“O servo prostrou-se diante dele e lhe implorou: ‘Tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo’. O senhor daquele servo teve compaixão dele, cancelou a dívida e o deixou ir. (Mt.18,26-27)
Vivemos no mundo da interdependência. Todos nós somos devedores de algo para com alguém. Como diz papa Francisco ‘somos devedores porque nenhum de nós brilha de luz própria. Ninguém é capaz de amar com suas próprias forças. Se amamos é porque alguém nos sorriu quando éramos pequenos, e nos ensinou a responder com o sorriso. Amamos, porque fomos amados. Perdoamos porque fomos perdoados’. Bastaria esta simples constatação para começar a sermos mais humildes e compassivos. E deixar de reivindicar, de forma intransigente, para os nossos supostos devedores, o pagamento de dívidas humanas, afetivas, e até, econômicas. Trata-se de ver, então, de qual tipo de dívida Jesus está a falar no seu pedido ao Pai. De imediato, descobrimos que Jesus não se refere a dívidas monetárias. Tampouco se trata de uma ‘dívida moral’, um ‘pecado, ou uma ofensa’, como tradicionalmente rezamos. Pecado diz respeito a uma transgressão religiosa, cultual, moral. Mas Jesus, no Pai Nosso, não fala em ‘perdão dos pecados’, e sim, em ‘cancelar, ou zerar dívidas’! E a palavra ‘DÍVIDA’ é muito mais abrangente do que a palavra genérica ‘pecado ou ofensa’. Jesus nos catapulta diretamente na dimensão ética! Ele se refere a valores substanciais da existência humana, e não a pequenas infrações morais ou cultuais! A ‘dívida’ a ser radicalmente cancelada pelo Pai e por nós, tem a ver, essencialmente, com direitos, rumos, opções fundamentais que uma pessoa faz ao longo da vida. Jesus ousa pedir isso ao Pai porque ele próprio e os seus discípulos já vêm praticando isso!
O pedido que Jesus e a sua comunidade dirigem ao Pai deve ser entendido à luz do grande sonho/desafio de construir ‘a governança’ de Deus entendido como Pai, aqui, na terra. Para Jesus, Deus não se assemelha ao ‘deus/contador’ que anotava no seu livro de contabilidade as ‘dívidas e pecados’ como uma antiga tradição judaica imaginava. Deus, a partir de Jesus, deixou de ser um contador que vive extorquindo seus fregueses devedores. Ele é um pai que anistia definitivamente todas as dívidas de seus filhos. Sem exigir nada em troca. O perdão formal de algo exigia sempre algum tipo de reparação. Uma espécie de contrapartida por parte do devedor. Jesus, no entanto, pede ao Pai ‘o cancelamento radical das nossas dívidas’, pois tinha certeza que no Seu coração só cabia compaixão. A melhor prova disso era o modo como o próprio Jesus agia com ‘os pecadores públicos’. Ele sentava à sua mesa sem exigir purificação, nem penitências ou outras condições. Bem diferente do que ocorre na ‘confissão’! Ela continua a reforçar moralismos baratos, e sentimentos de culpa. Jesus tinha a plena convicção que a pessoa anistiada de suas dívidas passaria a amar do jeito que ela foi amada. Recomeçando uma nova existência! ‘Nem eu te condeno. Vá em paz, e não peques mais’ disse Jesus à adultera! O mestre ignora a lei que exigia cobrança ferrenha das dívidas e punição para tais infratores. Ajuda a mulher a romper definitivamente com o seu passado. E a ser uma nova criatura. Cancelar dívidas não é, simplesmente, cancelar pecados! Zerar multas morais! É cancelar um passado feito de mágoas, de culpas, de injustiças. E de dependências de todo tipo. É oferecer uma inédita chance para adquirir uma nova identidade! É ter um novo horizonte na vida!
Hoje, fala-se muito em ‘pagar as dívidas históricas e sociais’ para com determinados grupos sociais profundamente injustiçados ao longo da história. O estado e as elites aristocráticas do nosso País são, inegavelmente, devedores para com os povos indígenas, os descendentes de escravos africanos, os pequenos lavradores expulsos de suas terras, e os milhares de perseguidos políticos, entre outros. Seria evangélico por parte dessas vítimas credoras de liberdade e de direitos ‘cancelar dívidas históricas’ que lhes causaram dor, morte, e dispersão? Se Jesus estivesse aqui, hoje, colocar-se-ia, sem tergiversar, do lado das vítimas da história. Não iria, talvez, cobrar dívidas contraídas num passado remoto. Certamente, porém, iria começar a reivindicar que, a partir de agora, o estado e a sociedade comecem a respeitar direitos e dignidades! Ofereceria uma nova chance a quem muito prejudicou. Entretanto, movido pelo amor exigente, Jesus seria firme e incansável em exigir plena justiça e compaixão. Para Jesus é urgente aprender a romper, unilateralmente, a diabólica espiral da cobrança. Da extorsão moral e da vingança, mesmo quando não exista a boa vontade do outro lado. A misericórdia ativa e incondicional é subversiva! É a única forma para desconcertar e desmascarar os arrogantes e os prepotentes de hoje. Os idólatras das armas, e da truculência. E construir com pequenos gestos de compaixão, e de resistência, a ‘nova governança’ do Pai!
- O blogueiro escreve mensalmente no O Jornal do Maranhão, da Arquidiocese de São Luís.
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