sábado, 2 de abril de 2022

V domingo de quaresma - Um conto evangélico! (Jo. 8,1-11)

 É madrugada adentro. Uma luz tênue, quase sinistra, projeta naquelas ruelas desertas de Jerusalém um emaranhado de sombras disformes. É um grupelho de homens que com ar suspeito se aproxima, cautelosamente, de um casebre um pouco isolado dos demais. De improviso, o grupo para. Um dos homens coloca o seu ouvido à porta, aguarda mais um pouco e, em seguida, se vira lentamente para os demais, e dá o sinal. Um deles, o mais robusto, derruba a frágil porta daquele casebre. Todos irrompem como lobos furiosos e se projetam sobre o casal que sabiam estar lá. Agarram com força a jovem mulher e a  arrancam com violência para fora do quartinho. Insultada e chutada sem dó, é arrastada, finalmente, até à esplanada do templo. Seus gritos e lágrimas não comovem e nem amenizam a fúria purificadora daquele grupo de homens embebidos de desejo punitivo. 

A coitada havia sido surpreendida em flagrante adultério! Sem dúvida alguns hipócritas a haviam monitorado e seguido ao longo de vários dias ou semanas. Certamente, esses amantes da lei e defensores dos bons costumes achavam que era preciso dar uma lição de moral exemplar. Não somente a ela, mas a todas aquelas mulheres de Jerusalém que obrigadas a casar e a conviver com um homem que não amam se rebelavam. Estranhamente, - como sempre ocorre nesses casos, - o parceiro da jovem mulher é ignorado e poupado pelos amigos cúmplices, como se o macho também não tivesse que sofrer as mesmas consequências legais: a pena de morte por apedrejamento para ambos, como previsto na Torá! O que esperar de uma religião feita à medida de...’homem’? Ao chegar à esplanada do templo o grupo de milicianos da moral e da lei vê Jesus ao longe. Entreolham-se como se estivessem confabulando algo. Pelo olhar de consenso que deixam transparecer eles apertam, de repente, com redobrada força os braços da jovem mulher e com uma passada mais ágil aproximam-se de Jesus. E catapultam  a coitada aos seus pés. Um deles, com um jeito um tanto melífluo e indisfarçadamente irônico, se aproxima mais ainda de Jesus, talvez com o intuito de inibi-lo. Jesus se encontrava sentado e, curiosamente, parecia rabiscar algo no chão.

 ‘Mestre’, ele o chama, como se fosse uma espécie de discípulo pronto para aprender uma nova lição de vida! 

- ‘Encontramos essa jovem mulher, que já se encontrava comprometida em casamento, mantendo relações com um homem’ – disse com voz que traía um certo nervosismo. 

E prosseguiu: ‘Nós todos sabemos que esse tipo de mulher, só merece uma coisa: morrer por apedrejamento. Foi assim que todos nós aprendemos pelas leis do nosso pai Moisés. Qual o seu pensamento a respeito?’ 

Jesus, sem manifestar desprezo, mas visivelmente irritado com aquela pergunta, evitava encarar aquele mestre de armadilhas teológicas. Por um instante as lembranças de Jesus começaram a correr soltas. Afloravam, agora, à sua mente as tentações diabólicas a que foi submetido por inúmeras pessoas que queriam pegá-lo em flagrante desobediência às leis, e ter um pretexto para eliminá-lo. Simultaneamente, porém, vinham aflorando com mais nitidez e densidade aqueles encontros carregados de ternura e de compaixão com tantos doentes, com tantas pessoas humilhadas, largadas, solitárias, destroçadas pelos preconceitos, amaldiçoadas pelos defensores das leis e das normas rituais na sua distante Galileia. Ele percebe que, agora, aí, à sombra do templo, no covil daqueles  sacerdotes chantagistas e ladrões, e dos escribas manipuladores o que estava em jogo era, mais uma vez, o tipo de relação que os humanos deveriam ter com Deus. Jesus tinha de deixar claro a qual Deus aquele povo queria, de fato, seguir. Tinham que escolher entre o Deus Pai de misericórdia que ama gratuitamente seus filhos e filhas, independentemente de suas ações, ou o Deus da lei, o juiz implacável, que julga e que condena ou premia de acordo com a obediência ou a desobediência às normas elaboradas pelas víboras que se aninhavam no templo, e que usavam descaradamente o seu santo nome!

‘Quem dentre vocês não tem pecado que seja o primeiro a fazer rolar a primeira e principal pedra no buraco onde a jovem mulher foi jogada’! – disse Jesus com ar desafiador, e sem esconder a sua indignação. E permanecia com o olhar fixo no chão, continuando a rabiscar algo com o dedo. Um surpreendente silêncio começou a pairar sobre os presentes. A empáfia daqueles arrogantes homens esvaeceu-se como que de imediato. Um a um, a começar dos mais veteranos escribas, ignorando, por um instante, aquele orgulho que os havia feito sentir potentes, saíram de fininho. E todos foram embora. Naquela ampla esplanada que agora recebia os primeiros luminosos e quentes raios, permaneceram somente Jesus e a jovem mulher. Os dois sobreviventes de uma disputa vencida com o poder da palavra e da sabedoria. Só então Jesus levantou os olhos e deixou de escrever no chão. Fixou seus olhos nos olhos daquela que foi poupada não pela misericórdia dos seus julgadores, mas pela sua própria vergonha de terem de admitir que eles também tinham pecado. Que pelo menos naquele momento não lhes era conveniente arvorar-se a juízes de uma jovem mulher. O semblante da jovem mulher, agora mais relaxado e quase sereno, mantinha certa distância de Jesus. Percebia que aquele sábio iria lhe dizer algo, talvez uma reprimenda, uma velada ameaça ou, quem sabe, lhe daria uma aula de moral....

- Ninguém te condenou mulher? – perguntou-lhe Jesus ao se levantar e permanecer em pé bem próximo dela. 

- Ninguém – respondeu ela, já sinalizando um certo temor por aquilo que poderia vir a seguir. 

- Nem eu te condeno. Sinta a paz dentro de você, e reconstrua a sua vida de forma diferente – disse-lhe Jesus. 

E prosseguiu Jesus: ‘É possível que volte a errar e cair novamente; afinal, somos humanos! Contudo, não se esqueça de que poderá sempre se reerguer, e seu Pai estará sempre pronto a lhe estender a Sua mão e lhe levantar e acolher, e jamais a lhe condenar’. 

A jovem mulher, então, ensaiou um tímido sorriso, quase sem graça, mas cheio de alívio. Olhou de novo para Jesus e uma alegria incontrolável invadiu o seu ser. Graças àquele Mestre ela tinha renascido. Foi-lhe dada uma nova chance que ela jamais imaginava poder ter. Não lhe foi imposto nenhum castigo, nem penitência, nem reprimenda, nem sacrifício expiatório. Estava, graciosamente, liberta e livre. Liberta daquele sentimento de culpa que paralisa o ser humano. Estava finalmente livre para amar de verdade. Livre para reproduzir e multiplicar aquele gesto de misericórdia gratuita. Livre também para desmascarar os arrogantes e falsos obedientes às leis que eles próprios fazem. Livre para anunciar um Deus que jamais quer a morte e a infelicidade de nenhum de seus filhos. 


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