quinta-feira, 14 de abril de 2022

Quinta-feira da santa ceia -A incômoda teologia de João: sem templo, sem cordeiro, sem sacerdotes, sem hierarquia

 Em geral na quinta-feira santa ao comentar a ‘ultima ceia’ costuma-se repetir e reproduzir conteúdos e informações adquiridas pela catequese tradicional e respaldadas pela teologia clássica. De tanto que são repetidas acabam se tornando um suprassumo um tanto mistificado de supostas ‘verdades históricas e teológicas inquestionáveis’. Daí a importância de recuperar, de um lado, - lá onde é possível, - a informação histórica minimamente consensual, ou de deduzir pelas práticas, costumes e tradições da época de Jesus uma narrativa verossímil. E, do outro lado, fazer emergir o conjunto de elementos, - sinais, palavras, contextos que tenham uma incidência e uma coerência na prática pastoral a ser permanentemente atualizada. 

Não é difícil perceber que ao longo desses anos nas reflexões teológicas a respeito da última ceia, monitoradas pela hierarquia, foram omitidos muitos detalhes, presentes, contudo, na narrativa evangélica de João, por incomodarem, possivelmente, o establishment eclesiástico. Quais seriam, a meu aviso, esses elementos centrais que têm sido omitidos com frequência? 

1.João nos informa que no contexto da ceia pascal Jesus, a uma certa altura,  levantou, cingiu-se com uma toalha, colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, cumprindo, assim, a tarefa típica dos escravos. O que está por trás disso, e qual, afinal, o seu contexto? Não há nenhuma reprimenda de ordem moral! O pano de fundo era a recorrente e insidiosa disputa dentro do grupo de ‘quem seria o maior’. O que se encontra em outros contextos nos demais evangelhos, em João é encaixado no contexto de ‘ceia-banquete derradeiro’. Afinal, ao redor da mesma mesa, onde todos comem no mesmo prato, não há espaço para lugares e cargos de destaque. Está aí o surgimento de uma estrutura socioeclesial despida de qualquer anseio de caráter hierárquico. Nesse sentido, podemos compreender, então, o porquê da escolha do pão por parte de Jesus para assegurar a sua presença, e não do cordeiro, como a tradição mandava....

2. Jesus não celebra a Páscoa oferecendo o cordeiro sem mancha para ser comido! Para João, evidentemente, o próprio Jesus era o cordeiro. Mas isso é insuficiente para compreender essa escolha. Há uma motivação de fundo extremamente polêmica: os cordeiros sem defeitos e reconhecidos aptos para serem sacrificados - pelo menos no templo - provinham todos das criações do sumo sacerdote que detinha o seu monopólio, como sabe-se, hoje, pelos estudos historiográficos. Além disso, o cordeiro a ser consumido na ceia pascal na sua própria divisão e distribuição era uma fonte permanente de discriminação, pois os melhores e mais tenros pedaços eram reservados aos sacerdotes ou personalidades de destaque como previsto no antigo testamento. Jesus escolhe pão, algo carregado de densa simbologia e que sinaliza, de imediato, igualdade. Afinal, é a mesma qualidade e o mesmo sabor para todos os que dele se alimentam. O pão é mais um elemento que inibe a formação de estratificações, de vantagens e de privilégios numa possível e inaceitável estrutura hierárquica. Do ‘menor ao maior’ todos se alimentam do mesmo pão! Todos somos servidores, indistintamente, mesmo que o serviço a ser realizado seja qualitativamente diferente. Jamais poderá se sentir superior ao outro!

3. Outro elemento que frequentemente é ignorado e que, aos dias de hoje, até pela conjuntura que temos vivenciado (pandemia), deveria ser valorizado, é de que o ‘evento ceia’ transcorre não seguindo o ritmo típico de um rito, mas o ritmo de uma ‘atividade doméstico-familiar’. A ceia não se dá num templo, supostamente o lugar sagrado propício para agradar e louvar Deus e, além disso, coordenado por uma elite sacerdotal especializada, mas numa casa particular. Uma casa, inclusive, anônima, talvez para sinalizar que pode-se ‘celebrar, consagrar, servir, partilhar’ na casa de qualquer um de nós, ou seja, de todos! O grupo de Jesus não se dispõe ao redor de um altar, - espaço próprio para executar o sacrifício liturgicamente adequado, - mas numa mesa, no lugar próprio da comunhão e da partilha existencial fraterna e familiar.  

4. Outro elemento que é sistematicamente ‘distorcido’ no seu ‘significado’ é o cálice de vinho’. João que apresenta Jesus como o novo Moisés o diferencia, substantivamente, do grande legislador. Moisés aspergiu com o sangue do cordeiro o povo, Jesus oferece o vinho da alegria, do amor fiel e radical. O vinho que os noivos tomavam, solenemente, no dia do casamento-aliança era a demonstração irrefutável do seu recíproco compromisso de se amar até o fim, até o derramamento de seu sangue para preservar a vida do amado-a. A nova aliança em Jesus não se dá a partir da obediência a leis e normas ‘sacerdotais’, - como ocorria no antigo testamento, mas é alicerçada no amor recíproco, no cuidado ao outro/a. A última ceia nos diz em claras letras que o discípulo de Jesus não pode ser um mero freguês ritualista, cumpridor de preceitos litúrgicos, e sim um ‘ativista eucarístico’, o tempo todo, em todos os espaços, e em todas as circunstâncias. Isso possa ajudar aqueles defensores empedernidos e cultores doentios da lisura/pureza litúrgico-ritual: a mudança de uma palavra por um seu sinônimo, nas ‘palavras da consagração’, por exemplo, não invalida o sacramento, nem nulifica a graça, porque eucaristia é uma ação transformadora continuada, permanente, pautada pelo amor que alimenta, serve e protege pessoas dentro e fora do rito!

5. Um último elemento não menos importante, e que revela a profunda coerência teológica, - pelo menos da narração-reflexão de João, - é que se na lógica do banquete-pão partilhado ninguém é superior ao outro, mas todos são servidores e distribuidores em pé de igualdade, deduz-se, claramente, que não existem os que ‘têm poder’ para consagrar pão e vinho e ‘transformá-lo em corpo e sangue’ de Jesus, e outros que são meros consumidores passivos! Toda quinta feira santa nós presbíteros recebemos parabéns e sinceras invocações de bênção porque, supostamente, sem a nossa ‘atividade eucarística’ o pão e o vinho jamais poderiam se transmutar no corpo e no sangue de Jesus. Somos, afinal, meros servidores da mesa com o mesmo ‘poder consagrador’ de qualquer discípulo/a batizado/a. Não há como não reconhecer que na última ceia Jesus nunca quis e nunca instituiu uma diminuta elite sacerdotal conferindo-lhe um poder diferenciado sobre os demais. Todos somos membros da mesma e única família de Cristo. Todos somos chamados a sermos um ‘povo sacerdotal’ que procura não somente ser celebrante e ‘servidor da mesa’ mas ‘um povo eucarístico ambulante’ que se compromete a eliminar desigualdades e discriminações. E, que em lugar de separar os puros dos impuros, os dignos dos indignos, se educa e educa outros irmãos a conviver na fraternidade, no serviço abnegado, na ajuda recíproca, e na comunhão sincera, ‘dentro e fora do templo/casa’.  


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