Detenho-me na singela estatuazinha do menino Jesus. Contemplo com coração aberto e confiante as faces róseas daquele bebê sorridente ladeado por um pai e uma mãe, alguns pequenos animais domésticos e pastores em trajes da época. Num primeiro momento tudo me parece tão celestial e harmonioso. Todavia, não consigo tirar da minha cabeça a informação de que no nosso estado de cada 1000 bebês que nascem 30 morrem antes de completar um ano de vida. Em absoluto, o mais alto índice de mortalidade infantil do Brasil! Os meus olhos percorrem lenta e insistentemente aquele cenário e caem na pequena e artificial árvore de Natal que fica ao lado do presépio. Está carregada de bolinhas resplandecentes, e abarrotada de caixinhas coloridas e fitas douradas. Olhando aquela ‘árvore da fartura’ não consigo imaginar que a maioria das famílias do nosso Estado vive, hoje, com cerca de R$ 300 ao mês! Volto a contemplar novamente o presépio e procuro, agora, com certa ansiedade o palácio do rei Herodes. Não consigo identificar nada parecido a um castelo ou a um palácio de governo. Dou fé, imediatamente, que aquele presépio não possui muitas das ‘peças’ necessárias para torná-lo um pouco mais realista e mais fiel à verdade histórica. A sua falsa simplicidade e omissão chegam até a me irritar. Parece-me, agora, propositalmente manipulado e artificial. Fico a me perguntar: por que ocultar, por exemplo, o palácio daqueles parasitas de suposto sangue real que viviam banqueteando graças à cobrança de altos impostos? Os mesmos que em plena luz do dia arquitetavam perseguições às crianças e às suas famílias. Onde estão os seus soldados e policiais que escorraçavam pelas aldeias e cidades semeando violência e terror, aprisionando sem mandatos judiciais humildes lavradores e jovens, e estuprando as jovens da aldeia? Por que maquiar naquele ‘hipócrita’ cenário natalino os ricos e arrogantes comerciantes, e os inescrupulosos donos de hotéis? Onde estão os senhores e coronéis do interior que viviam a escravizar e a emprestar dinheiro com juros altíssimos aos pequenos artesãos e diaristas? Cadê, enfim, o templo, o santuário do Altíssimo, com seus sacerdotes profissionais e funcionários a derramar o sangue de cordeiros e bodes achando que com isso iriam expiar o sangue derramado de tantos inocentes humanos?
Decididamente esse tipo de presépio natalino me deprime. Fede a hipocrisia!Tirei por um instante os olhos daquela que me parecia uma farsa e me detive a observar pela janela daquela sala que já estava a me sufocar. Vi três crianças barulhentas, descalças, suadas, jogando com algo parecido a uma bola. Algumas mulheres estavam sentadas na calçada conversando em voz alta e rindo. Duas estudantes estavam a regressar, serenas, do colégio, de mãos dadas. Na avenida principal, a poucos metros de casa, o ônibus passou, mais uma vez, rápido e lotado de gente. Pensei por um instante que esse é, de fato, o nosso presépio: a eterna alegria de viver, de jamais desistir de esperar. Apesar dos Herodes e dos senhores, dos soldados e dos fardados. Jamais teremos ‘peças’ suficientes e acertadas para colocar no nosso presépio vivo humano. Para representar e traduzir as infinitas aspirações, e os eternos dramas que um coração sempre novo, e permanentemente renascido, esconde! FELIZ E LUMINOSO NATAL no presépio real!
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