A principal característica da Copa do Mundo de 2014, que marcará definitivamente a história do futebol, é a sua intensa politização. A agenda esportiva, iniciada com a Copa das Confederações de 2013, entrelaçou-se à agenda política, com a realização das eleições gerais no segundo semestre deste ano.Futebol e política entraram em campo com uma disposição tática nunca vista. Não é novidade a utilização do sucesso de seleções por governos autoritários: 1934 e 1938 pelo regime fascista na Itália; 1970 pela ditadura militar brasileira; 1978 pelos militares argentinos. A particularidade desta Copa é a expressão da política em uma chave democrática. Claro, pode-se recordar as tentativas de todos os presidentes em extraírem algum dividendo das conquistas de 1958, 1962, 1994 e 2002. No atual certame, no entanto, são opositores, à direita e à esquerda do consórcio instalado no Palácio do Planalto, que utilizam o futebol mais que o próprio governo, a quem se acusava previamente de uma mal-intencionada instrumentalização bolivariana.
Às vésperas do seu início, chamava a atenção a desmobilização torcedora em contraste com a intensa mobilização social, tendência que foi se alterando com o transcurso do torneio. Além de diversas categorias em greve, movimentos sociais hasteavam bandeiras históricas outrora empunhadas pelo PT e de certo modo arriadas desde 2003 em nome da governabilidade requerida pelo presidencialismo de coalizão. Em seu conjunto, a organização de variadas iniciativas à margem do megaevento -- Copa Rebelde, Copa do Povo, Copa dos Refugiados, Copa das Meninas, Mundial de Futebol de Rua, Copa Revolucionária da Mulher-- traduzem a politização em sentido amplo e crítico. Nesse sentido, arrisco afirmar que o futebol já interferiu no resultado das eleições de 2014. Após as jornadas de junho de 2013, as intenções de voto para a presidenta Dilma Rousseff (PT) e sua popularidade se desidrataram.As demandas das ruas calçaram chuteiras ao estabelecerem como parâmetro os gastos com a organização da Copa e o propalado padrão Fifa. Ao mesmo tempo, fortaleceu-se a percepção coletiva de que uma extensa lista de responsabilidades --atrasos nas obras de infraestrutura e mobilidade urbana, problemas nos estádios e o desperdício da janela de oportunidades-- deveria ser atribuída ao governo federal.
Percepção distorcida porque tais responsabilidades merecem ser repartidas com governantes estaduais e municipais de muitas siglas partidárias, inclusive oposicionistas.Não é de estranhar, portanto, que enquanto Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) sejam alegremente retratados em fotografias com camisetas do Brasil e cercados de filhos e ex-atletas, vejamos Dilma acuada, vaiada e vulgarmente desrespeitada. Impensável imaginar uma visita sua à Granja Comary, à semelhança do que fizeram Angela Merkel e a realeza da Holanda nos vestiários de suas respectivas seleções, sem que isso provocasse reações furiosamente negativas.Neste momento, Dilma é a torcedora número 1 do escrete nacional. Uma eliminação prematura, antes das semifinais, pode intensificar o descontentamento daqueles que se engajaram pelo sucesso da seleção. No segundo semestre, isso será ingrediente do repertório do eleitorado oposicionista. Já eventual vitória não garantirá a reeleição de Dilma, mas poderá oferecer algum alento, atenuando a saraivada de críticas e contrapondo-se à onda pessimista e mal-humorada que tomou conta do país neste último ano.
Em ambas as situações, por meio do futebol e de sua importância para a sociedade brasileira, tornaram-se explícitos dilemas, conflitos e interesses como poucas vezes na história do país. Esse é o principal legado da Copa. O enfrentamento político com o Brasil diante do espelho.