidade específica. Cabe à igreja o papel de fazer ecoar com seriedade, profissionalismo, coragem e sem mitificações as opiniões, as posturas, as reivindicações, e as denúncias que os próprios povos indígenas encaminham. 

b. Como igreja missionária, diante das múltiplas contradições, - inclusive no seio do próprios povos indígenas, - polarismos sociais e culturais, e outras formas de agressão, deveria assumir sempre mais o papel de humilde mediadora, servidora dedicada de suas aspirações e necessidades, auscultadora paciente de seus sonhos e dramas, e defensora intransigente dos direitos indígenas,  independentemente de quem esteja governando. 


segunda-feira, 4 de março de 2024

O sacerdócio não é a solução. Artigo de Luigino Bruni

 As mulheres ainda não encontraram o seu devido lugar na Igreja, ainda não conseguimos reconhecê-las na sua plena vocação e dignidade. Há dois mil anos esperam para serem vistas como Jesus as via, que foi revolucionário em muitas coisas e entre estas pelo papel que as mulheres tinham na sua primeira comunidade. Mas embora algumas das suas revoluções se tenham tornado cultura e instituições da Igreja, a sua visão da mulher e das mulheres ainda está presa no grande livro dos “não ainda” que não se tornam “já”.

Se olharmos com atenção, todos vemos que a Igreja não existiria sem a presença das mulheres, porque elas são uma grande parte da alma e da carne do que resta hoje do Cristianismo e, antes ainda, da fé cristã - estou ficando cada vez mais convencido de que se quando Jesus voltar à terra e ainda encontrar a fé, esta será a fé de uma mulher. Mas todos sabemos e todos vemos que a governança eclesial, em particular aquela da Igreja Católica, ainda não foi capaz de tornar concreta e operacional a igualdade e a verdadeira reciprocidade entre homens e mulheres. E assim a Igreja Católica continua sendo um dos lugares do mundo onde o acesso a algumas funções e tarefas ainda está ligado ao gênero sexual, onde nascer mulher já orienta desde o berço o percurso de vida daquela futura cristã nas instituições, na liturgia, nos sacramentos e na pastoral das comunidades católicas. Embora conhecendo e reconhecendo muitas das razões daqueles que lutam por isso, nunca pensei que a solução fosse estender o sacerdócio às mulheres, porque enquanto o sacerdócio ministerial for compreendido e vivido dentro de uma cultura clerical, ampliar a ordem sagrada para as mulheres significaria, de fato, clericalizar também as mulheres e, portanto, clericalizar ainda mais toda a Igreja.

 O grande desafio da Igreja hoje não é clericalizar as mulheres, mas desclericalizar os homens e, assim, a Igreja. Seria necessário, portanto, compreender onde estão os locais das boas batalhas e concentrar-se neles, mulheres e homens juntos - um erro comum é pensar que a questão feminina é um assunto apenas das mulheres. É, portanto, necessário trabalhar, homem e mulher, na teologia e na práxis do sacerdócio católico que ainda está demasiado ligado à época da Contrarreforma, porque uma vez reconduzido o sacerdócio ao da Igreja primitiva, tornar-se-á natural imaginá-lo como um serviço de homens e mulheres. Se, ao contrário, empregarmos agora as nossas energias para introduzir algumas mulheres no clube sagrado dos eleitos, apenas aumentaremos o número da elite sem obter bons resultados nem para todas as mulheres nem para a Igreja. O atual Sínodo, com o seu novo método, pode ser um bom começo também nesse processo necessário.

Mas também há uma boa notícia. Enquanto se espera por esse trabalho urgente, a Igreja Católica já está mudando muito rapidamente em algumas dimensões importantes. Na Igreja com o Papa Francisco, as mulheres estão muito mais presentes nas instituições do Vaticano, nas dioceses e nas comunidades eclesiais, em funções cada vez mais importantes, e agora muitas são leigas e/ou casadas. As teólogas e as biblistas também estão crescendo em quantidade, qualidade, estima e impacto. São fenômenos menos chamativos que os debates sobre o sacerdócio feminino, mas estão criando as condições para que um dia finalmente “a realidade seja superior à ideia” (Evangelii gaudium), e num amanhecer particularmente luminoso a Igreja acordará finalmente também mulher, sem se dar conta e sem fazer muito barulho, como as coisas realmente importantes da vida.


sábado, 2 de março de 2024

3º domingo de Quaresma (Jo. 2,13-25)- RECONSTRUIR/RESSUSCITAR os templos corpóreos dilacerados, manipulados e violentados

Templo não é lugar para se fazer ‘sacrifícios’. Deus não quer e nem precisa. Tampouco se deixa comprar por promessas, novenas, dízimos polpudos e pomposas celebrações. Templo não é o ‘espaço sagrado’, por excelência, para rezar, orar, suplicar. Jesus para rezar se retirava para lugares desertos. E quando subia ao templo de Jerusalém era para pregar e....polemizar com as sanguessugas que acolá pontificavam. Templo não é ‘a casa de Deus’. A morada de Deus é o imenso infinito e, principalmente, o microscópico inviolável corpo/sacrário de Seus filhos e filhas. Aqui está o nó central da prática de Jesus: para que frequentar e zelar por um templo que é incapaz de zelar por seus filhos e filhas? Para que gastar tempo e dinheiro no ‘shopping da religião’ se seus gestores e servidores nada fazem para preservar, acolher, servir e educar ‘os fregueses’ á fé profunda, aquela que move montanhas? Realmente, esse templo precisa ser destruído. Precisamos reconstruir/ressuscitar, proteger e venerar o ‘templo/corpo’ dilacerado, violentado e torturado de milhões de filhos de Deus. É na defesa intransigente desses corpos que ‘adoramos Deus em Espírito e verdade’!