sábado, 28 de março de 2020

V domingo de quaresma – Não há Ressurreição para quem nunca morreu! (João 11,1-45)

Como acreditar que Jesus é, agora, a Ressurreição e a Vida, ao ver uma multidão de Lázaros com o rosto de nossos pais e mães, ou de amigos enfermeiros, médicos, padres, irmãs e pessoas de todas as idades sendo ceifados por um vírus invisível? Como crer que aqueles que se foram, mesmo que mortos, viverão para sempre? E aqueles que ainda vivem, nós, não morreremos jamais? 
Não são meras perguntas filosóficas e nem teológicas, e sim, questões profundamente existenciais. Têm a ver com o sentido profundo da vida: viver em plenitude ou sobreviver, simplesmente. Encarar com fé e esperança também a nossa dor, ou mergulharmos no desespero e na escuridão mais profunda. O evangelho desse domingo tenta apontar algumas respostas.
1. Jesus deixa claro que Deus não intervém para ‘preservar’ da morte biológica quem quer que seja. Nem o ‘amigo Lázaro’ foi poupado. A morte faz parte do itinerário existencial de todo ser vivo! O que nós podemos fazer é mudar o nosso modo de encarar ‘a morte e os mortos’. 
2. Amar, libertar e servir como Jesus fez ajuda-nos a encarar os nossos entes queridos não como ‘finados, ou cadáveres sem vida’, mas como seres vivos que continuam a interagir conosco pelo amor que nunca morre. Já um filósofo existencial dizia que ‘amar alguém significa dizer para ele: você nunca morrerá’! 
3. E para os vivos que agora respiramos, trabalhamos, lutamos e choramos ‘viveremos para sempre e plenamente’ desde que reproduzamos o mesmo jeito de amar e de cuidar de Jesus. Quem faz isso encara e supera toda crise, toda dor, e toda angústia. E não porque alimenta a convicção de uma ressurreição biológica no futuro, mas porque experimenta, no presente, a beleza infinita de se doar, de consolar, e de proteger vidas. Os que se foram inspiram e ‘mantêm vivos e esperançosos’ os que ficam. E estes, jamais vão permitir que os que se foram, sejam esquecidos num túmulo frio e sem vida! Não há RESSURREIÇÃO para quem NUNCA MORREU!

domingo, 22 de março de 2020

espiritualidade em tempo de Corona-vírus I

Os tempos de crise são favoráveis à vida espiritual, pois convocam as pessoas ao ritmo de adentramento. Abre-se a rota do caminho interior, do “ponto virgem”, suscitando energias singulares para enfrentar o ritmo sombrio das dificuldades e recuperar o tecido da alegria. A espiritualidade, como diz Leonardo Boff, é inspiração para um “horizonte de esperança e de capacidade de auto-transcendência”. Ela é capaz de provocar em nós mudanças substantivas e apontar caminhos jamais traçados e que são essenciais para a nossa sanidade. A espiritualidade é o momento “necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação” e o “espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”
A espiritualidade convoca-nos ainda para algo que é essencial e que estamos perdendo nos tempos atuais: a reverência para com a natureza e todas as criaturas. Ela nos ajuda a repensar nossa postura no mundo, a reconduzir o nosso olhar e suscitar uma nova atenção e sensibilidade. Como diz o grande Ailton Krenak, "Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente" (Fonte: IHU)

Espiritualidade em tempo de Corona-vírus

É um momento kairológico, extraordinário, que pode possibilitar um campo novo de reflexão para as religiões, igrejas e espiritualidades do mundo. É um tempo que provoca também humildade, como sinalizou o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker: “Do ponto de vista de de nossa angústia, o coronavírus não poderia ter um nome melhor: ele nos tira do trono de nós mesmos e coloca a coroa de nossas vidas em sua justa dimensão. É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa em nossa época: a humildade. Diante desta pequena e destrutiva força da natureza, nosso narcisismo se dobra como um vassalo encurralado. Apesar de dolorosa como um espinho na alma, esta pode ser uma experiência profundamente transformadora. Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos pode ser muito benéfico. Pode ser uma verdadeira terapia para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso de sua coroa de espinhos narcísicos"
É igualmente uma oportunidade de “novas sociabilidades”, como apontou Marco Lucchesi, presidente da Academia Brasileira de Letras, em entrevista ao jornal O Globo: "A epidemia vai trazer novas sociabilidades. É o momento de reconfigurar novos fluxos, novas biopolíticas. Esta ´peste` metafórica, por assim dizer, nos ajudará bastante a reinventar o nosso lugar, a nossa janela, a nossa relação social e as nossas instituições culturais. Não vai faltar essa capacidade, seja com trabalhos online, seja diálogos compartilhados de forma mais ampla”
Curiosamente, o terremoto do coronavírus acabou favorecendo a diminuição do aquecimento global, na medida em que a situação gerada pelo vírus diminuiu menos um milhão de toneladas de dióxido de carbono (CO2) por dia. Pelo que se pode observar, “as emissões mundiais de CO2 podem reduzir-se este ano em cerca de 7%, um valor próximo do que o planeta deve atingir em 2020 com os esforços dos países para cumprir o Acordo de Paris sobre alterações climáticas” 

IV de Quaresma - Combater e desmascarar os propagadores do 'vírus da cegueira' da mente e de coração (Jo.9,1-41)

‘Não há pior cego do que aquele que não quer enxergar’. Ou ‘têm olhos, mas não veem’! A ciência nos diz que enxergamos por meio do cérebro. É de lá que são produzidas as imagens, e os olhos são meros meios que possibilitam a correta transmissão. Há, contudo, disfunções que se dão no cérebro e que distorcem substancialmente a realidade, de forma que o que se enxerga não bate com a realidade física. O texto magistral de João nos diz que na vida real, no cotidiano, há instituições e pessoas que trabalham para manter na cegueira outras pessoas. São ‘instituições e guias cegas’, - mas que arrogam para si o poder de ver, - e que fazem de tudo para que os olhos-coração das pessoas não se abram à luz. Fazem-no para impedir que ao enxergar venham descobrir sua função manipuladora e dominadora. Uma pessoa mantida e educada na ‘cegueira’ quando começa a enxergar torna-se a mais aguerrida inimiga daqueles que a mantiveram, propositalmente, na escuridão. A narração do evangelista deixa claro que dificilmente uma pessoa começa a enxergar por conta própria. É preciso que alguém, de fora, - Jesus, nesse caso, - enfrente os detentores do poder cego, rompa com suas manipulações e comece a ‘abrir os olhos’ a uma multidão de vítima da cegueira institucionalizada. Por isso que os indutores à cegueira detestam, perseguem, caluniam e combatem todos aqueles que desmascaram os que cultivam o poder que torna cegos e dependentes os filhos e filhas gerados na Luz.  Hoje, somos chamados, como Jesus, a ‘recriar pessoas’ ajudando-as a abrir mentes e corações e a enfrentar de forma destemida quantos continuam a cegar gente, utilizando ainda o nome do Deus Visível, ou em nome de uma Constituição feita à própria imagem e semelhança. 

sábado, 14 de março de 2020

III Domingo de Quaresma – Chega de amores alienantes e infiéis, mas ‘beber’ do único e verdadeiro amor fiel de Jesus!

As idas e vindas da vida frequentemente nos colocam em contato com o desconhecido, o suspeito, e o indesejado. Somos ‘obrigados’ a mergulhar em realidades desconhecidas, e a nos relacionar com pessoas de que não gostamos. Contudo, esses encontros e desencontros, - nem sempre desejados e programados, - produzem mudanças e aberturas mentais inimagináveis. É o caso de Jesus e da mulher-esposa samaritana. Ambos, educados pelas suas próprias culturas a desconfiar um do outro, veem-se na obrigação de interagirem. O diálogo entre Jesus e a mulher assume uma profunda conotação simbólica. De imediato percebemos que a samaritana deixa de ser uma mulher anônima de uma região rejeitada de Israel, e se torna o símbolo de um povo-nação-esposa que procurou em mil lugares equivocados ‘o amor verdadeiro e fiel’, sem encontrá-lo. Jesus se propõe a lhe oferecer a garantia de que ‘a esposa-povo-nação’ não precisará nunca mais procurar a verdadeira fonte da vida em ‘amores ilusórios e decepcionantes’. O amor que sacia a sua sede de afeto e de infinito está à sua disposição na pessoa de Jesus. No seu modo de acolher em amar fielmente. É suficiente acolher esse dom-amor, e começar a amar como Jesus ama! O encontro, aparentemente não programado entre Jesus e a samaritana, acaba transformando radicalmente as duas partes. A desconfiança deixa lugar à recíproca confiança. O preconceito inicial à mútua compreensão e aceitação, sem julgamento e sem condenação recíproca. Seja Jesus que a samaritana, abrem mão de suas seguranças, e de um ‘passado tradicional’ (nossos pais...) que os condiciona. Já não existe mais para ‘os dois’ um lugar sagrado sobre um ou outro monte para adorar o mesmo Pai. Afinal, esse Pai que ama a todos não se adora num templo e com liturgias próprias. Adora-se Ele em ‘Espírito e Verdade’, no ‘sopro divino que brota de um coração amoroso’ - e que, - ao amar como o Pai ama, recriamos e renovamos todas as pessoas e todas as coisas.   

quarta-feira, 11 de março de 2020

Os 'Tumbeiros ancorados' de outrora e 'as masmorras pós-modernas' das nossas penitenciárias...

Não há como permanecer indiferentes após a leitura do último editorial da Pastoral Carcerária do Ceará, sob o título emblemático ‘Tumbeiros ancorados’ (https://www.pastoralcarcerariadoceara.org.br/post/editorial-tumbeiros-ancorados.) Uma dramática reminiscência dos navios portugueses que transportavam, pelo Oceano, africanos escravizados a serem vendidos nas Américas. O autor aponta algumas das horripilantes coincidências entre o tratamento reservado aos escravos de antanho e aos de hoje, encarcerados em muitos ‘Ceará’ brasileiros. Vêm à minha memória as preciosas informações sobre as condições de vida dos escravizados africanos nos ‘tumbeiros flutuantes’ trazidas à tona, para o grande público, por Laurentino Gomes, no seu recente livro ‘Escravidão’ lançado recentemente no Brasil. Transcorridos longos ‘breves’ quatro séculos as similaridades com a atual realidade carcerária brasileira permanecem assustadoras. Para muitas vítimas da crueldade do sistema carcerário nacional emergem como dramáticos pesadelos, ou fantasmas, a ameaçarem sonhos e esperanças de justiça. Entretanto, há diferenças significativas entre as duas realidades e que, desde o meu ponto de vista, tornam a atual reclusão de muitos presos ainda pior do que a dos escravizados africanos. Aponto, brevemente, algumas. A reclusão e o encarceramento propriamente dito, caracterizado pela superlotação, a tortura, a falta de uma alimentação digna e a ausência total de higiene que se dava nos ‘tumbeiros’, durava alguns meses e, já mais recentemente, após o 1800, pouco mais de mês. Já a reclusão e as brutais condições de vida dos encarcerados de hoje, dura anos! Isto não significa que a vida de um escravizado africano, - após a viagem no tumbeiro, e já de posse do seu novo dono, - fosse um idílio!  Entretanto, nem se compara com as condições desumanas e com a incrível mortalidade que ocorria durante a viagem. Tão brutal que os cadáveres de escravizados lançados ao mar acabavam redirecionando o itinerário natural dos vorazes tubarões...

Mais assustador e revoltante é que hoje, - diferentemente do passado, - temos leis e normas institucionais que determinam um tratamento prisional que não negue a dignidade do detento, como bem nos lembra o autor do editorial. E, no entanto, tudo isso é sistemática e vergonhosamente ignorado pelos capitães do mato e donos de escravos de hoje, por acharem que são privilégios indevidos a gente que não merece. Cabe lembrar também que, se o escravizado africano, - apesar de todos os maus tratos, - era, afinal, uma mercadoria preciosa a ser preservada e comercializada, o mesmo não ocorre com os presos das nossas penitenciárias. Eles representam uma ‘carga morta’, um peso inútil, a ser carregado pela sociedade, e um prejuízo aos cofres públicos. Para a grande maioria, os presos, indistintamente, deveriam ser lançados ao mar da repressão e da indiferença. E serem engolidos pelos tubarões de colarinho branco. A poucos importa se eles vivem sufocados; doentes ou inocentes; provisórios à espera de um justo julgamento, ou réus primários ou não; se considerados aptos de se rever e de dar um novo rumo à própria vida. Não. Os que vivem atrás das grades já são tachados de irrecuperáveis. Diferentemente dos escravizados africanos que, mesmo forçados, acabaram produzindo bens morais, culturais e de consumo, - e forjaram uma nova nação, - os atuais encarcerados são considerados e tratados como ‘parasitas irrecuperáveis, ameaças constantes á legalidade e à segurança nacional’, incapazes de produzir riquezas e ordem para a nação. Essas mesmas pessoas hipócritas que assim pensam e agem, conhecem profundamente os inúmeros interesse econômicos que giram em torno da ‘indústria do aprisionamento’. Licitações e contratos milionários para comprar novas e sofisticadas armas para a segurança interna; licitações maquiadas para contratar e terceirizar os serviços de segurança de ‘empresas particulares amigas’; licitações e contratos milionários para fornecer alimentação e produtos de limpezas para as penitenciárias, favorecendo empresários aliados e parentes... Os ‘detestáveis presos’, para muitas pessoas, merecem morrer, ou serem deixados morrer. Já para alguns poucos, é bom que eles se reproduzam para garantir mais fontes de lucro para seus carrascos. Hoje nas 'masmorras ancoradas' do Brasil, como outrora, nos 'Tumbeiros flutuantes' a genética dos escravizados presos e torturados permanece a mesma: são os genes aprisionados no corpo e na alma dos filhos e filhas da África dilacerada!

sábado, 7 de março de 2020

II Domingo de Quaresma – O Filho amado não entra na onda do autoritarismo violento e legalista. Só doação e diálogo muda a nação! (Mt.17,1-9)

Às vezes diante de situações de incerteza e de graves crises sociais é tentador desejar e invocar uma solução autoritária. Almejar um líder ‘salvador da pátria’ que sinalize para uma nação à deriva força e poder. Qualquer sinal que venha a indicar uma solução dialogada, pacífica e consensual poderá ser vista para os apoiadores da ‘solução forte’ como fraqueza e fracasso. É com essa consciência que se moviam dos três apóstolos escolhidos por Jesus: Simão ‘o Pedro teimoso’, João e Tiago os ‘filhos do trovão’, como eram apelidados. Jesus percebe que tem diante de si o desafio de lhes mostrar que a opção que Ele escolheu para solucionar a crise ética e social de Israel não é a solução autoritária e legalista, representada por Moisés e Elias. E, que, uma eventual morte de quem lidera a libertação pacífica e dialogada de uma nação não é necessariamente sinal de fracasso. A catequese da transfiguração descrita por Mateus é de uma profundidade inimitável. Ela tem como objetivo levar os seguidores de Jesus a jamais se deixar seduzir pela solução legalista, autoritária e violenta, mas assumir, coerentemente, o caminho do serviço e da doação. Custe o que custar. Não existe cruz, morte, humilhação para quem se doa e ama até as últimas consequências. Tudo isso que é considerado pelos humanos como fracasso e escândalo é, afinal, vitória. Nesse embate os violentos e matadores são desmascarados, e as suas vítimas são enaltecidas, pois encaram a sua morte de forma diferente que os seus carrascos. Na sua morte aparentemente falimentar e humilhante se manifesta o ‘novo  e resplandecente jeito’ de atuar-amar do próprio Deus. ‘Morrer, se preciso for. Matar e agredir, nunca’!