Alderico Lopes Guajajara entrou definitivamente na história do povo Guajajara e do povo de Grajaú, Maranhão, Brasil. Ele, na verdade, já tinha entrado ao ser um dos grandes protagonistas das principais reivindicações desse povo, nesses últimos 40 anos. A sua morte chegou um tanto inesperada, em Imperatriz, onde havia sido levado pelos familiares, após mais uma crise de mal estar generalizado. No dia 9 de novembro às 6,30 da manhã, aos 83 anos, deu o seu último suspiro, melhor dito, repassou o seu sopro vital a todos aqueles que queiram dar continuidade ao que ele realizou enquanto ‘guerreiro’ perspicaz e mestre iluminado de vida. Comoção, dor, e sentimento de abandono tomaram de conta não somente dos familiares, mas de um número incalculável de indígenas da região de Grajaú e de cidadãos ao ser velado, inicialmente, na Câmara Municipal, posteriormente na aldeia Chapadinha onde vivia ultimamente, e enfim, na aldeia Bacurizinho, onde havia passado a maior parte da sua vida.
É sempre difícil traçar um perfil objetivo e exaustivo de um personagem como Alderico, no momento em que nos sentimos ainda inconsolados com a sua ausência, e por perceber que a sua história pessoal se funde com a do seu povo Guajajara e com a de outros povos indígenas do Maranhão. Aqui queremos colocar, de forma sintética, o que desde o nosso ponto de vista Alderico representou, não somente para os Guajajara, mas também para a sociedade local e para algumas instituições.
Alderico, talvez seja um dos principais líderes carismáticos Guajajara que compreenderam as mudanças sociais e políticas que vinham ocorrendo de forma incisiva no Brasil e no Maranhão a partir, principalmente, da década de 80. Mudanças de sistema de governo (democratização), emergências dos movimentos sociais e indígenas, imposição de ‘grandes projetos econômicos’ (Carajás e outros) que incidiam na vida cotidiana das aldeias. Encolhimento crescente dos poderes da FUNAI, introdução de aposentadorias e assalariamentos de indígenas que impactavam enormemente nas relações internas, etc. Em lugar de condenar de antemão o que vinha ocorrendo no Brasil e no Estado, Alderico e um grupo significativo de Guajajara buscaram encontrar o seu papel e o seu espaço nas novas mudanças estruturais e nas composições sociais e políticas regionais e nacionais. Essas lideranças Guajajara perceberam que naqueles momentos centrais da vida nacional se jogava o futuro da nação Guajajara: o seu protagonismo no cenário macro regional ou a triste perspectiva de ser relegada a nação periférica. E não deixaram para menos: houve já no final dos anos 70 e início dos anos 80, mobilizações indígenas significativas para arrancar dos coronéis de Brasília a demarcação e a homologação de seus principais territórios. Se os Guajajara do Maranhão, hoje, têm praticamente todas as suas terras demarcadas e homologadas foi graças também à incansável luta e mobilização desse núcleo central de lideranças Guajajara da região de Grajaú/Barra do Corda de quem Alderico fazia parte.
Outro ponto central que podemos destacar do legado que Alderico deixou está relacionado ao papel que ele exerceu como grande mediador entre as duas culturas regionais: a Tupi-Guajajara e a sertaneja/nacional/brasileira (definição não muito rigorosa, mas só para nos entender....). Em geral, nas cidades onde há uma forte presença indígena os preconceitos, a desconfiança, as sutis e patentes formas de racismo por parte dos não-indígenas se manifestam com mais intensidade e brutalidade. Grajaú não escapa disso. Quando isso ocorre é imprescindível que surjam pessoas carismáticas de ambas as partes que com coração livre, desprendido e tolerante rompam a espiral do medo e do preconceito e iniciem um diálogo aberto e sincero entre si. Talvez Alderico, melhor do que qualquer um tenha realizado esse papel na região. A sua personalidade de homem sábio, perspicaz, e arguto observador do ser humano, demonstrou ser possível o diálogo entre pessoas de culturas diferentes. Não a rivalidade e a disputa, e sim a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e de se compreender mutuamente. Alderico percebeu que para entender a complexidade da cultura regional e ser socialmente aceito pelos ‘Karaiw’ não precisava vender-lhes a própria alma e nem o patrimônio indígena. Era preciso, antes de tudo, se apoderar de sua língua e de seus códigos culturais para melhor interagir e melhor se proteger. Ele não só se aplicou e se alfabetizou, - já em fase adulta, - bem como se tornou professor bilíngue de muitos indígenas, inclusive de seus próprios filhos. Alderico, - e com ele, hoje, muitos indígenas da região, - são perfeitos bilíngues, mas acima de tudo, sabem transitar sem subserviência, nos dois mundos, participando ativamente, e sem deixar ou se envergonhar de sua identidade originária. Pelo que conheço, a macro-região de Grajaú talvez seja hoje a única que melhor aplicou a assim denominada ‘interculturalidade’. Claro que esse processo está em permanente construção e que ele nem sempre se deu de forma pacífica e sem tensões. Alderico teve que engolir muitos sapos, mas soube ser firme sem ser intransigente ou intolerante. Isso o ajudou enormemente a aparar arestas internas e externas e superar potenciais conflitos que, diferentemente, teriam eclodido em confrontações trágicas. Nos acirramentos de ânimos, no recrudescimento da intolerância cultural e étnica, e nas variadas formas de prevaricação a que assistimos nos nossos dias, o testemunho de Alderico nos ajuda a renovar a nossa fé na força do diálogo, na escuta do outro, mas também na firmeza em defender direitos e dignidades, pois isto permanece inegociável.
Os renovados interesses particulares de madeireiros e empresários do agronegócio, as constantes ameaças, os numerosos abusos de toda ordem que impactam sempre mais nos territórios indígenas e em suas populações, associados à negligência estrutural do Estado nacional com relação aos direitos essenciais dos povos indígenas, bem como a triste fragmentação dos movimentos indígenas e as não raras disputas entre lideranças deveriam nos motivar a recolher a herança cultural, espiritual e humana que Alderico nos deixou. Ele nos ensina que as divergências e diferenças são salutares e que não precisam se transformar em disputas e conflitos para suprimir o outro. Que para dialogar temos que respeitar, escutar e entender os sonhos, os interesses, as angústias, a cultura do outro, sem achar que o outro é, necessariamente, o nosso rival e inimigo. Que as conquistas na vida, sejam elas coletivas ou pessoais, exigem paciência histórica e negociação permanente, onde a herança cultural e espiritual dos nossos antepassados seja o cimento que vem a consolidar a construção de uma sociedade multiétnica e participativa. Obrigado, Alderico!
Um comentário:
Grande homem de histórica o tanto quanto comovende que ficará guardado para sempre na memória de seus famíliares e amigos.Para sempre Grande Guerreiro Alderico Lopes😢
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