Os índios Ka’apor, que acompanho desde há muitos anos em suas vicissitudes, quando me visitaram no longínquo 1984, em Santa Luzia do Paruá, chegaram durante uma celebração eucarística. Eu os flagrei atentos e atônitos, do lado de fora da igreja. Encostados nas janelas observavam tudo. Após a missa, me perguntaram quem era ‘aquele homem esticado num pau, e com pregos nas mãos e nos pés’, pendurado na parede principal do templo. Disse-lhes que era Jesus crucificado! Retrucaram logo, sem esperar que acrescentasse algo mais: ’Que mau gosto que vocês cristãos têm. Um morto não deveria ser exibido daquele jeito!’ Fiquei sem palavras, mas ensaiei dizer algo. Disse-lhes que Jesus, como Ma’ira, - o herói cultural deles, e dos Tupi em geral, - após a morte, voltara a viver. Imediatamente, um deles me fixou com intensidade, e disse: ‘Por que então vocês não tiram os pregos dele e o mostram com os olhos abertos, como um que vive?’ Emudeci. Não insisti. A conversa teológica havia terminado.
Jesus crucificado: escândalo para gregos, judeus, romanos e.... para os índios Ka’apor! Com efeito, é um escândalo expor o corpo de um derrotado, de um fracassado. É um escândalo para os pós-modernos, cristãos ou não. Estes parecem educados a ‘vencerem sempre, e a qualquer preço’. Saborear a amargura da derrota, da falência, da fragilidade é por em xeque o objetivo dos seus modelos culturais. Mais escandaloso, contudo, é expor publicamente o símbolo da derrota e do fracasso humano. E se identificar com ele. Reconhecer, enfim, que a morte, a humilhação, a condenação injusta, a brutalidade humana, a maldade fazem parte da vida cotidiana dos humanos. Daqueles que não são e não podem ser ‘super-homens’. Mais sedutor, e mais alienante, seria apresentar e cultuar um ‘todo-poderoso’ invencível que, embora temporariamente dominado, ressurge permanentemente com poder e glória. Talvez até para eliminar os seus algozes. Escândalo dos escândalos, contudo, é afirmar que ‘naqueles crucificados’ Deus também é crucificado! È como dizer a alguém que procura Deus com insistência que Ele está lá onde há alguém sendo crucificado, torturado, eliminado. Espantosamente, a presença de Deus se manifesta quando aqueles que Ele chamou à vida são injusta e barbaramente eliminados. Deus não estaria sendo indiferente ou ausente diante de tal trágico destino. Ao contrário, Ele mesmo, estaria sendo humilhado e morto nos crucificados/as da história.
Isto, porém, não passaria de heresia, ou quem sabe até de idílio bíblico-teológico se não houver um esclarecimento essencial. Deus não está presente no crucificado porque aprova tal prática. Menos ainda porque esta seria uma espécie de expiação necessária para merecer o Seu perdão, ou para ganhar uma hipotética salvação. Ou, pior, porque Deus, afinal é, por sua natureza, um ser sedento de sangue e de sacrifícios, e se identifica mais com a morte do que com a vida plena das suas criaturas! Deus morre ‘nos’ crucificados/as como sinal radical e profético da Sua absoluta não conformação com a violência, a injustiça, a tortura e a eliminação dos seus filhos e filhas nascidas para viver a vida em plenitude. Ao morrer com eles, Deus se revela. Torna-se uma presença que contesta e protesta contra toda morte violenta, planejada, anunciada, insinuada, doce ou atroz. Uma presença que aponta para a sua radical e necessária superação. Para um compromisso intransigente em favor da defesa da vida, do direito, da integridade física e moral dos ameaçados da sociedade planetária. Ao final, convenhamos: escândalo mesmo é expor um crucifixo num prédio público, talvez num tribunal de justiça, ou numa igreja, ou no próprio peito, e utilizá-lo para camuflar a própria falta de compaixão, a sua indiferença ou até a sua cumplicidade com um número sempre maior de Pilatos, Herodes, Césares, Sumos Sacerdotes e massas populares manipuláveis que condenam e conduzem todo dia ao Calvário da exclusão, do racismo, da fome, da arrogância e da hipocrisia institucionalizada um número sem fim de homens e mulheres que haviam sido chamados para a vida!
Nenhum comentário:
Postar um comentário