Meus queridos e estimados confrades,
Talvez alguém estranhe que mantenha ainda o hábito de me comunicar com vocês mediante cartas; talvez algo ultrapassado para vocês, hoje em dia. Na verdade tenho pouca habilidade e inclinação em adotar aquilo que vocês chamam de ‘redes sociais’, e quero me manter na tradicional correspondência escrita achando que, para mim, continua ainda a forma mais direta e familiar de me dirigir a vocês. Faço-o no dia em que se recorda a minha despedida terrena e no dia em que vocês, após muitos anos de intensos esforços e incansáveis articulações de todo tipo, - não incentivadas por mim, fique claro, - conseguiram colocar o meu nome ‘nos altares’, como se costuma falar ou, se preferirem, me canonizaram, alguns anos atrás.
Confesso-lhes que nunca lutei por isso, seja quando estava na minha amada África Central, seja agora, onde me encontro, entre os bem-aventurados que contemplam o rosto luminoso do Pai. Sempre tenho acreditado e me esforçado para ser santo, isso sim, mas não para ser objeto de devoção e nem com o intuito de ser imitado, um dia, pelos meus confrades ou por outros simpatizantes. A santidade em que sempre acreditei, - e que nem sempre me saía com facilidade, para dizer a verdade, - se confundia com uma genuína compaixão e com um amor ardente por aqueles povos sofridos do Sudão que vocês também conhecem. Dói-me nas profundezas da minha alma, mesmo sendo eu um beato, observar o horrível sofrimento dos filhos e filhas descendentes daqueles antepassados que eu conheci há mais de um século atrás. Lembro-me bem do dia em que tive uma intuição luminosa, - e que só podia ser uma revelação divina, - quando escolhi me dedicar com todas as minhas forças à redenção daqueles povos que aos meus olhos eu via como os mais abandonados e ignorados do planeta. Tentei, com a colaboração de outros confrades, irmãs, leigos e pessoas generosas amenizar um pouco dos sofrimentos produzidos por inúmeras doenças, pela escravidão, pela insalubridade da região e pela indiferença dos grandes da época.
Não tenho condições, e nem cabe a mim, fazer um balanço objetivo daqueles anos de árdua missão, mas posso lhes dizer que tentei ser com os meus missionários uma boa nova, e um tímido sinal de esperança para aqueles pobres esquecidos. Não posso negar que quando as forças falhavam e a esperança queria se esvair o que me sustentava, sistematicamente, era um sonho, não uma ilusão, de que um dia algo bonito, inédito e surpreendente, poderia acontecer naquele canto de mundo do meu Deus. Não saberia traduzir isso em palavras claras, ou através de planos estratégicos e prioridades pastorais como vocês falam, hoje em dia. Garanto-lhes que era um sentir íntimo, profundamente pessoal, mas muito intenso. Uma fé! Isso tem me alimentado, mesmo quando vim saber, tempo depois, que líderes locais extremistas, - como muitos existem ainda hoje, no mundo de vocês, - obcecados por poder e a dominação, destruíram o que havíamos a duras penas construído. Hoje, mesmo na paz celestial o meu coração continua a chorar vendo milhares de filhos e filhas do Sudão e de outros países onde vocês trabalham, sendo ceifados em disputas e guerras violentas entre si, e obrigando milhões deles a saírem de suas terras à procura de refúgio e segurança em outros países, encontrando somente rejeição e morte.
Queridos confrades confesso-lhes que, hoje, 10 de outubro, a melhor forma para se lembrarem de mim e do pouco ou muito que a minha missão tem significado para vocês não é através de solenes celebrações com as ‘orações próprias do dia’. E nem citando, aleatoriamente, frases ou ditos das minhas cartas. E nem tampouco me invocar como intercessor para resolver suas necessidades ou desejos, talvez, até legítimos, mas inapropriados. A melhor forma para mim é vocês terem a coragem e a ousadia de identificar quem são, de fato, hoje, ‘os mais pobres e abandonados’, - como vocês falam frequentemente em seus documentos, - e a eles se dedicarem e servirem, sem cálculos e sem medo de se perder. Não se preocupem demasiadamente com as vocações, a organização e a burocracia interna, mesmo que, agora, vocês tenham se transformado num instituto e numa congregação conhecida. Acreditem, um testemunho forte, coerente, generoso, corajoso deixa rastos e faz brotar mil vidas e mil esperanças!
Vosso afeiçoado irmão em Cristo, Daniel
Um comentário:
É legal a carta de Comboni, escrita no século XXI. Apreciei especialmente a parte final da mesma. Senti a falta de apontar a principal raiz das guerras, da violência e das mortes: o assalto aos recursos naturais. A minha impressão geral é de que a violência e as vítimas, na África Central e no resto do mundo parecem continuar sendo resultado das ambições e desejos de poder. Infelizmente hoje tais ambições se servem de todo tipo de argumentos e de conhecimentos acumulados e melhorados pelas ciências e as tecnologias (IA) para chegar aos objetivos mesquinhos tão enraizados no ser humano.
Que o nosso Pai Comboni nos ajude a ir ao encontro dos últimos, para os assistir e, como não podia deixar de ser, para ajudá-los a se defenderem dos ataques mortais, mais ou menos disfarçados.
Postar um comentário