quinta-feira, 14 de abril de 2022

Quinta-feira da santa ceia -A incômoda teologia de João: sem templo, sem cordeiro, sem sacerdotes, sem hierarquia

 Em geral na quinta-feira santa ao comentar a ‘ultima ceia’ costuma-se repetir e reproduzir conteúdos e informações adquiridas pela catequese tradicional e respaldadas pela teologia clássica. De tanto que são repetidas acabam se tornando um suprassumo um tanto mistificado de supostas ‘verdades históricas e teológicas inquestionáveis’. Daí a importância de recuperar, de um lado, - lá onde é possível, - a informação histórica minimamente consensual, ou de deduzir pelas práticas, costumes e tradições da época de Jesus uma narrativa verossímil. E, do outro lado, fazer emergir o conjunto de elementos, - sinais, palavras, contextos que tenham uma incidência e uma coerência na prática pastoral a ser permanentemente atualizada. 

Não é difícil perceber que ao longo desses anos nas reflexões teológicas a respeito da última ceia, monitoradas pela hierarquia, foram omitidos muitos detalhes, presentes, contudo, na narrativa evangélica de João, por incomodarem, possivelmente, o establishment eclesiástico. Quais seriam, a meu aviso, esses elementos centrais que têm sido omitidos com frequência? 

1.João nos informa que no contexto da ceia pascal Jesus, a uma certa altura,  levantou, cingiu-se com uma toalha, colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, cumprindo, assim, a tarefa típica dos escravos. O que está por trás disso, e qual, afinal, o seu contexto? Não há nenhuma reprimenda de ordem moral! O pano de fundo era a recorrente e insidiosa disputa dentro do grupo de ‘quem seria o maior’. O que se encontra em outros contextos nos demais evangelhos, em João é encaixado no contexto de ‘ceia-banquete derradeiro’. Afinal, ao redor da mesma mesa, onde todos comem no mesmo prato, não há espaço para lugares e cargos de destaque. Está aí o surgimento de uma estrutura socioeclesial despida de qualquer anseio de caráter hierárquico. Nesse sentido, podemos compreender, então, o porquê da escolha do pão por parte de Jesus para assegurar a sua presença, e não do cordeiro, como a tradição mandava....

2. Jesus não celebra a Páscoa oferecendo o cordeiro sem mancha para ser comido! Para João, evidentemente, o próprio Jesus era o cordeiro. Mas isso é insuficiente para compreender essa escolha. Há uma motivação de fundo extremamente polêmica: os cordeiros sem defeitos e reconhecidos aptos para serem sacrificados - pelo menos no templo - provinham todos das criações do sumo sacerdote que detinha o seu monopólio, como sabe-se, hoje, pelos estudos historiográficos. Além disso, o cordeiro a ser consumido na ceia pascal na sua própria divisão e distribuição era uma fonte permanente de discriminação, pois os melhores e mais tenros pedaços eram reservados aos sacerdotes ou personalidades de destaque como previsto no antigo testamento. Jesus escolhe pão, algo carregado de densa simbologia e que sinaliza, de imediato, igualdade. Afinal, é a mesma qualidade e o mesmo sabor para todos os que dele se alimentam. O pão é mais um elemento que inibe a formação de estratificações, de vantagens e de privilégios numa possível e inaceitável estrutura hierárquica. Do ‘menor ao maior’ todos se alimentam do mesmo pão! Todos somos servidores, indistintamente, mesmo que o serviço a ser realizado seja qualitativamente diferente. Jamais poderá se sentir superior ao outro!

3. Outro elemento que frequentemente é ignorado e que, aos dias de hoje, até pela conjuntura que temos vivenciado (pandemia), deveria ser valorizado, é de que o ‘evento ceia’ transcorre não seguindo o ritmo típico de um rito, mas o ritmo de uma ‘atividade doméstico-familiar’. A ceia não se dá num templo, supostamente o lugar sagrado propício para agradar e louvar Deus e, além disso, coordenado por uma elite sacerdotal especializada, mas numa casa particular. Uma casa, inclusive, anônima, talvez para sinalizar que pode-se ‘celebrar, consagrar, servir, partilhar’ na casa de qualquer um de nós, ou seja, de todos! O grupo de Jesus não se dispõe ao redor de um altar, - espaço próprio para executar o sacrifício liturgicamente adequado, - mas numa mesa, no lugar próprio da comunhão e da partilha existencial fraterna e familiar.  

4. Outro elemento que é sistematicamente ‘distorcido’ no seu ‘significado’ é o cálice de vinho’. João que apresenta Jesus como o novo Moisés o diferencia, substantivamente, do grande legislador. Moisés aspergiu com o sangue do cordeiro o povo, Jesus oferece o vinho da alegria, do amor fiel e radical. O vinho que os noivos tomavam, solenemente, no dia do casamento-aliança era a demonstração irrefutável do seu recíproco compromisso de se amar até o fim, até o derramamento de seu sangue para preservar a vida do amado-a. A nova aliança em Jesus não se dá a partir da obediência a leis e normas ‘sacerdotais’, - como ocorria no antigo testamento, mas é alicerçada no amor recíproco, no cuidado ao outro/a. A última ceia nos diz em claras letras que o discípulo de Jesus não pode ser um mero freguês ritualista, cumpridor de preceitos litúrgicos, e sim um ‘ativista eucarístico’, o tempo todo, em todos os espaços, e em todas as circunstâncias. Isso possa ajudar aqueles defensores empedernidos e cultores doentios da lisura/pureza litúrgico-ritual: a mudança de uma palavra por um seu sinônimo, nas ‘palavras da consagração’, por exemplo, não invalida o sacramento, nem nulifica a graça, porque eucaristia é uma ação transformadora continuada, permanente, pautada pelo amor que alimenta, serve e protege pessoas dentro e fora do rito!

5. Um último elemento não menos importante, e que revela a profunda coerência teológica, - pelo menos da narração-reflexão de João, - é que se na lógica do banquete-pão partilhado ninguém é superior ao outro, mas todos são servidores e distribuidores em pé de igualdade, deduz-se, claramente, que não existem os que ‘têm poder’ para consagrar pão e vinho e ‘transformá-lo em corpo e sangue’ de Jesus, e outros que são meros consumidores passivos! Toda quinta feira santa nós presbíteros recebemos parabéns e sinceras invocações de bênção porque, supostamente, sem a nossa ‘atividade eucarística’ o pão e o vinho jamais poderiam se transmutar no corpo e no sangue de Jesus. Somos, afinal, meros servidores da mesa com o mesmo ‘poder consagrador’ de qualquer discípulo/a batizado/a. Não há como não reconhecer que na última ceia Jesus nunca quis e nunca instituiu uma diminuta elite sacerdotal conferindo-lhe um poder diferenciado sobre os demais. Todos somos membros da mesma e única família de Cristo. Todos somos chamados a sermos um ‘povo sacerdotal’ que procura não somente ser celebrante e ‘servidor da mesa’ mas ‘um povo eucarístico ambulante’ que se compromete a eliminar desigualdades e discriminações. E, que em lugar de separar os puros dos impuros, os dignos dos indignos, se educa e educa outros irmãos a conviver na fraternidade, no serviço abnegado, na ajuda recíproca, e na comunhão sincera, ‘dentro e fora do templo/casa’.  


sexta-feira, 8 de abril de 2022

Semana santa - Amar intensamente, mesmo que tenhamos que subir ‘Calvários’!

Inicia-se, com o domingo de ramos a semana que nos faz imergir na paixão, resistência, morte e vida ressurgida de Jesus e de muitos crucificados da humanidade. Somos convidados a não fazer arqueologia religiosa de um passado distante e impessoal, e sim, celebrar e reviver o cotidiano de milhões de pessoas. Somos convidados a nos identificar e nos indignar com a dor de Maria e das mulheres, repudiarmos o cinismo dos sumos sacerdotes e dos soldados romanos, e o medo e a traição dos discípulos de ontem e de hoje. Simultaneamente, contudo, somos convidados a não esquecer os crucificadores de ontem e de hoje. E os defensores da tortura e da eliminação sumária de 'suspeitos'. Não podemos ter medo de deixar aflorar sentimentos de indignação e de revolta, mas reconhecer que tudo o que produz sofrimento, dor, humilhação, injustiça é algo detestável e condenável. Mesmo que isso possa parecer expressão de rancor, raiva, intolerância. Sentir tudo isso não significará que iremos reproduzir nos outros aquilo que detestamos e condenamos. Sentir indignação não significa deixar-se vencer por sentimentos de vingança ou de agressão. A cegueira e a indiferença do coração é que não podem tomar de conta da nossa alma nessa semana santa! 

Se acreditamos que o que Jesus viveu, principalmente nos últimos dias da sua vida, é algo que muitos humanos também podem vivenciar, então proponho o seguinte itinerário de contemplação e meditação....

1. Identificarmos atitudes, gestos, opções e posturas pessoais ou coletivas, institucionais ou não que hoje como ontem manipulam e cooptam leis e consciências, corrompem e se deixam corromper com o objetivo de excluir, marginalizar e eliminar pessoas consideradas incômodas, tal como fez o Sinédrio, Pilatos, Herodes e seus asseclas. Darmos os nomes aos crucificadores de hoje responsáveis por torturas, humilhações, ilícitos e arbitrariedades de todo tipo. Termos a honestidade de reconhecer que, talvez, nós também estejamos nessa lista, ou pouco temos feito para por fim a tantas formas de injustiça. Teremos, assim, a possibilidade de nos colocar do lado dos crucificados, abandonar as nossas cumplicidades, amenizar a cruz de tantos sofredores e evitar a morte de tantos ‘justos’.

2. Jesus não caminhou rumo à morte de forma serena, estóica, altiva. Nunca quis se oferecer como sacrifício nem pela expiação dos pecados e nem pela salvação da humanidade. Um certo espiritualismo cristão o interpretou dessa forma, mas certamente não o Jesus histórico que suplicava por ser liberado de beber o cálice do martírio! Ele tinha plena consciência de que o seu Pai não estava a lhe pedir isso! A cruz, de fato, era e é sinal de humilhação e morte vergonhosa. É o amor incondicional, intenso, criativo, puro, que salva! Mesmo que para tanto, paradoxalmente, tenhamos que enfrentar a cruz! Jesus foi forçado por meio de coação armada a assumir uma cruz que não desejava e que não queria carregar. 

3. O que ele queria era poder continuar a amar, acolher e perdoar sem que para isso fosse necessário ter que assumir o caminho da morte violenta e vergonhosa. As circunstâncias o colocaram numa situação em que para poder ‘amar até o fim’ teve que encarar também a cruz, mesmo sem desejá-la. Ficou perturbado ao constatar que estava sendo assassinado e crucificado. Jesus ficou perplexo e desnorteado ao sentir – e não compreender - ‘o silêncio’ de Deus! Que não usemos ideologicamente o símbolo da cruz para conformar os crucificados e sofredores, livrando, assim, os crucificadores de hoje de suas responsabilidades! Que não tenhamos medo de sentir a angústia do silêncio de Deus. É a nossa natural reação psicológica diante da nossa vontade de viver. E isso é positivo! Que nunca possamos pensar que o Deus de Jesus Cristo nos abandonou. Ele continua percorrendo conosco os calvários de hoje e nos ajudando como tantos ignotos Cireneus a carregar a nossa pesada ou leve cruz de todos os dias! Uma santa semana!

domingo, 3 de abril de 2022

“Precisamos esperar o inesperado para saber como navegar na incerteza”. Entrevista com Edgar Morin

 Você publica Réveillons-nous! como um alerta doze anos depois de outro apelo, o do pensador e lutador da resistência Stéphane Hessel, ‘Indignai-vos!’. Você quer nos tirar de uma forma de letargia?

Stéphane Hessel dizia Indignai-vos, dirigindo-se a pessoas que já estavam despertas! Eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. 

Você foi um lutador da resistência, um combatente quando a França experimentou a guerra. E você é um dos raros intelectuais franceses que foi elevado ao posto de Comandante da Legião de Honra, um título militar. Como você vivencia esse retorno da guerra na Europa?

Certamente, há uma surpresa, mas não total, pois em um artigo que fiz no Le Monde em 2014, na época da crise ucraniana e, já da divisão das províncias de língua russa na Crimeia, eu disse: cuidado, é um foco de infecção que corre o risco de ter consequências desastrosas. E durante anos, fechamos os olhos para essa infecção. E hoje estamos numa espécie de contradição porque, por um lado, achamos que a resistência ucraniana está certa – é uma guerra patriótica –, mas, ao mesmo tempo, pensamos que se entrarmos neste conflito, estaremos arriscando o que Dominique de Villepin chamou de “tsunami mundial”: passo a passo, chegando a uma explosão.

Como você vê esses ucranianos e essas ucranianas que pegam em armas para defender seu país contra os russos?

Para mim, são combatentes da resistência que, desta vez, resistem com um exército nacional, enquanto nós éramos combatentes da resistência desarmados. Acho muito bonito, mas também acho que não podemos nos deixar levar pela lógica da guerra e intervir militarmente. Portanto, eu sinto essa contradição que todos nós vivenciamos e que temos que aceitar.

Em duas semanas acontece o primeiro turno da eleição presidencial e você abordou esta questão no seu livro texto. A campanha para a eleição presidencial de 2022, você escreve, mostra como a França reacionária hoje tem precedência sobre a França humanista. E você não está surpreso?

É um processo que não deixei de analisar e passei a ver o agravamento. É a sucessão de crises que vivemos há algum tempo que explica hoje esta grande evolução da França reacionária. Você tem que pensar que em todo o mundo há uma crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditamos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da história, e percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante.  

Como você explica uma forma de derrota dos intelectuais e políticos de esquerda que não conseguiram dar respostas, não conseguiram se fazer ouvir?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que houve uma crise das ideias socialistas. O socialismo tinha para si uma teoria muito bem articulada, uma concepção do homem, do mundo, da história, formulada por Marx. E hoje, essa teoria tem enormes lacunas. Há uma crise do pensamento político em geral, e particularmente desse lado. Quanto aos intelectuais de esquerda, eles não responderam à missão do intelectual, que é muito importante hoje. Porque estamos em um mundo de experts e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. E hoje existe efetivamente essa deficiência. E são atualmente os porta-vozes intelectuais da França reacionária que estão nos holofotes.

 É possível, nestas condições, pensar o futuro com serenidade?

Não podemos ficar serenos diante de perspectivas tão preocupantes. O que eu queria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que desde Hiroshima, uma espada de Dâmocles está sobre a cabeça de todos os seres humanos e que se agravou com a crise ecológica, onde é realmente a biosfera, o mundo vivo e nossas sociedades, que está ameaçada. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o caráter global da crise. Penso que entramos em um novo período. Pela primeira vez na história, a humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total – haverá alguns sobreviventes, como em Mad Max –, mas uma espécie de “reinício” do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo que eu já havia diagnosticado como potencial que, de repente, se torna atual com essa história da guerra russa.

Alguns pensadores gostam de olhar para o passado, outros para o presente. E você, temos a impressão de que o que você mais gosta é pensar no futuro?

Mas você sabe, só podemos pensar no futuro se estivermos conscientes do passado e do que está acontecendo no presente. Não podemos pensar no futuro sozinhos. E hoje, o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, acredito que seja urgente pensar no futuro. Por quê? Porque até agora acreditávamos que o futuro era uma espécie de linha reta que continuaria. Precisamos imaginar diferentes cenários. Precisamos ser vigilantes. Precisamos esperar o inesperado para saber como navegar na incerteza. Há uma série de reformas, a maneira de pensar, de se comportar, que são necessárias hoje.


sábado, 2 de abril de 2022

V domingo de quaresma - Um conto evangélico! (Jo. 8,1-11)

 É madrugada adentro. Uma luz tênue, quase sinistra, projeta naquelas ruelas desertas de Jerusalém um emaranhado de sombras disformes. É um grupelho de homens que com ar suspeito se aproxima, cautelosamente, de um casebre um pouco isolado dos demais. De improviso, o grupo para. Um dos homens coloca o seu ouvido à porta, aguarda mais um pouco e, em seguida, se vira lentamente para os demais, e dá o sinal. Um deles, o mais robusto, derruba a frágil porta daquele casebre. Todos irrompem como lobos furiosos e se projetam sobre o casal que sabiam estar lá. Agarram com força a jovem mulher e a  arrancam com violência para fora do quartinho. Insultada e chutada sem dó, é arrastada, finalmente, até à esplanada do templo. Seus gritos e lágrimas não comovem e nem amenizam a fúria purificadora daquele grupo de homens embebidos de desejo punitivo. 

A coitada havia sido surpreendida em flagrante adultério! Sem dúvida alguns hipócritas a haviam monitorado e seguido ao longo de vários dias ou semanas. Certamente, esses amantes da lei e defensores dos bons costumes achavam que era preciso dar uma lição de moral exemplar. Não somente a ela, mas a todas aquelas mulheres de Jerusalém que obrigadas a casar e a conviver com um homem que não amam se rebelavam. Estranhamente, - como sempre ocorre nesses casos, - o parceiro da jovem mulher é ignorado e poupado pelos amigos cúmplices, como se o macho também não tivesse que sofrer as mesmas consequências legais: a pena de morte por apedrejamento para ambos, como previsto na Torá! O que esperar de uma religião feita à medida de...’homem’? Ao chegar à esplanada do templo o grupo de milicianos da moral e da lei vê Jesus ao longe. Entreolham-se como se estivessem confabulando algo. Pelo olhar de consenso que deixam transparecer eles apertam, de repente, com redobrada força os braços da jovem mulher e com uma passada mais ágil aproximam-se de Jesus. E catapultam  a coitada aos seus pés. Um deles, com um jeito um tanto melífluo e indisfarçadamente irônico, se aproxima mais ainda de Jesus, talvez com o intuito de inibi-lo. Jesus se encontrava sentado e, curiosamente, parecia rabiscar algo no chão.

 ‘Mestre’, ele o chama, como se fosse uma espécie de discípulo pronto para aprender uma nova lição de vida! 

- ‘Encontramos essa jovem mulher, que já se encontrava comprometida em casamento, mantendo relações com um homem’ – disse com voz que traía um certo nervosismo. 

E prosseguiu: ‘Nós todos sabemos que esse tipo de mulher, só merece uma coisa: morrer por apedrejamento. Foi assim que todos nós aprendemos pelas leis do nosso pai Moisés. Qual o seu pensamento a respeito?’ 

Jesus, sem manifestar desprezo, mas visivelmente irritado com aquela pergunta, evitava encarar aquele mestre de armadilhas teológicas. Por um instante as lembranças de Jesus começaram a correr soltas. Afloravam, agora, à sua mente as tentações diabólicas a que foi submetido por inúmeras pessoas que queriam pegá-lo em flagrante desobediência às leis, e ter um pretexto para eliminá-lo. Simultaneamente, porém, vinham aflorando com mais nitidez e densidade aqueles encontros carregados de ternura e de compaixão com tantos doentes, com tantas pessoas humilhadas, largadas, solitárias, destroçadas pelos preconceitos, amaldiçoadas pelos defensores das leis e das normas rituais na sua distante Galileia. Ele percebe que, agora, aí, à sombra do templo, no covil daqueles  sacerdotes chantagistas e ladrões, e dos escribas manipuladores o que estava em jogo era, mais uma vez, o tipo de relação que os humanos deveriam ter com Deus. Jesus tinha de deixar claro a qual Deus aquele povo queria, de fato, seguir. Tinham que escolher entre o Deus Pai de misericórdia que ama gratuitamente seus filhos e filhas, independentemente de suas ações, ou o Deus da lei, o juiz implacável, que julga e que condena ou premia de acordo com a obediência ou a desobediência às normas elaboradas pelas víboras que se aninhavam no templo, e que usavam descaradamente o seu santo nome!

‘Quem dentre vocês não tem pecado que seja o primeiro a fazer rolar a primeira e principal pedra no buraco onde a jovem mulher foi jogada’! – disse Jesus com ar desafiador, e sem esconder a sua indignação. E permanecia com o olhar fixo no chão, continuando a rabiscar algo com o dedo. Um surpreendente silêncio começou a pairar sobre os presentes. A empáfia daqueles arrogantes homens esvaeceu-se como que de imediato. Um a um, a começar dos mais veteranos escribas, ignorando, por um instante, aquele orgulho que os havia feito sentir potentes, saíram de fininho. E todos foram embora. Naquela ampla esplanada que agora recebia os primeiros luminosos e quentes raios, permaneceram somente Jesus e a jovem mulher. Os dois sobreviventes de uma disputa vencida com o poder da palavra e da sabedoria. Só então Jesus levantou os olhos e deixou de escrever no chão. Fixou seus olhos nos olhos daquela que foi poupada não pela misericórdia dos seus julgadores, mas pela sua própria vergonha de terem de admitir que eles também tinham pecado. Que pelo menos naquele momento não lhes era conveniente arvorar-se a juízes de uma jovem mulher. O semblante da jovem mulher, agora mais relaxado e quase sereno, mantinha certa distância de Jesus. Percebia que aquele sábio iria lhe dizer algo, talvez uma reprimenda, uma velada ameaça ou, quem sabe, lhe daria uma aula de moral....

- Ninguém te condenou mulher? – perguntou-lhe Jesus ao se levantar e permanecer em pé bem próximo dela. 

- Ninguém – respondeu ela, já sinalizando um certo temor por aquilo que poderia vir a seguir. 

- Nem eu te condeno. Sinta a paz dentro de você, e reconstrua a sua vida de forma diferente – disse-lhe Jesus. 

E prosseguiu Jesus: ‘É possível que volte a errar e cair novamente; afinal, somos humanos! Contudo, não se esqueça de que poderá sempre se reerguer, e seu Pai estará sempre pronto a lhe estender a Sua mão e lhe levantar e acolher, e jamais a lhe condenar’. 

A jovem mulher, então, ensaiou um tímido sorriso, quase sem graça, mas cheio de alívio. Olhou de novo para Jesus e uma alegria incontrolável invadiu o seu ser. Graças àquele Mestre ela tinha renascido. Foi-lhe dada uma nova chance que ela jamais imaginava poder ter. Não lhe foi imposto nenhum castigo, nem penitência, nem reprimenda, nem sacrifício expiatório. Estava, graciosamente, liberta e livre. Liberta daquele sentimento de culpa que paralisa o ser humano. Estava finalmente livre para amar de verdade. Livre para reproduzir e multiplicar aquele gesto de misericórdia gratuita. Livre também para desmascarar os arrogantes e falsos obedientes às leis que eles próprios fazem. Livre para anunciar um Deus que jamais quer a morte e a infelicidade de nenhum de seus filhos. 


sexta-feira, 1 de abril de 2022

O alinhamento político de Jesus. Artigo de Flavio Lazzarin

 Depois de séculos de teologias da história e de reflexões complexas e conflitantes sobre a relação entre fé e política, parece-me no mínimo presunçoso e certamente muito estúpido retomar o comportamento político de Jesus – e depois de Paulo – do modo como nos é testemunhado pelo Novo Testamento, acolhido sine glossa e prescindindo da enciclopédica montanha de textos, desde a agostiniana De Civitate Dei até a mais recente Doutrina Social da Igreja. Em suma, com as minhas indevidas simplificações, posso me considerar um espertalhão infeliz e desajeitado que acha que é possível, pelo menos por um momento, suspender a relevância de séculos de teologia. Peço desculpas por isso, mas é que surgiu no meu pensamento a necessidade de dizer coisas antigas e talvez esquecidas.

Se consideramos como um aspecto irrenunciável da nossa fé o seguimento e a imitação de Jesus, então também deveremos levar em consideração o seu estilo político e o seu modo de se relacionar politicamente com os poderes teocráticos, econômicos, imperiais e com as oposições do seu tempo. A primeira coisa que me chama a atenção é que Jesus não se identificava com nenhum partido político. Isso dependia, sem dúvida, da sua origem geográfica e social que o excluía das tradições elitistas dos partidos dos saduceus, dos fariseus e dos herodianos. Ou podia depender de diferenças teológicas radicais que inevitavelmente o distanciavam do movimento de João Batista, que esperava um Messias do Juízo e do castigo. Opções, estilos e métodos que o tornavam estranho e incompreendido até mesmo entre os seus seguidores e simpatizantes, que pensavam em um messianismo político, nacionalista, militar. Quanto ao partido dos essênios, os Evangelhos nada nos dizem, mas sabemos pelos documentos de Qumrã que o Messias que eles esperavam era simplesmente o reformador do Templo e da fidelidade do povo de Israel. Certamente ele podia ser uma figura interessante para o partido zelota: a enérgica e corajosa denúncia da injustiça do templo e a defesa amorosa dos excluídos e desprezados estão na base das motivações de alguns discípulos a segui-lo. Talvez Simão, conhecido justamente como o Zelota ou o Cananeu, viesse do partido zelota e talvez – alguns exegetas levantaram esta hipótese – Simão Pedro também, assim como os Filhos do Trovão, Tiago e João, eram zelotas.

Além disso, parece justamente que o pretexto jurídico para permitir a condenação à morte de Jesus foi aceitar a frágil tese de que ele era um messias zelota, que ameaçava o Império. A inscrição na cruz “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” também demonstraria essa leitura da história de Jesus em sentido político-nacionalista. No entanto, Jesus sempre se coloca além dos partidos, mesmo dos revolucionários, porque o seu Reino não é deste mundo, e a sua realeza se revela em termos absolutamente alternativos e não violentos, subvertendo toda lógica que sustente o poder e a dominação. Assim, ele não pode deixar de se posicionar contra a religião – não só a teocrática – e contra o império. “Mas Jesus chamou-os, e disse: ‘Vocês sabem: os governadores das nações têm poder sobre elas, e os grandes têm autoridade sobre elas. Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se servo de vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos’” (Mt 20,25-28; trad. Bíblia Pastoral).E, no Evangelho de Marcos, o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20) com a sua diabólica legião – a X Legião Fretense? – não simboliza, talvez iconicamente, o Império Romano que habita em um cemitério e é representado por uma manada de porcos muito impuros que se lança em um abismo?

Junto com o Templo, o Império é o antirreino. Paulo tinha clareza disso e escolhe definir Jesus como κύριος, kurios, Senhor, em clara e polêmica oposição ao único kurios reconhecido divinamente como tal, que era o imperador romano. E é por essa infidelidade política e adesão na fé ao único Senhor que os primeiros tempos do movimento cristão foram tempos de profetas e de mártires. Então, fazer política como Jesus e com Jesus na atualidade envolve a conversão a esse “além” de Jesus, o Reino que vai “além” da pequena cabotagem dos arranjos conjunturais, “além” dos alinhamentos ideológicos que sempre tendem a capturar a religião e a reduzi-la a um instrumento de defesa do status quo ou a âmbitos de poder eleitoral.Um “além” que é também um “contra”, sobretudo quando o cristianismo é manipulado para servir de suporte aos novos fascismos e tende a se reproduzir como cristofascismo.

Um “além” radicalmente crítico da agenda defasada e omissa da chamada esquerda, aparentemente condenada a se repetir, esquecendo a urgência de responder às feridas mortais infligidas à Vida e aos pobres pelo sistema capitalista e pelos Estados.