O trágico naufrágio do barco nas praias de Cutro, na Itália, na madrugada de domingo passado, sacudiu a consciência de muitos italianos e mostrou os limites de uma configuração da relação com o fenômeno da “migração” que o reduz a um problema judiciário ou moral. Aqueles que haviam sido chamados a “governar” uma situação tão complexa e que acharam que a resolveriam negando-a na raiz – e assim falaram, de vez em quando, de bloqueio naval, de guerra aos traficantes ou de acordos para impedir as partidas – colocaram as premissas para gerar uma condição de “indiferença” da qual foram e continuarão sendo vítimas as pessoas em busca de salvação, de justiça, de casa e de liberdade.
Se, de um lado, estão os traficantes, que buscam o máximo lucro com o mínimo custo, pondo em perigo as vidas dos migrantes, e, de outro, está o Estado, que, para impedir os traficantes, obstaculiza os navios de resgate não governamental, então se produz uma condição em que a indiferença com quem tem menos recursos e é mais vulnerável torna-se máxima e ingovernável: quando foram geradas condições de indiferença, ser não indiferente só pode ocorrer depois, quando já não há mais nada a fazer. É evidente que a ordem pública não é realmente protegida quando se produz uma situação que afeta os mais fracos. Mas é aqui que eclode o nível de reação mais desconcertante, mas mais interessante de se analisar. Como é possível que o ministro do Interior italiano, [Matteo] Piantedosi, diante da tragédia, saiba culpar apenas aqueles que “não deveriam ter partido” e tinham que se mostrar responsáveis tanto para com seu país (que não deveriam abandonar e trair) quanto com seus próprios filhos (que não deveriam colocar em risco de morte). Eu me pergunto: como é possível responder de forma tão inadequada e rude? Não basta responder que a causa pode ser uma dificuldade particular do ministro de se identificar com a condição dos migrantes, uma total falta de empatia em seu julgamento. Isso não basta. Para entender, é preciso considerar a degeneração da “moral burocrática”.
Chego agora ao exemplo. Encontrava-me em Lugano, tinha uma aula muito cedo da tarde (acho que às 14h), no fim da qual tinha que correr de ônibus até à estação para pegar meu trem. Para não me atrasar, pensei ingenuamente em fazer exatamente como em Roma: comprei a passagem na máquina antes da aula, para tê-la já pronta quando chegasse à parada de ônibus duas horas depois. Assim ocorreu: duas horas depois, apresentei-me na parada, o ônibus chegou, subi, o ônibus partiu, e eu olhei ao meu redor para encontrar a “máquina de validação”, mas não a vi. Então, me aproximei do motorista e perguntei o que devia fazer. Ele me disse: o seu bilhete foi validado automaticamente na compra. Portanto, expirou. “Você não deveria ter embarcado e agora tem que descer na próxima parada.”
Eu, porém, objetei que tinha pago o bilhete e não poderia descer, porque senão perderia o trem. Lembro-me que o motorista entrou em crise (uma crise muito suíça e pouco romana). E então ele me disse: “Veja, se o fiscal subir, eu não vou lhe salvar”. Aceitei o risco e me salvei mesmo assim. Acho interessante que o motorista, assim como o ministro Piantedosi, tenha respondido “você não deveria ter embarcado”. A moral burocrática é feita para compartimentos estanques: controla o real, simplificando-o. Mas a simplificação desfigura o real, mesmo que para um bom fim (do sistema, mas nem sempre do indivíduo). Porém, o sistema burocrático só funciona e só podemos desfrutar dele se ele souber conservar a consciência da limitação do próprio olhar. As vidas dos passageiros de um ônibus, dos motoristas de um carro, ainda mais dos migrantes que navegam no mar em meio a mil dificuldades são mais complicadas do que as regras burocráticas que se ocupam deles.
O fato de Piantedosi ter respondido: “Eles não deveriam ter partido” é justamente a confirmação de uma leitura burocrática do real. Quando a moral burocrática, da qual precisamos, perde o senso do próprio limite, ela perde literalmente a razão e pode até causar um curto-circuito na relação com a realidade. Para se justificar de forma absoluta e seca, ela pode levar à total culpabilização de quem infringe a regra burocrática (quem parte, em vez de não partir), pode projetar sobre o sujeito desviante/migrante um modelo de irresponsabilidade quase criminosa (pôr em risco a vida de seus filhos e é, ele mesmo, causa de seu mal), mas pode até virar tudo de cabeça para baixo e dizer: “Não parta. Eu mesmo vou lhe buscar”! Essas oscilações temerosas, que registramos nas expressões do ministro Piantedosi, são o fruto deste duplo equívoco: por um lado, confiar exclusivamente em uma resposta burocrática garantida, que deveria resolver todos os problemas pela raiz; por outro, perder toda a relação com os verdadeiros sujeitos de que se deve cuidar, deslocando continuamente o problema para outra coisa: para a partida transgressora, para os outros países não solícitos a cuidar dos migrantes, para as intenções criminosas dos traficantes, para as supostas conivências perigosas dos navios das ONGs.
Desse modo, toda a burocracia, que seria um sistema para aumentar a não indiferença ao próximo, torna-se um refinado armamentário para garantir a total indiferença ao próximo. “Não vou lhe salvar”, disse o motorista suíço do ônibus de Lugano. Sua moral burocrática salvava a ele, não a mim. De modo marginal e com eventuais consequências bem mais suportáveis, aquele motorista proferiu uma verdade terrível, que assumiu uma forma trágica nos lábios do ministro italiano e nas vidas despedaçadas dos migrantes abandonados à fúria do mar.