Muitas vezes temos a presunção de achar que vemos com clareza o que temos que fazer. Achamos que conhecemos pessoas e realidades. Na nossa suposta racionalidade e capacidade de análise tudo nos aparece bem definido. Não há porque se deixar interpelar ou questionar por eventuais elementos externos. Pessoas, acontecimentos, gestos ou sinais que sejam, que vêm para desarrumar algo que para nós já está claro e definido. Achamos que há um imperativo categórico dentro de nós que nos empurra a seguir firmes em frente seguindo a nossa intuição. Sem se importar com as ‘interferências externas’, os inconvenientes, os imprevistos, as surpresas de última hora...
Mateus, hoje, nos apresenta a narração de ‘uma interferência externa’, um imprevisto que bagunçou as perspectivas iniciais de Jesus. Alguém que se infiltra no plano que o próprio Jesus havia montado com clareza e ao qual havia aderido com firmeza: o plano de servir e atender somente ‘as ovelhas perdidas’ de Israel. Jesus, de fato, tinha clareza que a sua solidariedade e compaixão devia ser dirigida quase que exclusivamente aos pobres, doentes, e rejeitados do ‘seu povo’, e não de outros povos. Afinal, ele alimentava o antigo sonho comum de que os povos estrangeiros e pagãos iriam aderir e sentar ao mesmo banquete com Israel após verem a sua conversão. A mudança de vida de Israel iria produzir nos demais povos a vontade-desejo de ser como Israel. E, quase que de forma natural, iriam se juntar a ele. Sentar à mesma mesa. E construir juntos uma nova humanidade.
É a história de uma Cananéia que interfere e força Jesus a rever o seu plano. É a história de ‘tantos/as pessoas’ que com os seus gritos de socorro, questionam a legitimidade da missão de Jesus e de quantos acham que tem um plano claro e definido. Que nos forçam a ampliar a nossa visão. A rever planos racionais ou convenientes aos nossos interesses. Para que nosso poder de humanizar pessoas e realidades não seja dirigido a um único grupo. Para que ninguém defenda monopólios na hora de manifestar compaixão. As ‘ovelhas perdidas da casa de Israel’ deixam de ser um público-alvo restrito e limitado a um território e passam a incorporar também todos ‘os cachorros’ pagãos a quem lhes é negado o pão da compaixão, da acolhida, da defesa da sua integridade.
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