Vivemos uma época atípica. Contraditória e paradoxal. É verdade: pode-se afirmar que, afinal, toda época tem suas contradições e paradoxos. Todavia, parece que o momento histórico que vivemos está levando ao extremo esses elementos. Na atualidade procuramos resgatar de um lado a subjetividade que, talvez, tenha sido deixada à margem por práticas exageradamente ‘socializantes’, e do outro, sentimos o peso da deformação humana advinda de um ‘individualismo’ prático, exacerbado, que parece ter sua origem em uma supervalorização da subjetividade. O individualismo crescente de hoje seria uma reação desmedida a práticas históricas em que a pessoa-sujeito era um anônimo, um mero meio-instrumento dependente do estado ou de alguma instituição hegemônica. A afirmação exagerada da subjetividade, porém, vem produzindo o mesmo resultado: pessoas-números, pessoas-código de barra, pessoas solitárias e anônimas, pessoas-cartão de crédito, pessoa-documento... Pessoas incompletas e interrompidas. Algum sábio romano da antiguidade diria que ‘ a virtude está no meio’. Nós diríamos: sem apagar a originalidade e a autonomia sagrada de cada pessoa, deveríamos garantir uma autêntica educação da pessoa-sujeito ao que é ‘comum, ao estarmos juntos. Não pelo simples fato de ‘estar junto’ – embora sem negar que isso também é um valor em si – mas em vista de algo favorável a todos, e não somente a si mesmo. É interessante observar como no evangelho de domingo passado Jesus deixava claro que não existe um messias super-homem, individual, que age acima e sem os outros, mas um messias humano, coletivo, que constrói salvação com os humanos em favor de todos os humanos.
Na narração hodierna Mateus parece desenvolver mais ainda essa dimensão. E de forma quase implacável. O ‘eu’ sem o ‘nós’ não constrói subjetividade e nem sociabilidade. Não há plenitude humana. A comunidade de Mateus ao resgatar e atualizar o modo de agir-ser de Jesus não pôde ignorar o que era preponderante na sua prática relacional: a sua capacidade de interagir com todas as pessoas, e com cada uma. Pessoas entendidas não como massa amorfa, e nem tampouco como meros seres individuais, descolados entre si. Colocadas em rede-conexão entre si, e com Jesus, as pessoas procuravam descobrir e construir projetos pessoais de vida, mas tendo como base a construção de um reino de plena realização para todos os seres humanos como membros de uma única e mesma família. Acima de toda particularidade.
No evangelho de hoje, especificamente, Jesus dá um poder inédito á comunidade. Tudo passa por ela. Ela tem o poder de desligar e amarrar. De aprovar e de rejeitar. De acolher e censurar. Enfim, o poder de discernir. É a comunidade que torna manifesta a presença atuante do próprio Jesus. O que Jesus propõe não é uma espécie de ditadura comunitária. Ao contrário, aponta a comunidade como espaço de realização pessoal para evitar os personalismos, os individualismos que desembocam frequentemente em ditaduras e em absolutismos. De forma clarividente Jesus enxergava no coração humano a necessidade de superar o sentimento de solidão e abandono que residem no coração humano. Apela para a necessidade de educar mentes e sentimentos a sentir a alegria de estar juntos. De se sentir amado e acolhido pelos outros. De ser corrigido e incentivado, perdoado e compreendido pelos que vivem conosco. De mesma forma, nós podemos ser um instrumento para ajudar outras pessoas a se reencontrarem consigo mesmas quando experimentam o que nós mesmos experimentamos: solidão, falta de apoio e de valorização, necessidade de proteção e afetos. É nessas experiências cotidianas de convivência fraterna que Deus se manifesta. Afinal ‘Deus não tem mãos, tem as nossas para segurar e socorrer pessoas caídas. Ele não tem coração, tem o nosso para amar e compreender. Deus não tem voz, tem a nossa para confortar e anunciar. Deus não tem ouvidos, usa os nossos para escutar o grito e o louvor de quantos O invocam’.
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