sábado, 27 de março de 2021

O sentido da Semana Santa - Entrevista ao programa radiofônico 'Kairós'

 Em sua opinião qual é o sentido profundo da semana santa?

Evidente que cada pessoa constrói seu próprio sentido e cada pessoa tem o seu modo específico de vivenciar a semana santa. Contudo, há um sentido eclesial comum que não podemos ignorar. Um sentido que a igreja deseja que todos os seus fieis assumam em profundidade e me parece ser o seguinte: semana santa é muito mais que um período litúrgico que nos faz reviver os últimos acontecimentos da vida de Jesus e que nos prepara espiritualmente para a Páscoa. Semana santa é contemplar os crucificados de hoje, da nossa realidade, para fazer a experiência concreta de estar em profunda comunhão com eles. Mas não só: fazer a experiência de identificar, dar um nome às cruzes nas quais são crucificados milhões de seres humanos e, como consequência, rebelar-se, e destruir as cruzes do ódio, da intolerância, da negligência, da falta de compaixão, da falta de diálogo e de perdão. 

Gostaria que nos desse algumas pinceladas sobre o sentido específico da quinta feira e da sexta feira santa à luz da nossa realidade de pandemia, e de caos social e político que existe no nosso País

A quinta feira santa, desde o meu modo de ver, encerra a mensagem central de Jesus de Nazaré. O serviço incondicional aos necessitados e não a obediência à lei está na base da nova aliança selada por Jesus com toda a humanidade. No banquete da vida não existem exclusões, elitismos, preconceitos, mas até os traidores são convidados. Ao aceitar o convite e sentar-se à mesma mesa eles terão que lavar os pés dos demais convidados, deixando de lado ambições e desejos de poder. Aqui ocorre o compromisso que é central na vida de cada ser humano: não permitir que ninguém passe fome. Fome de pão, mas também fome de justiça. Todos assumem o compromisso de distribuir com equidade os bens da vida, materiais e imateriais. Muitas pessoas, na nossa realidade local, talvez nem participem da 'eucaristia sacramental e litúrgica', mas certamente vivenciarão esse acontecimento, histórica e realmente, fora do templo, ao oferecer cestas básicas e solidariedade a famílias carentes, a desempregados, a mães de família sem auxílio de todo tipo! 

Como não contemplar na sexta feira santa no Jesus torturado, condenado sem direito a defesa e martirizado na cruz os corpos de mais de 300.000 homens e mulheres do nosso País, mães e filhos martirizados não somente pela doença do Covid, mas também pela falta de estruturas sanitárias, leitos, falta de oxigênio, de médicos, de responsabilidade, de cuidado? Jesus não morreu vítima de uma fatalidade. Foi morto, assassinado. Aqui, também, muitas pessoas não morreram vítimas de uma doença fatal, por um azar. Elas são vítimas, sim, do descaso e da irresponsabilidade política, e da indiferença e da falta de compaixão. Na sexta contemplamos também a crueldade de supostos machos que matam e humilham suas companheiras, o abuso contra crianças, a exploração e a escravidão praticadas contra trabalhadores...Acho que a sexta feira santa nos desperta sobre o perverso poder que a morte ainda tem na humanidade. O discípulo/a de Jesus não pode se conformar com tanta violência. Não podemos, tampouco, imaginar que isso faz parte de um projeto divino. Ou, imaginar que seria algum tipo de castigo divino. Deus nunca quis a morte do seu filho, e nunca vai querer punir sequer aqueles filhos que cometem atrocidades. Quem quis e praticou a morte de Jesus foram as elites religiosas de Jerusalém aliadas aos poderes romanos locais. Essas elites têm nome e sobrenome. Nós também, hoje, temos o dever ético de dar os nomes dos ‘crucificadores’ para que sejam colocados em situação de não mais matar! 

O que significa, então, ressuscitar para nós, hoje?

É provar com gestos concretos de enfrentamento e de combate contra tudo o que conduz à morte, à violência e à truculência que os poderes mortíferos não têm a palavra final sobre a existência humana. Ressuscitar é provar através da nossa resistência que ninguém é tão forte para destruir as esperanças guardadas e alimentadas por pais de família, jovens, mulheres, pessoas escravizadas e torturadas. Ressuscitar é, também, a capacidade de manter vivas aquelas pessoas que foram ceifadas pela doença e pela violência.  É dizer e provar que elas nunca serão esquecidas. Que seus gestos, palavras e testemunhos jamais serão enterrados, mas que encontrarão em nós pessoas ousadas e corajosas para dar continuidade a tudo o que nos transmitiram. É dizer à pessoa amada que nos deixou que ela nunca morrerá! Que nunca será uma 'falecida'.


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