quinta-feira, 1 de abril de 2021

Lavar as mãos! Por Kécio Rabelo

 A força de um gesto sempre pode nos influenciar. Muitas vezes, mais o gesto do que quem o fez, ou mais aquele que este. Nossas memórias são guardadoras de gestos, muito mais do que de epígrafes. Uma sentença injusta, resultado de um processo forjado e de um julgamento estúpido, foi precedida de um gesto que marcou a narrativa da paixão de Jesus de Nazaré; o lavar as mãos de Pilatos.  Ali, a questão era de competência, mas não só. Pilatos era governador da Judeia, e, apesar de o tribunal judaico ter fechado questão sobre o assassinato de Jesus, não era detentor de competência para aplicar a pena, uma vez que esta seria de Cesar, imperador de Roma.  Mandaram-no a Herodes, por ser galileu. Por fim, foi levado de volta a Pilatos que, “não tendo encontrado nele culpa alguma” (cf. Jo19,6b), delegou ao povo a escolha do destino do prisioneiro/subversivo. Lavou as mãos, portanto.

A injustiça é parte da história humana. O medo, a covardia e a maldade são tentáculos de sua sobrevivência. Ela desconhece o razoável, não corteja a empatia, foge da verdade e atrai multidões. Firma-se e perpetua-se dessa ambivalência. Alimenta-se desse paradoxo. E assim, dentre outros modos de existir, sobrevive!É verdade que a Páscoa, ontem e hoje, é sinal de esperança. A Páscoa de Jesus é o centro da fé cristã. Nela está o suprassumo de todo o ensinamento do Cristo. Da ceia derradeira à manhã festiva da ressureição, permeia-se todo o mistério do sofrimento humano, exaltando-o à paixão; “amou-os até o fim” (cf.Jo 13, 1b).

Um ano depois dessa pandemia terrível que ceifou vidas de quase 3 milhões de pessoas no mundo e mais de 300 mil só no Brasil, muitos amigos, conhecidos, anônimos, ricos e pobres, parentes, homens e mulheres, cidadãos do mundo, hoje somos desafiados a rememorar os acontecimentos daqueles dias do Cristo à luz do mistério para o qual eles apontam.  Não seria outra vez a injustiça a matar a todos? A indiferença, a falta de empatia e solidariedade não são vetores do vírus da morte? Pode-se, nestas circunstâncias atuais correlacionar a injustiça ao mistério da iniquidade? Poderá outra vez a vida vencer o assombro do negacionismo e da morte?

Páscoa tem muito de dor e de cruz, mas tem muito de mesa e de luz. Difícil celebrá-la nestas circunstâncias, onde, paralisados pelo medo e pela dor, permanecemos atônitos ao pé do calvário, enturvados pela sombra da morte que paira altiva sob a insanidade e ao coração duro de muitos.  A solidão da sexta-feira parece romper o véu da eternidade. Que ninguém nos peça um cântico de Sião, pois que a hora é de dor extrema, embora a vida nos peça coragem e fé!

Vítimas da negligência e da imperícia estão amontoadas nas filas em busca de leitos, onde o distanciamento social quer dizer exatamente o que se diz, antes de o vírus chegar, já estávamos contaminados por ele. Seus são sintomas são perversos, separam histórias, dividem as mesas, alijam a ciência e desafiam até mesmo a fé e aos bons propósitos de corações que ainda são capazes de amar plenamente, como o Cristo. Felizmente, muitos deles resistem!

Voltemos às mãos. Lavá-las bem é protocolo fundamental de combate ao contágio do novo coronavírus. Tornou-se gesto de vida ou de medo da morte, que faz lembrar  Gilberto Gil, “ Negra é a mão nos preparando a mesa, limpando as manchas do mundo com água e sabão”. Mas não dessas mãos que pouco ou nada escolhem, mas das mãos daqueles que, excitados pela multidão, condenam milhares, oferecendo-os em sacrifício ao ‘deus’ mercado para que não desperte sua ira. Mas, sim, “o sangue destes cairá sobre vossas cabeças”, não bastando o gesto, sempre covarde, de lavar a mãos.

Que a fé resista e seja farol a nos guiar nesta Páscoa inquieta. Façamos silêncio e, do fundo do coração, peçamos por luz, justiça e vacina! 


Kécio Rabelo. Advogado, membro da Comissão Justiça e Paz de São Luis.

keciorabeloadv@gmail.com


Nenhum comentário: