Não era possível ver muito a nossa frente. Nossa visão estava ocupada com o passado, com os passos dados pelos caminhos incertos que percorremos até aqui. Sabíamos onde estávamos, alguns de nós ainda se recordavam do lugar aonde gostaríamos de ter ido, mas olhávamos para nossos pés descrentes da caminhada.O abismo se estendia diante de nós no momento em que o sol, do outro lado, escondia-se do mundo deixando o reino de sombras de uma noite covarde tomar conta dos contornos dos montes. Um resto teimoso de dia ainda resistia na copa das árvores e tingia de magenta as nuvens mais baixas. Um azul improvável gritava entre as pesadas formações negras que carregavam o céu com o corpo da noite. Havia pouco o que fazer agora.
Descarregamos as mochilas de nossas costas cansadas e nos preparamos para passar a noite. A comida era pouca, mas foi repartida como cabe às ceias fartas de solidariedade. Nada foi dito. As palavras estavam guardadas para outros tempos, como se buscassem no fundo do poço de nossas mentes a água que mataria sua sede de dizer o que precisava ser dito. Não era hora de discursos. Quem falava por nós eram nossos olhos… quando desviavam do outro olhar, pedidos no chão a procura de pequenas pedras e folhas secas, quando se escondiam no cenho tenso olhando o céu que se fechava. Não olhávamos as pedras, as folhas ou o céu. Era para nós que olhávamos, e nós dizíamos: olhem. É difícil olhar para nós mesmos: precisamos de espelhos para que possamos nos ver, precisamos que o outro nos diga como estamos. Por isso não nos víamos ali sozinhos à beira do abismo.
Ainda não chegamos aonde queríamos, certo, mas caminhamos. Nossos pés cansados testemunham, nosso corpo todo grita, extenuado, o tanto que se forçou na marcha. Sabíamos para onde andávamos e desejamos esta jornada insana. “Só se lastima do cansaço aquele que não se convenceu da necessidade da viagem”, nos lembrávamos da frase que um dia fora dita. É na memória que nos escondemos do frio da noite. Havia sorrisos, abraços, certezas… luta. As palavras não eram mudas e os ouvidos, surdos. Havia canto e poemas. A estrada apenas se abria à nossa frente e nos convidava à aventura e à descoberta. É certo que havia a injustiça, a violência, a arrogância dos poderosos, mas tudo isso nos alimentava e dava forças para caminhar.Agora, à beira do imenso abismo, aqueles rostos cansados eram de velhos, ainda que fossemos tão jovens como há pouco, quando iniciamos esta jornada. Jovens tão velhos como a própria terra. No escuro da noite, nossas feições se confundiam na ampulheta do tempo: éramos índios e seus cantos milenares como um lamento que procura as pedras para não ser levado pelo nada; éramos negros acorrentados em navios que singrava um enorme abismo cheio de água salgada de nossas lágrimas; éramos todos aqueles que já se sentaram à beira de abismos esperando a noite passar.
O poeta sussurrou em meu ouvido: “Será a opressão tão antiga quanto o musgo nos lagos? Estarei eu doente por tentar mudar o que não pode ser mudado?”. Doentes estávamos todos, não só pela febre e pelos parasitas, estávamos doentes de esperança e de raiva, estávamos contaminados de certezas e de convicções. “Nada deve parecer impossível de ser mudado”, sussurrou o poeta. A noite não é amiga das esperanças. Ela nos corta a carne e a sangra, nos lembrando de que estamos vivos e, portanto, podemos morrer. Muitos não estavam mais ali esperando na noite. Para onde foram suas esperanças? Talvez por isso nossas mochilas estavam tão pesadas. Carregamos todas as esperanças daqueles que se foram lutando por elas. Tudo podia acabar ali mesmo, na beira daquele abismo, naquela noite. Quem carregaria nossas mochilas repletas de sonhos?
Uma dor imensa e gelada tomou conta de nossos estômagos… podia ser o fim. Ninguém saberá de nosso sacrifício e da justeza de nossas intenções. Ninguém recolherá os traços de nossos rostos para carregar em seu coração. Os poderosos pisarão sobre nossos cadáveres, queimarão nossas casas e salgarão a terra, para que nada possa nascer das cinzas. A noite percorreu seu próprio abismo. Ainda era noite quando nosso comandante se levantou. Contra o céu que clareava no horizonte sua estatura era de um gigante, e a estrela em sua boina brilhava como nenhuma outra no firmamento. Acendeu seu charuto e depois de uma longa baforada nos disse: “Vamos, agora falta pouco”. A noite que morria aos poucos ainda era de um dezembro de tirania, mas os raios de sol que se insinuavam no horizonte anunciavam que já estava muito próximo o mês de janeiro. E eles atravessaram o abismo.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.
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