Mesmo fazendo experiências fortes de compaixão e de fraternidade, não significa que estamos habilitados a enfrentarmos tudo o que a vida nos reserva de desafiador. Certamente, acumular experiências positivas nos proporciona energia e luz. Elementos essenciais para enfrentar as futuras e inevitáveis formas de falta de compaixão, e os infindáveis gestos de egoísmo que o ser humano produz. A cada dia, porém, precisamos vigiar para não cair nas mesmas armadilhas. Precisamos re-começar e re-direcionar mente e esforços para não cairmos naquilo que condenamos. Para continuar a reproduzir e multiplicar compaixão e fraternidade em todos os contextos. Principalmente, agora, em que mais de 30.000 crianças morreram de fome, na Somália, nesses meses. Onde instituições e pessoas especulam e desperdiçam dinheiro e comida gerando uma das piores crises econômicas. Talvez a expressão mais vergonhosa da indiferença, da ambição, da inconsciência dos descendentes do ‘homo sapiens-sapiens’.
Mateus no evangelho de hoje nos diz que Jesus ‘obriga’ os seus discípulos a atravessarem o lago e irem ao outro lado. O lado dos pagãos. Dos ‘estrangeiros’. O lado das incógnitas. Das inseguranças. Quase a nos dizer que os da ‘outra margem’ devem fazer a experiência que eles mesmos fizeram: ‘multiplicar pão e compaixão’. Como um verdadeiro mestre que não se substitui aos seus ‘alunos’, os manda sozinhos. Eles devem encontrar coragem e força para tomar essa decisão. Para fazer essa travessia. Para provar para si mesmos que estão prontos para uma nova missão. Jesus permanece no mesmo lado onde se encontrava, numa montanha, rezando. Quase a pedir que os seus discípulos não desistam e que tenham força e ousadia de ‘fazer a travessia’ até o final. O tempo parece não passar. Chega a noite, e o barco continua ainda no meio do lago. Afastado da terra firme de onde saiu. Afastado, principalmente, do lugar onde Jesus se encontrava pouco tempo antes. Como se não bastasse a escuridão da noite chegam também as ondas impetuosas do lago-mar por causa dos ventos contrários. Todas as forças da natureza e todas as contrariedades da vida parecem agredir aquele barco e os seus viajantes/tripulantes: a ausência de Jesus, as trevas, o medo e a insegurança, a lenta e tumultuada travessia que nunca termina. Uma clara metáfora da vida de todo ser humano. Mas, principalmente, daquelas pessoas que compreendem que é preciso fazer sempre novas travessias, e sem fugir dos seus desafios, das suas incertezas e contrariedades. Que devem ir rumo às suas sempre novas e desconhecidas margens. E com a sensação de que se sentirão sozinhos. Que não estarão avançando. De se sentirem tragados e afogados a todo instante.
É quando tudo parece piorar que Jesus re-aparece. E ele continua agindo na contramão de como agem ‘aqueles viajantes/tripulantes’. Jesus ‘desliza’ firme num mar revoltado e inseguro. O mar parece não assustá-lo ou ameaçá-lo. Ele caminha sereno e seguro, mesmo envolvidos pelas trevas da noite. Ele sabe, diferentemente dos seus discípulos, que a madrugada de um novo dia está a chegar. Que uma nova margem será alcançada. Que não será a última, e nem a definitiva. Os homens do barco ao verem tamanho autocontrole e domínio sobre o mar revoltado, - algo incomum para eles, - têm dificuldade de acreditar que ele seja um humano. Jesus se aproxima, mas permanece um fantasma. Alguém sem identidade. Uma espécie de alucinação, e não uma presença amiga confortante. Só na hora em que Jesus pronuncia ‘coragem, não tenham medo’, - e os viajantes sentem a firmeza da sua presença na escuridão e na tormenta, - é que Jesus é, finalmente, reconhecido. É como se Jesus, mestre de vida, não desistisse e continuasse a ensinar a aqueles ‘inexperientes alunos viajantes’ como superar mais um desafio da vida. Como ter mais coragem e força para enfrentarem outras novas travessias. A encararem outras noites. Outras tormentas. Talvez com menos medo e pavores. Talvez com um pouco mais de fé e coragem!
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