quarta-feira, 11 de março de 2020

Os 'Tumbeiros ancorados' de outrora e 'as masmorras pós-modernas' das nossas penitenciárias...

Não há como permanecer indiferentes após a leitura do último editorial da Pastoral Carcerária do Ceará, sob o título emblemático ‘Tumbeiros ancorados’ (https://www.pastoralcarcerariadoceara.org.br/post/editorial-tumbeiros-ancorados.) Uma dramática reminiscência dos navios portugueses que transportavam, pelo Oceano, africanos escravizados a serem vendidos nas Américas. O autor aponta algumas das horripilantes coincidências entre o tratamento reservado aos escravos de antanho e aos de hoje, encarcerados em muitos ‘Ceará’ brasileiros. Vêm à minha memória as preciosas informações sobre as condições de vida dos escravizados africanos nos ‘tumbeiros flutuantes’ trazidas à tona, para o grande público, por Laurentino Gomes, no seu recente livro ‘Escravidão’ lançado recentemente no Brasil. Transcorridos longos ‘breves’ quatro séculos as similaridades com a atual realidade carcerária brasileira permanecem assustadoras. Para muitas vítimas da crueldade do sistema carcerário nacional emergem como dramáticos pesadelos, ou fantasmas, a ameaçarem sonhos e esperanças de justiça. Entretanto, há diferenças significativas entre as duas realidades e que, desde o meu ponto de vista, tornam a atual reclusão de muitos presos ainda pior do que a dos escravizados africanos. Aponto, brevemente, algumas. A reclusão e o encarceramento propriamente dito, caracterizado pela superlotação, a tortura, a falta de uma alimentação digna e a ausência total de higiene que se dava nos ‘tumbeiros’, durava alguns meses e, já mais recentemente, após o 1800, pouco mais de mês. Já a reclusão e as brutais condições de vida dos encarcerados de hoje, dura anos! Isto não significa que a vida de um escravizado africano, - após a viagem no tumbeiro, e já de posse do seu novo dono, - fosse um idílio!  Entretanto, nem se compara com as condições desumanas e com a incrível mortalidade que ocorria durante a viagem. Tão brutal que os cadáveres de escravizados lançados ao mar acabavam redirecionando o itinerário natural dos vorazes tubarões...

Mais assustador e revoltante é que hoje, - diferentemente do passado, - temos leis e normas institucionais que determinam um tratamento prisional que não negue a dignidade do detento, como bem nos lembra o autor do editorial. E, no entanto, tudo isso é sistemática e vergonhosamente ignorado pelos capitães do mato e donos de escravos de hoje, por acharem que são privilégios indevidos a gente que não merece. Cabe lembrar também que, se o escravizado africano, - apesar de todos os maus tratos, - era, afinal, uma mercadoria preciosa a ser preservada e comercializada, o mesmo não ocorre com os presos das nossas penitenciárias. Eles representam uma ‘carga morta’, um peso inútil, a ser carregado pela sociedade, e um prejuízo aos cofres públicos. Para a grande maioria, os presos, indistintamente, deveriam ser lançados ao mar da repressão e da indiferença. E serem engolidos pelos tubarões de colarinho branco. A poucos importa se eles vivem sufocados; doentes ou inocentes; provisórios à espera de um justo julgamento, ou réus primários ou não; se considerados aptos de se rever e de dar um novo rumo à própria vida. Não. Os que vivem atrás das grades já são tachados de irrecuperáveis. Diferentemente dos escravizados africanos que, mesmo forçados, acabaram produzindo bens morais, culturais e de consumo, - e forjaram uma nova nação, - os atuais encarcerados são considerados e tratados como ‘parasitas irrecuperáveis, ameaças constantes á legalidade e à segurança nacional’, incapazes de produzir riquezas e ordem para a nação. Essas mesmas pessoas hipócritas que assim pensam e agem, conhecem profundamente os inúmeros interesse econômicos que giram em torno da ‘indústria do aprisionamento’. Licitações e contratos milionários para comprar novas e sofisticadas armas para a segurança interna; licitações maquiadas para contratar e terceirizar os serviços de segurança de ‘empresas particulares amigas’; licitações e contratos milionários para fornecer alimentação e produtos de limpezas para as penitenciárias, favorecendo empresários aliados e parentes... Os ‘detestáveis presos’, para muitas pessoas, merecem morrer, ou serem deixados morrer. Já para alguns poucos, é bom que eles se reproduzam para garantir mais fontes de lucro para seus carrascos. Hoje nas 'masmorras ancoradas' do Brasil, como outrora, nos 'Tumbeiros flutuantes' a genética dos escravizados presos e torturados permanece a mesma: são os genes aprisionados no corpo e na alma dos filhos e filhas da África dilacerada!

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